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A CONFUSÃO DE LÍNGUAS NA HISTÓRIA DA PSICANÁLISE

PARTE I

TRANSFERÊNCIA E CONTRATRANSFERÊNCIA

Um dos melhores caminhos para nos darmos conta da confusão terminológica em que se atolou o tipo de Psicologia  inaugurada por Freud é abordarmos a distorção de que foram vítimas os conceitos, por ele avançados, de Übertragung (= transferência)  e de Verdrängung (= repressão  ou recalque ).

A) TRANSFERÊNCIA E RECALQUE:

1) NATUREZA DOS CONCEITOS:

a) Clínico-empírica:

Segue um exemplo clássico de transferência, transcrito de meu livro “A Nova Conversa”:
“Marcos, em sua primeira semana de análise, chamou-me atenção para um fato a que eu não havia atribuído maior importância: 
– Você já notou – perguntou-me ele – que, quando me deito no divã, ponho as costas de minha mão sobre a cabeça?  Ou melhor – continuou – eu não ponho minha mão sobre minha cabeça:  ela vem para minha cabeça!  Eu, aliás, quando me dou conta que isso aconteceu, insisto em tirá-la, mas, basta eu me relaxar e, pum!, lá está ela de novo!  Que inferno!
De fato, eu havia percebido que meu paciente, ao se deitar, regularmente punha sua mão direita sobre a cabeça, mas não me passara a idéia de que se estivesse perturbando com isso.  Marcos falou-me, também, sobre outro fato que o incomodava:  tendo já perdido ambos os pais, podia, quando quisesse, re-evocar a figura paterna, mas não, a figura da mãe.  Pensei o de sempre:  conforme o paciente for vencendo seus bloqueios e libertando sua fala, memórias anteriormente inacessíveis passarão a ser acessadas e ele conseguirá lembrar-se da imagem materna.
E assim foi.  Com um detalhe.  Quando recuperou a imagem de sua mãe, lembrou-se de ela fazendo algo a que freqüentemente se dedicava:  socar-lhe a cabeça!  E de que, nessas ocasiões, ele se protegia das pancadas maternas com um gesto idêntico ao que era compelido a fazer, até então sem saber por quê, sempre que se deitava com a cabeça próxima a mim, no divã da análise!  A partir dessa lembrança, Marcos voltou a mandar em sua mão.”
  
b) Conceitual:

A vinheta acima expõe com clareza os três elementos básicos que compõem um processo transferencial:  (1) um sujeito A – no caso, Marcos – (2) uma lembrança  B – no caso, as pancadas regularmente aplicadas por sua mãe em sua cabeça – e (3) uma percepção C – no caso, a que Marcos tinha de seu psicanalista – distorcida por sua identificação automática e acrítica desse último com sua mãe.  Toda transferência, portanto, implica uma relação disfuncional entre percepção e memória, em que essa última distorce a primeira. 
Já quando existe uma relação funcional entre percepção e memória, um sujeito é capaz de avaliar as semelhanças e diferenças entre ambas, podendo, dessa forma, articular a experiência passada com a experiência presente, otimizando a qualidade de sua resposta a essa última.
Vale lembrar, fazendo uso de mais uma transcrição de “A Nova Conversa”, que, embora o termo transferência seja comumente empregado para descrever a relação entre pessoas e, mais frequentemente até, para caracterizar a relação de um paciente com seu analista, a compreensão adequada do conceito exige ampliação desse emprego: 
“... a transferência pode ocorrer em relação a circunstâncias e a objetos, sem envolver de maneira direta qualquer relação com pessoas. Se, por exemplo, no dia 12 de outubro de um determinado ano, eu estava passeando em campo aberto e quase fui atingido por um raio, posso ser acometido, todo dia 12 de outubro dos anos subseqüentes, mesmo que não saiba por quê, de um estado de inquietude que me impeça de sair de casa.
Eu estaria, nesse caso, claramente transferindo minha experiência traumática, não de uma pessoa para outra pessoa, mas, sim, de uma data para outra data. 
De forma análoga, a transferência pode ser feita de um lugar para outro – no caso de Bertha Pappenheim, como vimos, de um quarto para outro  – de um animal para outro, de um objeto inanimado para outro, de uma pessoa para um animal, de um animal para um objeto inanimado etc..”
 
2) CAUSA:

Ao tipo de memória que se impõe sobre nossas percepções, distorcendo-as – produzindo, portanto, o fenômeno da transferência – Breuer e Freud chamaram, em seu famoso artigo publicado em 1893 (“O Mecanismo Psíquico dos Fenômenos Histéricos – Comunicação Preliminar”), de “memórias hiperestésicas ”, pois, segundo a teorização desses autores, é o excesso de energia psíquica a elas associado que faculta a essas memórias efetuar tal distorção. 
Na verdade, uma teorização completa sobre a quantidade de energia associada a uma memória deve distinguir memórias (a) com excesso de carga, (b) com um ótimo de carga e (c) com carga pouca ou nenhuma .  
Proponho que passemos chamá-las, respectivamente, de (a) memórias hipertônicas (em lugar das “memórias hiperestésicas” de Breuer e Freud), (b) memórias eutônicas e (c) memórias hipotônicas 
As memórias hipertônicas são causa dos distúrbios psicológicos que ocorrem nos quadros nosológicos  que Freud chamou de “(Psico)neuroses  Transferemciais ” (= basicamente, na terminologia desse autor, a neurose obsessivo-compulsiva, a histeria de conversão e a histeria de angústia, essa última evoluindo usualmente na direção de uma neurose fóbica).
As memórias eutônicas são o fundamento da saúde psicológica, pois estão associadas uma quantidade ideal de energia, que permite o cotejamento entre memória e percepção.
As memórias hipotônicas não têm efeito relevante sobre nosso funcionamento psicológico e podemos excluí-las de nossas teorizações.

3) MANEJO CLÍNICO:

Do supra-exposto, segue-se naturalmente a conclusão de que, para dissolver as distorções perceptuais inelutavelmente presentes nas neuroses de transferência (e, naturalmente, remitir os sintomas a essas distorções associados) – a estratégia de qualquer técnica fundamentada na Psicanálise tem necessariamente por objetivo transformar memórias hipertônicas em memórias eutônicas, ou seja, em outras palavras, o de “eutonizar memórias hipertônicas”.
E como fazer tal eutonização?  Dissolvendo a “Verdrängung” – o recalque – que, em um linguajar legitimamente psicanalítico, é sinônimo de – e nada mais do que disso – facultar o acesso dessas memórias à representação verbal
.
B) CONTRATRANSFERÊNCIA :

1) NATUREZA:

O conceito de contratransferência é, como dissemos, um subconjunto do de transferência, correspondendo a toda e qualquer transferência proveniente do psicanalista e voltada para seu paciente.

2) CAUSA:

A de sempre, qual seja, a presença, no psiquismo do analista, de uma memória hipertônica que distorce sua percepção de si mesmo e dos demais, e, no contexto clínico, do paciente. 

3) MANEJO CLÍNICO:

O de sempre, qual seja,  a eutonização das memórias hipertônicas presentes no psiquismo do psicanalista, mediante a legitimação de seu acesso à representação verbal, ou seja, dissolvendo o recalque que as mantinha fora da consciência.
Para consecução desse fim, o treinamento clássico de um psicanalista supõe que ele também se submeta como a um tratamento psicanalítico, a que se convencionou chamar de psicanálise didática.

PARTE II

A DESCARACTERIZAÇÃO DOS CONCEITOS ORIGINAIS

A) UM POUCO DE HISTÓRIA:

1) UMA NOVA AMOSTRA:

A amostra a partir da qual Freud desenvolveu sua técnica e sua teoria era essencialmente constituída por pacientes que apresentavam o que chamou de “(psico)neuroses transferenciais” (Histeria de Angústia, Neurose Fóbica, Histeria de Conversão e Neurose Obsessivo-Compulsiva). 
Nesses pacientes, como vimos, a técnica psicanalítica permitia a clara identificação de um tripé:  (1) memórias hipertônicas  presentes no psiquismo do paciente e resgatáveis via dissolução do recalque, (2)  a pessoa do psicanalista e (3)  a distorção da relação com esse psicanalista por aquelas memórias (= transferência, núcleo dos demais sintomas presentes nas enfermidades em pauta).
O sucesso com esse tipo de pacientes fez que o trabalho de Freud atraísse significativo número de discípulos, alguns trazendo consigo um grande desafio:  vários dentre eles trabalhavam com pacientes muito mais regredidos do que os tratados por Freud. 
Essa lacuna nos dados provenientes da prática clínica freudiana e a inadequação de sua técnica para tratar esses pacientes mais regredidos é apontada pelo próprio Freud, em 1911, na introdução de suas “Notas Psicanalíticas sobre um Relato Autobiográfico de um Caso de Paranóia (Dementia Paranoides)”:  Vejamos:
“A investigação analítica da paranóia oferece especiais dificuldades a médicos que, como eu, não atuam em instituições públicas. Não podemos aceitar tais pacientes ou prolongar nossa relação com eles, pois a perspectiva de sucesso terapêutico é exigência [para o emprego] de nossa técnica.  Assim, ocorre que apenas excepcionalmente eu possa dar um mergulho mais profundo na estrutura da paranóia ... Aliás, é bastante freqüente que eu me defronte com paranoicos (e dementes ) e aprenda tanto com eles quanto outros psiquiatras com seus casos... mas isso em geral não é suficiente para permitir conclusões analíticas.” 
Esses pacientes mais regredidos, escassos na clínica freudiana, têm seus sintomas moldados por memórias hipertônicas cujo conteúdo corresponde a épocas por demais precoces de nosso desenvolvimento para que seja possível  seu resgate pela consciência via dissolução do recalque, como proposta por Freud.  Com efeito, alguém imaginaria um paciente, sob não importa que tipo de tratamento psicoterápico, lembrando-se: “Ao nascer, senti intensa falta de ar e algo enrolado em torno de meu pescoço?” ou “Quando eu tinha dois meses, preferia o seio direito de minha mãe, mais farto em leite do que o esquerdo?”  Espero que não. 
A esses pacientes mais regredidos, portanto, falta um dos três elementos essenciais do conceito original de transferência:  a possibilidade de remissão dos sintomas mediante dissolução do recalque (= acesso à representação verbal), com a conseqüente eutonização (e simultâneo resgate pela consciência) das memórias hipertônicas que os produziam. Frente a isso, Freud:

a) denominou as memórias hipertônicas irrecuperáveis pela consciência de “protofantasias” (“Urphantasien”) , considerando-as como matrizes universais, filogenéticas e prontas para moldar nossas experiências pessoais;
b) separou o “recalque propriamente dito”, conhecido simplesmente como “recalque” (“Verdrängung”), considerado reversível, de um “proto-recalque” (“Urverdrängung”) , do qual eram alvo as citadas “protofantasias” (e,portanto, irreversível);
c)  agrupou os pacientes cujos sintomas são devidos ao proto-recalque sob o nome de “neuroses narcísicas, separando-os do grupo que denominou de “neuroses transferenciais” ;
d) entendeu o tratamento psicanalítico como indicado para segundo tipo de transtorno e inadequado para o primeiro, sugerindo uma análise de prova, como instrumento adequado para diferençar um tipo de outro, evitando prolongamentos infrutíferos no trabalho com os portadores de neuroses narcísicas .
 
2) O IMPASSE:

Na verdade, Freud considerou a técnica psicoterápica por ele desenvolvida não apenas ineficaz para o tratamento das “neuroses narcísicas” (= psicoses):  encontravam-se também fora de seu alcance (a) os pacientes com quadros agudos, (b) os com más-formações de caráter, (c) os de idade muito avançada, (d) as crianças e (e) outros, como os não motivados, os mentalmente retardados, etc.. . 
Ora, até o início do século XX, a Psicanálise oferecia praticamente o único tratamento psicológico com condições de pretender cientificidade e, assim sendo, banir um paciente do acesso a ele equivalia a negar-lhe todo e qualquer atendimento de natureza psicoterápica.
Alguns dos novos discípulos de Freud não se conformaram com isso.  Para nos limitarmos aos mais famosos:  Karl Gustav Jung e Sandor Ferenczi atenderam psicóticos, Karl Abraham teve sucesso com pacientes de noventa anos ou mais, Reich desenvolveu um importante trabalho com as más-formações caracterológicas, Anna Freud e Melanie Klein voltaram-se para o atendimento psicoterápico de crianças de até mesmo um ou dois anos de idade.

3) AS CONSEQUÊNCIAS DO IMPASSE:

Freud, Jung, Ferenzi, Abraham, Klein etc. fizeram isso.  E nós, o que fizemos?

a) O que deveríamos ter feito:

Ora, o reconhecimento de que os conceitos freudianos, sua técnica e a terminologia que empregou para descrevê-los tinham sua eficácia limitada a um determinado grupo de pacientes deveria, para o bem da Psicologia, ter redundado na produção de novos conceitos, novas técnicas e nova terminologia que, em vez de pretender substituir ou deformar os freudianos, compusesse uma Teoria Geral integrando todas as Psicologias Profundas , ou seja, todas as descobertas e achados das abordagens psicológicas que operassem com o conceito de inconsciente.  Infelizmente, nada disso ocorreu.
 
b) O que se fez:

O inconformismo de muitos dos novos discípulos com as limitações da técnica e da teoria freudianas gerou cisões, umas estrepitosamente assumidas – como as de Adler e Jung  – umas diplomaticamente conduzidas, como as de Ferenczi e Abraham – umas sorrateiramente orquestradas, como as de Anna Freud e de Klein. 
Em seu lado positivo, essas rupturas produziram uma imensa riqueza de teorias e técnicas alternativas, capazes de preencher lacunas existentes no já descoberto; em seu lado negativo, as ruidosamente assumidas, que queriam sublinhar a existência de suas discordâncias, fartas vezes produziram termos diferentes para nomear o mesmo conceito , enquanto as sorrateiramente implementadas, que preferiam escondê-la, não menos fartas vezes, modificaram conceitos sem lhes atribuir novos nomes .
A Psicanálise acabou vítima – ad modum Madame Curie  – do mal que viera curar:  o uso insatisfatório da função verbal.  Necandus necavit necaturum:  quem deveria morrer matou quem deveria matar...

PARTE III

REORGANIZAÇÃO TERMINOLÓGICO-CONCEITUAL

Como reparar as conseqüências nefastas do “big bang” terminológico-conceitual resultante do choque entre profissionais que se assemelhavam por serem adeptos de uma Psicologia Profunda e diferiam porque seus conceitos e práticas voltavam-se sobre diferentes amostras clínicas?
No início do século passado, para “curar-se” de uma esquizofrenia, bastava a um paciente embarcar em um transatlântico e trasladar-se dos Estados Unidos para a Europa.  Como isso?  Simples:  nos EUA, o conceito de esquizofrenia era muito mais amplo do que o empregado na Europa, e, portanto, ali chegando, não mais seria diagnosticado como tal!... Obviamente, é impossível chegar-se a grandes conclusões, seja sobre esquizofrenia, seja sobre transferência, seja sobre o que for, se determinados autores definem um mesmo termo de forma diferente do que o fazem outros . 
Seguem-se, algumas sugestões para “higienizar” a terminologia produzida por Freud, seus seguidores e seus antagonistas, eliminando situações em que um só termo esconde uma duplicidade de conceitos e outras em que um só conceito tem sua unidade obscurecida por uma duplicidade de denominação. 
Consoantes a essa hipótese, rascunhamos também um maior detalhamento e organização dessa terminologia “higienizada”, com a esperança de que, no espírito de Haeckel , esse trabalho possa ser útil para a evolução  das Psicologias Profundas, mereçam elas ou não a denominação de “psicanalíticas”.  Esse rascunho será vazado de forma dogmática, pois seu valor ou a falta dele só poderão ser determinados pela experiência empírica, sendo ocioso tentar fazê-lo via argumentação.

A) PROTOFANTASIAS E ARQUÉTIPOS:

Há um notável consenso entre correntes tão aparentemente opostas como o são a de Freud e a de Jung sobre que o psiquismo humano abriga “protofantasias” – no jargão do primeiro – ou “arquétipos” – no do segundo – ou seja, conteúdos psíquicos não resgatáveis pela consciência, mas, ainda assim, capazes de moldar nossa relação com o mundo.
Como estamos lidando com uma duplicidade terminológica que esconde uma unidade conceitual, iniciarei a pretendida “faxina léxica”, dando preferência a empregar o termo “arquétipo” e abandonando o termo freudiano “protofantasia”.  Faço isso, por um lado, levado pelo vasto currículo do termo “arquétipo” na história do pensamento – foi empregado, pela primeira vez, em Filosofia, pelos neoplatônicos, retomado mais tarde, em Teologia, por Agostinho e, finalmente, por Jung , em Psicologia – e sempre com o significado básico que acabamos de apontar, tenha ele sua origem em uma memória filogenética, como querem Jung e Freud, ou em outras fontes, como queriam os neoplatônicos e Agostinho.

B) ARQUÉTIPOS E NEÓTIPOS:

Por outro lado, também prefiro “arquétipo” a “protofantasia”, porque o primeiro torna mais evidente a vantagem de que se crie o termo “neótipo” , neologismo que nos permite manejar com mais desenvoltura o fato – reconhecido por praticamente todas as Psicologias Profundas – de que o ser humano se desenvolve formatando sua experiência a partir de arquétipos.  Assim, se consideramos a existência de um Arquétipo do Inimigo, Marcos formatou-o, dentre outros modos, mediante o neótipo de sua mãe socando-lhe a cabeça .

C) TRANSTORNOS ARQUETÍPICOS E NEOTÍPICOS:

Visto as dificuldades conceituais associadas aos termos “neurose” e “psicose”, as últimas versões tanto do CID quanto do DSM passaram a empregar no lugar daqueles o termo “disorder”, traduzido entre nós pelo termo “transtorno”.  Acoplando essa mudança à criação do termo “neótipo”, sugiro que os termos “neuroses narcísicas” e “neuroses transferenciais” sejam substituídos, respectivamente, por “transtornos arquetípicos” e “transtornos neotípicos”, com duas ressalvas:

a) a de que o único critério de diferenciação entre ambos os transtornos é a de que, nos primeiros, os arquétipos ainda não foram formatados sob forma de neótipos, não interessando se essa formatação está ausente porque o paciente é psicótico, porque é uma criança, porque regrediu momentânea ou estavelmente a essa pré-formatação, ou por sejam quais outras razões;
b) a de que se reserve o termo formatação  para a moldagem de uma experiência vital por um arquétipo hipertônico (proto-)recalcado e o termo transferência  para a distorção de uma experiência vital por sua identificação com neótipo hipertônico recalcado.

No que diz respeito à natureza dos transtornos arquetípicos e neotípicos, minha contribuição é basicamente de coletar e organizar contribuições de autores  que ficaram dispersas ao longo da história da Psicologia.
Em tempo:  em seu seminal artigo, “O conflito entre os modos de pensamento Aristotélico e Galileano na Psicologia contemporânea” (1931), Kurt Lewin  sublinha como é primordial para o sucesso da ciência que ela se empenhe para passar de um pensamento de tipo aristotélico, estruturado em classes, para um de tipo galileano, vazado em contínuos.  Exemplifico:  a ciência de tipo aristotélica tinha uma teoria sobre o frio e outra sobre o calor, a de tipo galileano uma só, sobre a temperatura.  Já é hora de pararmos de ter duas teorias sobre os transtornos psicológicos, ambas dando fundamento a uma série de variações técnicas : 

(a) uma teoria junguiano-abrahamiano-rankiano-ferencziano-kleiniana para os distúrbios arquetípicos; e
(b) outra, freudiano-abrahamiano-ferencziana , para os transferenciais, ou de – o que também é possível – fazermos simplesmente uma grande salada com tudo isso.

Na nosologia psicológica, nossos diagnósticos ainda são essencialmente a potiori.  Entenda-se:  se um paciente apresenta 80% de sintomas esquizofrênicos, 15% de sintomas obsessivos e 5% de sintomas histéricos, vai levar o diagnóstico de esquizofrenia tout court.  Assim, relativamente às duas “classes” de pacientes a que nos vimos referindo, devemos estar sempre atentos a que, por sob elas, corre um contínuo que pode ser percorrido (inclusive por um mesmo paciente, ao longo seu tratamento), tanto na direção da tipicidade arquetípica quanto da tipicidade neotípica.
Fundamental, de qualquer forma, é reconhecer que essas classes existem e que não há cabimento em tentar compreendê-las com os mesmos conceitos ou submetê-las ao mesmo tipo de tratamento psicológico. Passamos a considerá-las.

1. TRANSTORNOS ARQUETÍPICOS:

Os transtornos arquetípicos, como vimos, são definidos por uma insuficiência de vínculos neotípicos, que devem ser construídos em uma relação pessoal , tendo ficado explícito que chamar essa relação pessoal de transferencial é uma verdadeira catástrofe terminológica . A isso, vale acrescentar que, no que diz respeito a esse tipo de transtorno:

i. seus arquétipos nucleares são o trauma do nascimento (Rank) e o desejo de fetalização, seja, de retorno à situação intra-uterina (Ferenczi);
ii. em conseqüência disso:
a. suas fantasias de ataque referem-se geralmente ao corpo inteiro;
b. suas ansiedades são de tipo paranóico;
iii. formatam a relação com seus terapeutas segundo “coisas que nunca aconteceram, mas sempre existiram”
iv. seus sonhos são correspondentemente compreendidos sem maior esforço a partir de nosso conhecimento de mitos e símbolos, dificilmente remetendo a neótipos infantis;
v. seus vínculos pessoais são excessivamente frágeis, sendo facilmente rompidos por estímulos que desencadeiem angústia (Klein);
vi. impera neles uma relação ambivalente com uma mãe onipotente que representa ao mesmo tempo (a) o útero que acolhe e (b) a vagina que expulsa (arquétipos escondidos por Klein sob a forma de “seio bom” e “seio mau”);
vii. em transtornos arquetípicos de tipo depressivo, o paciente se identifica com a vagina, acusando-se pelo pecado da expulsão (posição basicamente feminina);
viii. em transtornos arquetípicos de tipo paranóico, o paciente se identifica com o feto, vítima daquela expulsão (posição basicamente masculina) ;

2. TRANSTORNOS NEOTÍPICOS:

Os transtornos neotípicos, segundo a terminologia proposta, são definidos pela presença de memórias hipertônicas de vínculos neotípicos recalcados.  Sobre a natureza desses reina incontestavelmente Freud e pouco do detalhamento que se segue não proveio dele:

i. o arquétipo nuclear – posteriormente formatado em neótipos – desse tipo de paciente é o do coito-sadomasoquista, em que o pênis “castiga” a vagina pelo “pecado” de nos haver parido ;
ii. em conseqüência disso:
a. suas fantasias de ataque referem-se geralmente a partes do corpo, representantes das genitálias masculina e feminina;
b. suas ansiedades são de tipo fóbico.
iii. distorcem a relação com seus terapeutas, transferindo sobre ela as memórias hipertônicas dos neótipos a que estão fixados;
iv. a compreensão cabal de seus sonhos fica na dependência de material associativo, remetendo freqüentemente a lembrança de neótipos infantis anteriormente recalcados;
v. seus vínculos pessoais são sólidos, porém rígidos, não sendo facilmente rompidos por estímulos que desencadeiem angústia;
vi. imperam neles relações triangulares em que a rivalidade com um determinado objeto  convive com a atração por outro (em Freud, essa triangulação fica associada às figuras parentais, mas essa amarração específica, como demonstrou Malinowski  é contingente e não essencial);
vii. em transtornos neotípicos de tipo histérico, basicamente feminino, o paciente se identifica com a vagina, fica na posição de vítima e teme os ataques do pênis, identificado com um bebê que se vinga da expulsão; 
viii. em transtornos neotípicos de tipo obsessivo-compulsivo, basicamente masculino, o paciente se identifica com o pênis, fica na posição de algoz e culpa-se por isso.

D) ESTRATÉGIA E TÉCNICA :

Estratégias psicoterápicas têm fim, técnicas psicoterápicas são meios de implementação desses fins.  A catarse, por exemplo, indicada em determinados contextos emergenciais, é uma estratégia psicoterápica.  A hipnose, determinadas drogas (o pantotal sódico, o amobarbital, o ácido lisérgico etc.), os festivais (ritos carnavalescos e religiosos etc.), são técnicas diversas, mediante as quais a estratégia catártica pode ser implementada.

Feita essa diferenciação, é fácil deduzir qual a estratégia psicoterápica adequada aos transtornos neotípicos e qual aos arquetípicos e nomeá-las de acordo.

E) PSICANÁLISE E PSICOSSÍNTESE:

Visto que transtornos neotípicos são devidos a memórias hipertônicas de vínculos passados recalcados e repetidos de forma automática e rígida em virtude do processo transferencial, a estratégia psicoterápica a ser eleita deve logicamente visar à desconstrução desses vínculos, via dissolução de sua transferência, sendo a técnica psicanalítica freudiana o melhor exemplo disso. 
Isso posto, toda técnica que implementar uma estratégia desconstrutiva, como aqui entendida, deve ser considerada psicanalítica, só devendo ser aplicada a pacientes que atingiram a etapa verbal de nosso desenvolvimento psicológico, tendo-se estabilizado nela.
Por outro lado, se os transtornos arquetípicos são devidos a insuficiência no desenvolvimento de vínculos pessoais suficientemente fortes para servir de sustentáculo à formação de neótipos, a estratégia psicoterápica a ser eleita deve logicamente visar à construção de tais vínculos, de natureza muito mais real do que transferencial, onde – seja qual for a técnica empregada para implementar essa estratégia – é essencial que as intervenções do terapeuta gerem o mínimo possível de angústia .  A técnica junguiana é bom exemplo disso.  Toda técnica que implementar uma estratégia construtiva, como entendida aqui, deve ser considerada psico[s]sintética, só devendo ser aplicada a pacientes que não chegaram, global ou parcialmente, à etapa verbal de nosso desenvolvimento psicológico, firmando-se nela.

PARTE IV

O NÍVEL META

Cumpre abordar mais dois grupos de diferenciação terminológico-conceitual para que possamos nos apossar de forma mais acabada da pirâmide teórica onde se encontram os conceitos de arquétipo, neótipo, formatação, transferência, contratransferência, transtornos arquetípicos, neotípicos etc.. 
Essa minha proposta exige aprofundamento em separado, portanto, vou, neste espaço, enunciá-la de forma sucinta e dogmática.

A) META-OCORRÊNCIA E METAMBIENTE:

1. META-OCORRÊNCIA:

Caso A:

(a) eu tenho um pai agressivo;
(b) eu comunico a ele que isso me faz sofrer;
(c) ele me responde:
(i) “Caramba, meu filho, eu não tinha consciência de que estava machucando você com essa minha maneira agressiva de ser.  Mas, na verdade, eu vejo que sempre fui assim.  Não me controlo e, com isso, machuco pessoas de quem eu gosto e não quero machucar.  Muitas vezes, nem percebo que estou machucando.  Acho que você me ajudaria apontando-me toda vez que eu agrido você sem me estar dando conta disso...”  Ou que, em vez de assim, retruque:
(ii) “Como agressivo?  Você não vê que eu faço isso para seu bem?  Só assim eu estou preparando você para  a vida!  Para não ser um mariquinhas, que, aliás, parece que já é.  Você deveria é me agradecer por eu ser assim!”

Caso B:

(a)  eu tenho um pai delicadamente firme, amoroso e gentil;
(b)  eu comunique o quanto isso me faz admirá-lo e gostar dele;
(c)  ele me responde:
(i) “Caramba, meu filho, fico satisfeito de ouvir isso.  Aliás, eu também amo e admiro muito você...”  Ou, em vez disso:
(ii) “Ah, meu filho, eu não faço mais do que minha obrigação...  Aliás, você se lembrou de dar banho no cachorro?”

Nas distinções que pretendo introduzir no vocabulário técnico da Psicologia, as “ocorrências” lato sensu” englobam:
 
(a) “as ocorrências stricto sensu” – ou, mais simplesmente, “ocorrência” – relativas, em nossos exemplos, ao comportamento – agressivo ou amoroso – do pai; e
(b) “as meta-ocorrências”, relativas à maior ou menor capacidade de escuta desse pai relativamente aos efeitos que seu comportamento têm sobre o filho.
 
Generalizando, podemos ter, assim, quatro possibilidades, ilustradas pelos dois casos – fictícios – relatados:

Caso A:

1. Ocorrência desfavorável somada a:
1.a.  meta-ocorrência favorável; ou a
1.b.  meta-ocorrência desfavorável;

Caso B:

1. Ocorrência desfavorável somada a:

1.a.  meta-ocorrência favorável; ou a
1.b.  meta-ocorrência desfavorável;

2. METAMBIENTE:

Da distinção entre “ocorrência” e “meta-ocorrência” decorrem automaticamente outras, quais sejam, a de um campo , o “ambiente lato sensu”, abrangendo dois sub-campos:

(a) o “ambiente stricto sensu” – ou, mais simplesmente, “ambiente” – como “sub-campo” que abrange as “ocorrências”; e
(b) o “metambiente” como o “sub-campo” que abrange as “meta-ocorrências”, ou seja, o sub-campo do campo total onde ocorre – ou não – o processamento verbal das ocorrências do “ambiente (propriamente dito)”.

B) AMBIENTE, METAMBIENTE, TRANSTORNOS ARQUETÍPICOS E NEOTÍPICOS:

Defendo as seguintes teses, que, como disse, não podem ter sua validade confirmada ou desconfirmada aqui:

1)  A qualidade do “ambiente”, em seu senso estrito, é o que determina a presença, ou não, dos transtornos arquetípicos.  Se ela é “muito desfavorável” (ah, como seria bom metrificar!), o sujeito não consegue formatar seus arquétipos, transformando-os em neótipos; 
2)  Se é “suficientemente favorável”  para que essa transformação ocorra, mas a qualidade do “metambiente” é “suficientemente desfavorável”para impedir que esses arquétipos formatados sejam eutonizados e, conseqüentemente, accessíveis à consciência, tais formatações vão permanecer inconscientes e hipertônicas, gerando as transferências que caracterizam os transtornos neotípicos.

C) PSICOTERAPIA AMBIENTAL ou PSICOSSÍNTESE:

Frente ao exposto, em nada admira que profissionais – Jung, Ferenczi, Klein etc., cada um a seu modo –  voltados para o trabalho com transtornos causados por graves defeitos de seu ambiente  infantil, passassem a dar atenção a quais correções deveriam ser introduzidas no “ambiente”  psicoterápico stricto sensu  – portanto, à sua relação pessoal com os pacientes.
Infelizmente, não era para qualquer um ter coragem suficiente para abandonar nomes – como “Psicanálise” e “transferência” – e práticas – como a interpretação – que já se haviam tornado griffes capazes de revestir com manto de cientificidade a atividade de quem os empregava. 
Particularmente no que diz respeito à transferência, Ferenczi, dentre os citados foi o mais corajoso, Jung o mais confuso , Klein a mais irresponsável.

D) PSICOTERAPIA METAMBIENTAL ou PSICANÁLISE:

Pacientes neotípicos foram vítimas de graves perturbações em seus metambientes, ou seja, no sub-conjunto de suas relações com o mundo referentes à possibilidade – ou não – de comunicar verbalmente o que lhes ocorria em seus ambientes. 
A obra de Freud é um mergulho na natureza desses metambientes e na natureza das alterações metambientais que deveriam ser introduzidas no ambiente terapêutico para servir a esses pacientes. 
Desse profundo mergulho, nasceram novos conceitos e novos termos para os descrever, tais como Psicanálise, proto-recalque, proto-fantasia, pulsão, eu, super-eu, isso, fixação, transferência, neurose atual, psiconeurose narcísica, psiconeurose transferencial, conceitos e termos que se tornaram referência para todos os ramos da Psicologia – profunda ou não – que apareceram depois.
Devemos, na esteira do conceito de metambiente, acrescentar a esse aparato teórico ainda outro conceito – o de metatransferência – e, como não poderia deixar de ser, também seu inescapável derivado – o de metacontratransferência – os quais abordo sucintamente a seguir.

E) METATRANSFERÊNCIA:

1. O CONCEITO:

Vimos que a transferência é causada pela presença em nosso psiquismo de uma memória hipertônica neotípica inconsciente que se impõe sobre percepções atuais, distorcendo-as.  Para a Psicanálise – entendida em sua oposição à Psicossíntese  – é fundamental separar dois componentes distintos dessas memórias, tarefa e a que não se prestou devida atenção.  Eis tal distinção, indispensável para guiar nossas intervenções num ambiente :  parte dessas memórias se refere a nosso “ambiente” – no senso estrito, vejo-me compelido a repetir –  outra, a nosso “metambiente” infantil.  O que nos leva à seguinte taxinomia:

(a) Transferência lato sensu:
(a.1)  Transferência ambiental (= transferência);
(a.2)  Transferência metambiental (= metatransferência).

Exemplo:  eu amava meu pai (= ocorrência), meu pai ficava envergonhado quando eu demonstrava meu amor por ele, levando-me a não verbalizar esse amor (= meta-ocorrência), confundo meu analista com meu pai, passo a amá-lo (= transferência) e bloqueio minha expressão verbal desse amor porque penso que vou envergonhá-lo (= metatransferência).

2. O MANEJO:

a. A interpretação metatransferencial:

Ora, visto que a Psicanálise foi – consciente disso ou não – prioritariamente construída para resolver problemas metambientais – não ambientais, como a Psicossíntese – é a dissolução da metatransferência, não da transferência, seu escopo principal.
Assim, é muito mais eficiente, para esse fim, comunicar a um paciente:
“Você falou mais baixo quando disse que está com raiva de mim. Tem idéia de por quê?”
Certamente mais eficiente do que perceber essa raiva dele e enunciá-la para o paciente .
Freud namorou essa idéia – em particular (a) quando afirmou que não se deve interpretar a transferência antes que haja um bloqueio das associações livres do paciente e (b) quando afirmou que o analista deve interpretar a resistência antes do resistido – mas não casou com ela. 
E, como se sabe, namoros não costumam dar filhos – pelo menos não tantos... – quanto casamentos...

b. Os indicadores de ruptura;

A literatura psicanalítica é farta em informações que nos facilitam decodificar elementos cifrados do material fornecido por pacientes.  E assustadoramente ausente em dar indicações de, frente ao material fornecido, escolher qual o fragmento dele está maduro para, ao sofrer intervenção do psicanalista, resultar em associações, sonhos e alumbramentos , em vez de recrudescer resistências e agravar sintomas.
Para ter o efeito desejado, mesmo a intervenção metatransferencial – a mais eficaz dentre todas à disposição de um psicanalista – deve ser feita sobre um material maduro para recebê-la.
Chamei de “indicadores de ruptura” os sinais enviados pelo paciente de que, num determinado lugar de seu discurso, ele está sedento de escuta, mas temendo os resultados que poderiam advir por tentar obtê-la.
Mais uma vez, vejo-me frente a um tema que exige aprofundamento em um espaço basicamente seu e, portanto, limitar-me-ei a fazer uns curtos comentários sobre esses indicadores, enriquecendo-os com alguns exemplos.
Antes de tudo, cabe assinalar que só é indicado avançar sobre o que chamei de “indicadores de ruptura” quando eles são monótonos, ou seja, quando se limitam a um mesmo tema.  Quem atentar para esses indicadores de ruptura vai ficar – como fiquei eu – surpreendido com a freqüência com que essa monotonia se apresenta. 
Isso revela-se de forma particularmente evidente em uma primeira entrevista:  o paciente fala sobre inveja, raiva, tristeza, saudades, medo, culpa etc., mas só acrescenta “entendeu?”, quando fala de culpa. 
Ora, ele não me conhece.  Por que acharia que eu entendi quando ele falou de todas as outras emoções, mas não quando falou de culpa? 
A experiência clínica comprova que, num tal caso, “culpa” é o único material sobre o qual ele está (a) querendo ser entendido e (b) está preparado para isso.  E, sobre esse material, a intervenção correta é de natureza metatransferencial, do tipo: 

(a) “Você percebeu que, várias vezes durante a entrevista, me perguntou se eu entendi?” ...
(b) [Se percebeu] “Percebeu onde?” ...
(c) [Se não percebeu] “Foi só quando você falou de culpa.  Por que eu entenderia quando você estava falando sobre inveja, raiva, medo e, quando sobre culpa, não? 
(d) Permitia-se falar sobre culpa no (meta-)ambiente em que você cresceu?”

Dou minha mão à palmatória, se, com esse tipo de intervenção, feita nesse lugar de seu discurso, o paciente não acrescentar material significativo – sonhos e associações sobre o passado remoto e recente – para o aprofundamento de sua análise.  Também dou se ele fizer igual acréscimo a partir de intervenções feitas em outros lugares e de outro tipo.

São indicações (IRs = indicadores de ruptura) de que o paciente está querendo ser escutado, mas teme em tentar fazê-lo:

a) Presença de um determinado assunto em freqüência significativamente maior do que a dos demais;
b) Intervenções como:  Sabe?  Né?  Entendeu? Viu?
b) Falar mais alto;
c) Falar mais baixo;
d) Gaguejar;
e) Sentar na beira da poltrona;
 f)  Etc., etc., etc., etc.,etc,etc,etc..

Como afirmei, raramente ocorre que os IRs não se foquem, durante um bom tempo, sobre um mesmo e único tema.  Só vi essa “falta de monotonia” em duas situações clínicas:

(a) quando o trabalho sobre um tema já está por terminar e outros temas estão rivalizando para decidir qual vai ser o próximo da fila, caso em que os mais variados temas parecem rivalizar por prioridade na escuta; e
(b) quando o paciente é ou está mais gravemente regredido e revive uma época em que não era apenas a um elemento de seu mundo interno, mas a ele como um todo, que seu metambiente rejeitava.

F) METACONTRATRANSFERÊNCIA:

1. O CONCEITO:

O conceito de metacontratransferência é, obviamente, um subconjunto do de metatransferência, correspondendo a toda e qualquer metatransferência proveniente do psicanalista e voltada para seu paciente.

2. CAUSA:

A presença, no psiquismo do analista, de uma memória hipertônica metambiental que dificulta sua fala e sua escuta na relação com o paciente. 
Tenho um exemplo paradigmático de metacontratransferência.  Quando perguntei a uma supervisionanda por quê ainda não havia falado para um determinado paciente sobre um certo assunto, ela, a despeito de suas resistências, muito consciente de si mesma, respondeu-me: 
“Porque, quando eu falar isso para ele, eu também vou ouvir!”

4) MANEJO:

Metacontratransferências relevantes para o trato com um determinado paciente são aquelas que impedem o terapeuta de atuar em conformidade com o que determina a estratégia  psicanalítica. 
Assim, para a detecção de uma metacontratransferência, é necessário, seja um supervisor, seja um suficiente conhecimento da técnica psicanalítica por parte de quem é por ela vitimada, para que tal metacontratransferência seja detectada e o terapeuta em tela, por meios próprios ou com a ajuda de um colega, faça a eutonização das memórias hipertônicas recalcadas que dão origem a tal distúrbio, indiscutivelmente prejudicial para seu desempenho como terapeuta.

PARTE V

CONCLUSÃO


A) TRANSFERÊNCIA E CONTRATRANSFERÊNCIA:  ONDE ESTAMOS?

A diferenciação feita por Freud, dentro do conjunto geral das reações humanas, de um subconjunto, extremamente bem caracterizado, denominado ‘transferência’, foi um passo evolutivo dentro da teoria psicológica, assim como o é diferenciar, dentro daquele conjunto, ainda outros, tais como os de “metambiente”, de “metatransferência” e de “formatação”. 
Até agora, os grupos que – aberta ou sorrateiramente – afastaram-se de Freud fizeram o desserviço de empurrar a Psicologia para um caminho involutivo, que, em vez de multiplicar as diferenças e interrelacioná-las, dedicam-se a borrar as que foram por ele estabelecidas.
Os autores e escolas que não trabalharam ou não trabalham com os conceitos originais de transferência e de contratransferência, mas não quiseram abrir mão do status que a obra de Freud emprestou a esses termos, fizeram o caminho inverso daquele que Haeckel aponta ser percorrido por todo o processo de evolução:  em vez de continuarem, no campo da Psicologia, o trabalho de diferenciação e integração das partes diferenciadas, tiraram a especificidade teórica dos conceitos de transferência e contratransferência, percorrendo um caminho involutivo na história dessa ciência.
Com isso, durante algum tempo – até por volta da metade do século passado – muitos soi-disants psicanalistas  – sem trabalhar de fato o que Freud chamou de transferência e de contratransferência, sem dissolvê-las, eutonizando memórias neotípicas, dando-lhes acesso à consciência e, com isso, dissolvendo armaduras caracterológicas  e sintomas, ou seja, sem, de fato, fazer Psicanálise – foram capazes de usufruir, sem de fato exercê-la, do status a que Freud alçou essa ciência. 
Mas, se é fácil enganar poucas pessoas durante muito tempo e muitas pessoas durante pouco tempo, menos fácil é enganar muitas pessoas durante muito tempo.  Assim, hoje, é a Psicanálise que está perdendo seu status de cientificidade, por ter tantas vezes tido seu nome usado em vão.  Já é tempo de ressuscitar a Fênix psicanalítica, arrancando-a das mãos daqueles que como Jung e Lacan, passaram a proteger com a “papinha” psicossintética os que estavam preparados para digerir, com vantagem, a “feijoada” psicanalítica.

B) TRANSFERÊNCIA E CONTRATRANSFERÊNCIA:  PARA ONDE IR?

Para ressuscitar essa Fênix, é central reconhecer que pacientes arquetípicos são diferentes dos neotípicos:  não transferem, curam-se mediante “good enough interpersonal relationships”. 
Reconhecido isso, torna-se mandatório iniciar um estudo científico criterioso e alentado sobre que características tipificam tais “relações pessoais favoráveis”, desenvolvendo, consequentemente a isso, novas terminologias que adequadamente recubram esse diverso tipo de trabalho, conseguindo para ele o mesmo respeito que Freud obteve para a obra que gestou.

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