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PSICANÁLISE E CINEMA (I): O FANTASMA DA LIBERDADE.

O surrealismo, corriqueiramente entendido como uma explosão de nonsense, jamais foi, em sua dimensão cinematográfica, mais magnificamente representado do que por “O Fantasma da Liberdade”, de Luís Buñuel. A visão que irei expor dessa assombrosa obra de arte irá, por um lado, servir para nos familiarizar com os recursos essenciais da interpretação psicanalítica e, por outro, por em dúvida o pressuposto de que surrealismo é sinônimo de falta de sentido. Passo a descrever o filme por partes, comentando-as logo após.

TRECHO 1

Descrição

Antes de iniciar-se o desenvolvimento da trama, lemos, na tela, um aviso: “Os personagens desse filme são fictícios e qualquer semelhanças com pessoas vivas ou mortas é mera coincidência.” O filme começa com a invasão de Toledo, Espanha, pelas tropas de Napoleão. Os invasores acham-se dentro de uma fortaleza ou castelo e perfilam os vencidos contra um muro, fuzilando-os. Segue-se uma pequena orgia na edificação invadida. Um dos oficiais, após haver aberto um sacrário e, tomando do cálice onde se encontram as hóstias, comido algumas, ajoelha-se diante de duas estátuas mortuárias de um casal, começando a acariciar eroticamente a figura da rainha. Surpreendentemente, a figura mortuária do esposo toma vida e, com um movimento certeiro de seu braço direito, golpeia a cabeça do oficial invasor. Este, como vingança, decide profanar o túmulo da mulher. A sepultura está sendo aberta, e vemos que a estória que estivemos presenciando era objeto da leitura de um livro por uma senhora, que parara em uma frase algo como “E, abrindo o caixão, ele vê a rainha ornada de sua parafernália” e que, virando-se para outra mulher, lhe pergunta “O que é parafernália?”. A outra lhe responde: “Juridicamente, é uma palavra que se refere aos bens da mulher”. Aparecem, então, duas meninas adolescentes, de bicicleta, a que uma das duas mulheres pergunta: – “De onde vocês vêm?” Uma delas responde: – “Nós atravessamos a ponte de bicicleta.” Vemos, em seguida, um homem de pé, diante de um escorrega, observando essas meninas que descerem por ele. Chama-as, então, e diz-lhes ter um presente para elas. Sentam-se. Ao fundo vê-se um carrinho de bebê. O senhor lhes diz ter “lindas imagens” – umas fotos – para mostrar-lhes, mas que só o fará se elas prometerem que não as mostrarão a ninguém. Elas acenam que sim, com a cabeça. As meninas parecem agradavelmente excitadas com as fotos, que lhes são ofertadas com o alerta de que as podem mostrar a amigas, mas não a “gente grande”.
Nova cena. Estamos no interior de um apartamento. A primeira imagem é a de uma enorme aranha, empalhada. Sentado em um sofá, um homem observa os objetos que decoram um aparador. De repente, levanta-se, exclamando: – “Estou farto de simetria!” E, deslocando um relógio que se encontrava no centro do aparador, coloca em seu lugar a enorme aranha empalhada. Afasta-se, para admirar o efeito da substituição, e ouve a voz de sua mulher: –“Henri?!” Ele retruca, surpreso: – “Ué, você já voltou!” E ela: – “Eu nem mesmo saí!” Henri parece algo desanimado e a mulher põe-se a consolá-lo. Propõe que aproveitem as férias para passar uma semana frente ao mar, ao que o marido se nega, dizendo, “Por que o mar? O mar não é mais o mar!” Chega Véronique, uma das filhas, acompanhada da senhora que, no parque, se interessara sobre o significado de “parafernália”, e que, concluímos, é sua babá. A menina entrega as fotos que recebera no parque à sua mãe, sugerindo que as mostre também a seu pai. Sai. A esposa comenta: – “Ontem, passei por você na rua, você olhou para mim e não me reconheceu”. Responde Henri: – “Eu estou dormindo muito mal, atualmente; passo, por vezes, toda a noite acordado” . A esposa, então, volta, pela primeira vez, o olhar para as fotografias e se mostra evidentemente indignada, bradando: “Françoise!” Vai até à filha e interroga-a sobre onde encontrou aquelas fotos. A menina responde que as ganhou de um senhor “muito gentil”. A babá é censurada por deixar a menina ter contato com estranhos e a menina ameaçada de ser punida caso aceite novamente presentes deles. É mandada de volta para o quarto, no que é seguida pela babá. A mãe retorna para junto do marido. “Que vergonha!” – exclama. O marido pede para ver as fotos. “É repugnante” – retruca o marido – mas que podemos fazer?” A mulher, desanimada, diz que não pode vigiar a menina todo o tempo e o marido puxa-a para si, sentando-a em seu colo e, olhando para as fotografias num clima que se torna subitamente erótico, começa a relembrá-la de algum picante episódio ocorrido quando eram ambos jovens, na casa dos pais dela. Beijam-se, com ardor, passando logo a examinar as fotografias, pontilhando esse exame com exclamações de espanto, excitação e divertimento. A primeira, mostra o sol próximo ao horizonte; a segunda, mostra, no fim de uma alameda, o que seria possivelmente um templo; a terceira, uma construção aparentemente antiga cuja natureza não é clara; a quarta, mostra o Partenon; a quinta, um veículo que começa a entrar no que parece ser um túnel; a sexta, o Arco do Triunfo (que, aliás, é classificado de “obsceno”); a sétima, uma grande edificação, talvez setecentista, de natureza difícil de determinar; a oitava, um obelisco; a nona... Bem, em torno da nona cria-se uma pequena rusga. O marido não quer mostrá-la à mulher, que insiste e acaba arrancando-a das mãos daquele, mas não antes de que ele a tenha rasgado. Trata-se de uma visão frontal do Taj Mahal, que ficara com o rasgo lhe passando ao meio. A mulher exclama: – “Você tem razão! Essa realmente é forte demais!” E rasga em mais pedaços a foto. Henri diz que não irá jantar naquela noite, pois deseja recolher-se cedo. A mulher insiste que ele vá ao médico. Véronique volta à sala e o pai lhes dá as fotografias, dizendo que, se quiser, pode vê-las. A menina agradece e pergunta se pode trocá-las por figuras de aranhas. O pai aquiesce e despacha-a.
É noite. O casal está recolhido ao leito. A mulher dorme. O marido, sentado na cama, dá corda em um relógio de cabeceira. Termina de fumar um cigarro, apaga-o e também a luz do abajur, que iluminava o ambiente. O tique-taque do relógio soa inverossimilmente alto. Passa-se algum tempo. Henri acende novamente a luz de sua cabeceira. Ouve-se o ranger de uma porta e, surpreendentemente, um galo atravessa o quarto. O quarto fica escuro de novo, mas logo vemos entrar no quarto uma senhora vestida de negro, barrete frígio à cabeça, com uma vela em sua mão direita, numa posição que a faz parecer com a estátua da liberdade, enquanto com a outra mão, tira um relógio do bolso e mostra-o para Henri. Ela sopra a vela que trazia consigo. Surge, então, um carteiro de bicicleta e joga sobre a cama uma carta. Henri pega a carta, olha para seu sobrescrito e, em seguida, indagativamente, para Hélène. O carrilhão começa a bater as quatro horas e entra no quarto, vindo da esquerda, um avestruz, atravessando-o e saindo pela direita.

Introdução à interpretação

Determinadas obras de arte se prestam a interpretações que pretendem explicitar elementos inconscientes, outras, não. Quando esse tipo de interpretação é cabível, ele apresenta duas variações. A primeira dessas variações – batizemo-la de interpretação explicativa – aplica-se a um material cuja mensagem explícita é perfeitamente compreensível. O filme O Doce Abraço da Morte, baseado em um caso real, pode servir de exemplo. Sua trama fala de um homem que casa sucessivamente com cinco mulheres, mata duas delas e também à sua própria mãe. Ninguém tem dificuldade de entender tal enredo, mas o filme nos dá informações que permitem irmos um pouco mais além: tentar inferir os motivos inconscientes teriam levado seu protagonista a apresentar um comportamento tão heterodoxo. A segunda variação de interpretação do inconsciente – chamemo-la de decodificadora – aplica-se a materiais em que a trama explícita é fantástica ou sem nexo. O objetivo desse tipo de interpretação é encontrar um possível sentido real oculto no que aparentemente não tem tal sentido. A teoria psicanalítica e alguns de seus desenvolvimentos posteriores, como a Loganálise, propõem que as obras de arte de cunho surrealista, freqüentemente entendidas como mera expressão de nonsense, constituem material desse segundo tipo, prestando-se a uma interpretação decodificadora que nos permite acesso a seu sentido real e oculto. O 0bjetivo deste trabalho é mostrar como opera essa decodificação aplicando-a sobre a mais acabada das expressões do surrealismo no cinema, o filme O Fantasma da Liberdade, de Luís Buñuel. Mas como saber se, ao fazê-lo, não estamos, simplesmente, “procurando pelo em casca de ovo”, como clones do ultra zeloso psicanalista que, ao passar por uma pessoa que lhe dá bom dia, retruca perguntando o que ela quer dizer com isso? Passo, portanto, antes que nos debrucemos sobre a análise do filme, a repassar um conjunto de conceitos que nos poderão parcialmente proteger, por um lado, contra a ingenuidade cega, e, por outro, contra obsessão paranóica de tudo interpretar.

Conteúdo Manifesto e conteúdo latente

Quem conhece meu trabalho sobre a análise simbólica de um teste de Rorschach sabe que a “inocente” resposta, dada por uma adolescente epilética, em que se via uma criança com chuca-chuca sentada em uma daquelas cadeiras altas com uma parte móvel que serve de mesa, fez parte de um raciocínio que me fez chegar à conclusão de que a epilepsia em questão havia sido causada por excessiva anóxia – falta de ar – ocorrida durante um parto em que a vagina não tinha apresentado suficiente dilatação. E por quê? Por que aquele tipo de cadeira é feito especificamente para manter a criança presa nela e o contexto do teste me permitia inferir que a “cadeira” que, no conteúdo manifesto, representava um móvel, no latente, representava “quadris”. Assim, sentada na cadeira = presa na cadeira = presa nos quadris = traumatismo de parto  anóxia  epilepsia. Dados obtidos posteriormente confirmaram o acerto de minha interpretação: a falta de dilatação da mãe obrigara a uma cesariana de emergência, mas não a tempo de impedir que uma anóxia excessivamente prolongada deixasse uma seqüela de natureza epilética. Outro exemplo, este já extraído do filme de Buñuel. Num determinado momento do desenrolar da trama, vemos a tradução legendada da película colocar uma personagem, Henri Foucault, dizendo que “o mar não é mais o mar”. A disparidade entre manifesto e latente aqui, na verdade, só pode ser reconhecida se acompanhamos o que está acontecendo em francês. Nessa língua, não podemos distinguir se o que ele está dizendo é “o mar não é mais o mar” – “La mer n’est plus la mer” – ou “a mãe não é mais a mãe” – “La mère n’est plus la mère” – pois os dois tipos de frases, pronunciadas, soam de maneira absolutamente idêntica. O contexto explicito – conteúdo manifesto – do filme, nos sugere, embora gerando uma situação algo canhestra, que ele está falando do mar, não da mãe. Afinal da contas, tinha acabado de ser convidado para passar férias em um balneário. O conteúdo latente, entretanto, sugere, bem ao contrário, que ele está falando da mãe e, como logo veremos, se seguimos essa outra linha de compreensão, muitos elementos aparentemente gratuitos do filme passam a encontrar sentido.

Símbolos

Alguns símbolos – entes ou processos, reais ou imaginários, que, por analogia, representam outros entes ou processos, reais ou imaginários – são universal e deliberadamente empregados, como, por exemplo, a terra, reconhecido símbolo da mãe; e o sol, que, por fertilizar essa última, é freqüentemente usado para representar o pai. Noutros, embora tenham uso generalizado, esse emprego ocorre de forma não muito consciente. “Boceta” é um conhecido equivalente, em linguajar chulo, da genitália feminina, mas poucos atentam para que essa palavra significa, literalmente, “pequena caixa” e que as caixas, pequenas – bocetas – médias ou grandes – caixões – quando usadas como símbolos, referem-se à genitália da mulher, em particularmente a seu útero. Todos também empregam o símbolo do planeta Marte (um círculo com uma seta obliquamente adicionada no sentido nordeste de sua circunferência) e o do planeta Vênus (um círculo com uma cruz ligada à parte mais ao sul de sua circumferência) para representar, respectivamente, o masculino e o feminino, mas poucos associam conscientemente a seta ao pênis e a cruz à vagina[O uso da cruz como símbolo da vagina foi particularmente acentuado por Rank em seu O Trauma do Nascimento]. Outros símbolos têm um uso mais particular. Uma determinada pessoa, consciente ou inconscientemente, percebe a analogia entre um ente ou processo e outro ente ou processo e usa um para simbolizar o outro. Buñuel fez isso, no filme em pauta, com a cena das crianças que descem por um escorrega, cujo conteúdo latente você já terá talvez entendido e sobre que logo nos voltaremos.
O nível em que se aproveita o conhecimento de um símbolo é variável. A maior parte dos brasileiros, por exemplo, sabe que “barata”, “baratinha” são termos usados para referência ao órgão genital feminino. Dificilmente, entretanto, um leigo irá lembrar-se de “aproveitar” esse conhecimento para captar o conteúdo latente de uma cena como a de outro filme de Buñuel, o Discreto Charme da Burguesia, em que um rapaz é torturado com choques elétricos que recebe sobre um piano, do qual saem centenas de baratas. Dificilmente, também, se lembrará de aproveitar-se dele quanto tentar entender sua fobia a baratas ou um sonho em que viu aparecerem vários desses atraentes animais. Com aranha, imagino que ocorra algo semelhante. Todos, provavelmente, compreenderão a malícia de uma música, bastante popular há alguns anos, em que o cantor falava que a cobra dele ia comer a aranha de alguém, mas dificilmente usarão esse seu entendimento para captar o conteúdo latente do gesto de Henri que, se dizendo cansado de simetria, coloca uma aranha empalhada no centro de um aparador, afastando o relógio que se encontrava ali.

O Processo Primário

O conteúdo latente se transforma em conteúdo manifesto através da ação do processo primário. As características do processo primário que nos interessam aqui são três. A primeira delas é a instabilidade de representação, que faz que um só elemento do conteúdo latente possa estar variamente representado, ora por um, ora por outro elemento do conteúdo manifesto ou, inversamente, que um elemento do conteúdo manifesto represente ora um, ora outro elemento do latente. Por exemplo, no trecho do filme que vimos de descrever, tanto o oficial que viola o sacrário, o senhor do parque e Henri representam, em nível latente, um só e único personagem, que logo conheceremos. A segunda característica do processo primário que nos interessa é a condensação: um só elemento manifesto pode representar dois ou mais, latentes. Certa feita, ao ser submetido ao um teste, um paciente portador de esquizofrenia respondeu “borboposa ou marileta”, evidentes condensações de “borboleta” e “mariposa”, imagens freqüentemente evocadas pelo material com que se viu defrontado. A terceira e última característica do processo primário que nos interessa aqui é seu absoluto descaso pelo princípio lógico da não-contradição. Para exemplificar isso, Freud usa a seguinte piada. Conta que Jacó rachou um prato que havia pedido emprestado a Isaac e que, perturbado quando esse lhe vem pedir conta do ocorrido, reage assim: “Olha aqui, Isaac, primeiro, você não me emprestou prato nenhum; segundo, quando você me emprestou o prato, ele já estava rachado; terceiro, eu lhe devolvi o prato inteirinho!” Como se vê, o que estava rachado mesmo era a própria cabeça do Isaac, mas, na verdade, é assim que todos nós funcionamos quando – como, por exemplo, ocorre no sonho – o processo primário toma conta de nós.

Complexos

O quarto e último conhecimento essencial para que ultrapassemos a ilusão de falta de sentido que em geral nos provocam tanto os sonhos de uma pessoa saudável, quanto os delírios de uma mente perturbada, ou uma obra de arte como a que estamos enfocando é o de algumas matrizes reacionais típicas da mente humana. Quando essas matrizes estão total ou parcialmente inconscientes, elas se tornam manifestas segundo os paradigmas do processo primário e recebem o nome de complexos, que é o que nos interessa aqui. Fazer uma listagem completa desses complexos - o Complexo de Édipo é o mais famoso deles – ultrapassaria de todo os objetivos deste trabalho e, portanto, abordarei apenas os dois de que em seguida nos iremos ocupar. O primeiro deles é o Complexo de Fetalização. Nele o sujeito está reagindo de forma intensamente traumática ao próprio nascimento e, dentre outras reações, tenta negar que ele ocorreu, assim como a existência do conduto que o tornou possível, a vagina, criando fantasias como, por exemplo, a de que as mulheres, particularmente a mãe, têm pênis. Os travestis e a atração por relacionar-se com eles são uma ilustração viva da tentativa de materializar a primeira dessas fantasias, a de que a mulher possui um pênis e, não, uma vagina. Como o alimento intra-uterino é o sangue, a defesa do psiquismo contra a presença inconsciente dessa matriz leva freqüentemente ao vegetarianismo compulsório. O segundo complexo a que me quero referir é o Complexo de Caim. Ele é a forma inconsciente do conjunto de reações típicas com que uma criança reage à gestação e ao nascimento de um novo irmão – ou irmã. Com a fragmentação típica de todo complexo, ele abarca as seguintes reações principais: primeiro, não nasceu irmão nenhum; segundo, nasceu, estou decepcionado e revoltado com todos os envolvidos no processo – pai, mãe, médicos, enfermeiras e o próprio recém-nato – por isso vou vingar-me de todos eles; e, terceiro, nasceu e – puxa vida! – como eu queria ter um irmãozinho...! Na variação desse complexo em que os irmãos são de sexos diferentes, essa última de suas vertentes adquire caráter libidinoso: o irmão mais velho, por exemplo, olha a irmã como uma possível companheira sexual. O Complexo de Caim, por incluir um novo encontro com a questão do nascimento, freqüentemente reativa elementos adormecidos do Complexo de Fetalização, reativando considerações sobre a existência ou não da vagina, a presença ou não do pênis na mulher, etc., etc..

As identificações

Complexos são fixações a situações não resolvidas, sendo a esmagadora maioria dessas situações, senão todas, de natureza interpessoal. Um dos elementos essenciais de nossas tentativas de resolver problemas de natureza interpessoal é tentar entendê-los através de nos colocarmos no lugar do(s) outro(s), imaginando como nos sentiríamos naquele lugar e, a partir disso, tentando inferir como ele(s) se sentiu(ram). Quando, ao fazê-lo, não perdemos a noção da diferença que existe entre esse(s) outro(s) e nós, o processo é chamado de empatia, quando essa diferença se perde, ele merece ser chamado de identificação. As identificações são elementos integrantes dos complexos. Se analisamos materiais que expressam o Complexo de Caim na variação em que um irmão tem que se defrontar com o nascimento da irmã, iremos certamente encontrar elementos em que esse irmão se identifica com a mãe, outros em que se identifica com o pai, outros em que se identifica com a própria irmã.

Interpretar ou não interpretar: eis a questão!

Há dois tipos principais de conteúdo manifesto que nos convidam a uma abordagem decodificadora. Ao primeiro desses dois tipos não falta inteligibilidade, falta verossimilhança. Aqui se alinham a maior parte das estórias infantis, das lendas e dos mitos, com suas mulas sem cabeça, seus unicórnios, centauros, vampiros, lobisomens, e com façanhas como a de Ícaro que, com asas feitas de penas, consegue chegar até junto ao sol. Ao segundo desses tipos falta inteligibilidade, esteja ele ou não permeado de elementos fantásticos. Com efeito, que inteligibilidade podemos atribuir ao fato de Henri mandar despedir a babá por ter essa deixado Veronique receber fotos que ele considerou impróprias para, mais adiante, dar as mesmas fotos novamente à filha?
As meras faltas de inteligibilidade ou de verossimilhança implicam existência de conteúdo latente? Pelo menos no que diz respeito à ininteligibilidade, isso nem sempre é verdade. Pacientes demenciados, por exemplo, podem produzir um tipo de material não só manifestamente ininteligíveis como também desprovidos de qualquer inteligibilidade oculta: eles são vítimas de lesões anatômicas tão graves do córtex cerebral que se vêem desprovidos da base neurológica que permite ao ser humano organizar de forma inteligível sua experiência do mundo. Também não revelam qualquer mensagem intencional, por exemplo, quadros produzidos por pessoas que, com os pés molhados de tinta, andam aleatoriamente sobre telas em branco. Se entendermos estar encontrando algum “significado” em produções desse tipo, estaremos, na verdade, agindo como quando reconhecemos imagens nas formações de uma nuvem, sem, por isso, estarmos justificados em concluir que a nuvem deseja falar conosco.
Mas, se nos defrontamos com um material de um desses dois tipos – o fantástico e o ininteligível – feito por mãos humanas, e não sabemos quem o produziu ou como ele foi produzido, que condições teremos para avaliar se tal produto merece, de fato, o esforço de uma interpretação decodificadora? Sugiro o seguinte: primeiro, verifique-se se há presença de símbolos e, segundo, verifique-se se esses símbolos se organizam de maneira suficientemente complexa – freqüentemente segundo as vertentes de matrizes reacionais típicas como aquelas a que anteriormente me referi – para podermos descartar a mera coincidência. (Com efeito, que uma nuvem tome a forma da cara de um urso ou de um carneiro pode ser atribuído ao acaso, mas se as virmos escrever no céu “beba Coca-Cola”, vamos desconfiar da presença de algo mais!)

Um pequeno exercício

Façamos um pequeno exercício, empregando o que aprendemos até aqui, antes de nos voltarmos sobre a tarefa, incomparavelmente mais complexa, de analisar o filme de Buñuel. Nosso exercício consistirá em avaliar se a lenda do vampiro tem, ou não, conteúdo latente. Os elementos essenciais dessa lenda são os seguintes: seu nome é Nosferatu, nasceu na Transilvania, dorme em um caixão, alimenta-se de sangue, com preferência pelo de mulheres virgens, transforma-se em morcego, foge da cruz, do alho e da luz, só pode ser morto por balas de prata ou por uma estaca de madeira enfiada em seu coração. Quem conhece certos símbolos e sabe da existência do Complexo de Fetalização desconfia que é desse complexo que a lenda do vampiro se derivou. Com efeito, Nosferatu significa “não nascido”; a negação do nascimento se repete quando o vampiro foge ao dia – que “dá a luz” – e, durante o curso desse, se recolhe a um caixão, conhecido símbolo de útero; alimenta-se, como um feto, de sangue; sua negação do conduto que o pariu, se expressa por sua preferência por virgens e por sua repulsa à cruz, que, por sua forma – uma reta barrada por outra – representa o “caminho difícil, embarreirado” da vagina; que se transforme em morcego, outro que nega a luz e alimenta-se de sangue, não passa de um óbvio desdobramento de sua natureza. A ligação de seu nascimento com a Transilvânia também não é sem sentido: “silva” é “selva”, em latim. Ora, bosques e selvas, em ambientes simbolicamente carregados, representam pelos pubianos e é atravessando esses últimos – daí, Transilvânia – que nascemos. Morrer é algo profundamente associado à idéia de voltar ao útero: revertere ad locum tuum – volte para o lugar a que você pertence – dizem os umbrais dos cemitérios. “Madeira” e “prata” são símbolos maternos. “Madeira” vem do latim “mater”, que deu “matéria”, “madeira” e “mãe”; “prata”, em latim, é “Argentum”, mas, também, com sua luz prateada, significa “Lua”, clássico símbolo de mãe. Ao fazer que símbolos maternos sejam mortais ao vampiro, a lenda realiza a fantasia desejada e temida de que se inverta o papel da mãe, que o fez sair do útero, atribuindo-lhe a função de, pela morte, fazê-lo retornar simbolicamente a ele. O vampiro representa uma parte muito regredida de nós mesmos. Como temos medo dessa parte, temos medo de vampiro e, para nos representar fielmente, também ele terá apresentar esse medo. E como esse medo do vampiro por vampiros se revela na lenda? Por metonímia, a famosa “representação do todo pela parte”. Afinal, entre alhos e vampiros, algo certamente se destaca: os dentes! Esse nível de regressão também implica que ainda não se desenvolveu a capacidade de nos olharmos a nós mesmos para exercer a capacidade de criticar nosso próprio comportamento: o vampiro, portanto, não tem imagem no espelho.
E então, a lenda do vampiro tem, ou não, conteúdo latente? Os italianos costumam dizer “si non è vero, è bene trovatto” – se não é verdadeiro, pelo menos é “bem bolado”. A análise que vimos de fazer expôs uma mensagem de fato oculta no âmago dessa lenda ou ela não passa de um engenhoso e bem sucedido exercício de invencionice interpretativa? Você decide.

E o autor?

Brinquemos um pouco. Millôr Fernandes contava a estória de um sujeito que era tão gordo, tão gordo, que no dia que caiu em si, matou-se. Pergunta-se, a partir disso: quando ele não estava em si, onde estava? Mais: na passagem do fora de si para o em si, ele voltou a si ou ele caiu em si? Se ele voltou a si, ao estar fora de si, estava provavelmente em coma, ou desmaiado; se caiu em si, o seu si estava provavelmente aprontando alguma, ocupado por algo ou por alguém. Então, o si dele, afinal das contas, não era tão dele... Bem, chega de brincadeira. Acho que já brincamos o suficiente para tornar agudamente explícito como é complexa a compreensão do comportamento humano e como, portanto, não é simples responder de forma adequada à recorrente pergunta que nos assalta toda a vez que entendemos ter encontrado conteúdo latente em alguma produção artística. Afinal, o autor de Nosferatu tinha consciência da mensagem latente de sua obra?
Há três formas básicas de estar fora de si. Numa, como vimos, o sujeito está inerte, vítima de um desmaio, ou de um coma. Nas outras duas, está atuante e algo toma conta do “seu” si. Nos casos de múltipla personalidade – raros, mas que, contrariamente ao que pensam alguns, não são apenas fruto da ficção – esse algo apresenta tal complexidade que chega a configurar um outro eu. Nos demais casos, mais comuns, esse algo corresponde à instância psíquica que Freud chamou de “da Es” – o Isso, ou, como querem alguns, o Id. Há um enorme conjunto de produções humanas – desde um simples lapso de linguagem até, passando por sonhos e sintomas, obras de arte da complexidade de uma Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carrol, ou de O Fantasma Liberdade, de Luís Buñuel – que, para serem cabalmente entendidas, exigem que avancemos até seu conteúdo latente. Essas produções requerem, para sua concretização, que algo diverso do eu oficial – seja meramente o isso freudiano, seja mesmo um outro eu – tenha, em maior ou menor medida, tomado conta do si de seus autores. Gênios como Buñuel, quando abrem mão do controle de sua produção artística, não dão espaço à desordem, mas, sim, a uma outra ordem, ainda que nem mesmo ele seja capaz de alcançá-la. Ninguém entendeu disso melhor que o transcendente Pessoa:

Emissário de um rei desconhecido
Eu cumpro informes instruções do além
E as bruscas frases que aos meus lábios vêm
Soam-me a um outro e anômalo sentido.

Como quando produzimos um sonho, Pessoa se vê tomado por algo que o faz gerar um resultado cujo significado total a ele mesmo escapa. Fazer isso em vigília e de forma esteticamente superior é próprio do gênio e idêntico ao que ocorre com Buñuel. Ouçamos esse último falando de sua maneira de criar:

“Uma imagem me vem à mente. Eu a contemplo, não a analiso; não me pergunto como surgiu, se brotou de uma associação de idéias, de uma emoção, de um sonho ou de uma lembrança. Nós, surrealistas nos deixamos subjugar dessa maneira por uma imagem. ... Certamente vão encontrar algum símbolo no meu filme, como sempre. Nunca os empreguei deliberadamente.” (Entrevista a Ivonne Baby, transcrita no primeiro número do jornal Opinião, em que o cineasta se refere a seu filme O Discreto Charme da Burguesia.)

Entretanto, assim como um sonhador, o artista pode, ou não, voltar-se posteriormente sobre sua obra e, com maior ou menor mestria, tentar entendê-la. Fernando Pessoa freqüentemente o fez. Respondendo sobre a gênese de seus heterônimos a seu crítico e amigo, Adolfo Casais Monteiro, revela uma lucidez de análise digna de um profissional:

“Perguntas-me sobre a gênese de meus heterônimos. A gênese de meus heterônimos está no fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou exatamente um histérico, ou se um histero-neurastênico, pois existem em mim fenômenos de abulia que a histeria não enquadra no registro de seus sintomas.”

Mas Pessoa apresentava a raríssima conjugação de uma superior inteligência expressivo-estética com a de uma superior inteligência reflexivo-explicativa. Buñuel, ao invés disso, embora possuidor de magnifica inteligência expressiva, prefere evitar qualquer risco de reflexão sobre sua própria obra:

“Tenho horror a rever meus filmes. Em Nova Iorque, fui uma vez com meu filho ao cinema, onde passava Tristana e saí depois de dois rolos.”

Deixou para nós a altamente gratificante tarefa de fazê-lo.

Interpretação

A advertência colocada logo ao início do filme, alertando-nos que as personagens da película tem origem na ficção e que qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas é mera coincidência, se aplicada ao seu conteúdo manifesto, parece ridiculamente sarcástica – com efeito, quantos galos, carteiros e avestruzes você já viu atravessarem quartos de pessoas que você conhece e que poderiam ser confundidas com o insone Henri? No entanto, se aplicada a seu conteúdo latente, ela não passa de um desfaçatoso despiste. Com efeito, se decodificamos o conteúdo latente da película, convencemo-nos – como dizem os americanos, beyond reasonable doubt – de que ele é uma expressão bem concreta de complexos muito reais, universalmente presentes na mente humana e que, pelo menos quando da produção do filme, estavam grandemente ativos na mente de alguém muito real, seu autor. Qual o exato papel que esses complexos desempenharam na vida real de Buñuel, entretanto, a análise de um filme não nos permite saber. Eles se expressaram através de comportamentos indesejados? Através de sonhos? De tiques? De sintomas físicos ou de distúrbios de humor? Ou, meramente – quando ativados por algum evento casual, como a leitura do conto de Becquer em que se diz ter inspirado Buñuel – através de maravilhosas obras de arte? De qualquer forma, não nos deixemos enganar, a semelhança das personagens e ocorrências de O Fantasma da Liberdade com “pessoas vivas ou mortas” não é mera coincidência...
Buñuel era o primogênito de uma prole de sete. A seu nascimento seguiram-se o três meninas. Uma delas tinha por nome Margarita. Completavam essa prole mais dois irmãos e uma irmã, nascidos em ordem que desconheço. O Fantasma da Liberdade aponta claramente para elementos do Complexo de Caim – com suas derivações fetais e edipianas – operantes na mente de um menino, ao defrontar-se com nascimento de uma irmã. No caso de nosso autor, ele teve a oportunidade de experimentar três vezes seguidas tal defrontamento, o que pode ter intensificado o complexo. Como a irmã de uma personagem do conteúdo manifesto do filme que iremos analisar, o Sr. Richepin, tinha por nome Margueritte e como Conchita – cujo nome coincide com a personagem feminina central de Esse Obscuro Objeto de Desejo – era a mais nova dessas três irmãs, seria plausível imaginar que Margarita era a mais velha dentre essas irmãs. Em torno do nascimento dela, portanto, Buñuel teria desenvolvido os elementos essenciais das três vertentes do Complexo de Caim: negar esse nascimento – e, juntamente com ele, negar a existência do conduto através de que ele ocorreu – reconhecê-lo e pretender vingar-se e, por fim, reconhecê-lo e libidinizar a relação com a recém-chegada. A representação desses elementos no conteúdo manifesto de O Fantasma da Liberdade são de uma coerência e obviedade absolutamente assombrosas. Vejamos.
Tomemos, para início de análise, um trecho do filme que, em seu nível manifesto, é de todo inverossímil e ininteligível e vejamos se, empregando os instrumentos de decodificação interpretativa que vimos de estudar, ele revela elementos do referido Complexo de Caim, adquirindo, a partir disso, verossimilhança e inteligibilidade. Refiro-me àquele trecho em que, durante a noite, um galo, uma mulher, um carteiro e um avestruz atravessam o quarto de Henri. Um carteiro deixa uma correspondência. Vendo o sobrescrito, Henri volta para Helène, que dorme, um olhar que claramente a implica na ocorrência. Ora, nos termos daquele complexo, isso poderia indicar o contato de Buñuel com os primeiros indícios de que a futura Margarida viria ao mundo e que Helène, que, no conteúdo manifesto, é sua esposa, no latente, representa sua mãe. Isso nos faz lembrar que galo, um símbolo clássico do arauto, é quem anuncia o nascer do sol, símbolo da vida. Se esse tipo de notícia, como dissemos, gera, ao mesmo tempo, negação e curiosidade, quem melhor para representar condensadamente essa dupla reação do que um avestruz? Conhecido símbolo de quem “não quer ver”, faz isso, paradoxalmente, “enfiando o nariz onde não é chamado”, num buraco, o mais popular dos equivalentes simbólicos da vagina! Agora, o mais complexo dos visitantes do quarto de Henri já pode ser compreendido. Délivrance (= libertação) é um dos termos que, em francês, se designa o parto. A mulher que entra no quarto de Henri não só assume uma posição da Estátua da Liberdade, como “dá a luz” com a vela que segura em sua mão direita. Voltaremos, adiante, ao fato de ser uma vela o instrumento escolhido para esse “dar a luz”. Se nossa análise, até aqui, estiver correta e no centro do conteúdo latente que procuramos está um menino acossado pelo espectro do nascimento de uma irmã, talvez tenhamos conseguido, de passagem, entender a razão do título aparentemente gratuito desse filme: O Fantasma (= espectro) da Liberdade (= do nascimento)! Acrescente que a mulher traz na cabeça um barrete frígio, outro clássico símbolo de libertação. Haverá algo a dizer do relógio que ela tira do bolso, com a mão esquerda, mostrando-o a Henri? Bem, os relógios mudaram. Antigamente – antes dos modernos designs e dos mecanismos a quartzo – eram redondos e faziam tique-taque. Nessa época – e os antigos terapeutas infantis bem sabiam disso – prestavam-se freqüentemente a representar ventres grávidos: algo redondo que tinha alguma coisa dentro a fazer barulhos. E, na esteira disso, muitos deles tiveram suas entranhas expostas por crianças, estimuladas por uma nova gravidez de suas mães, em desvendar os mistérios do nascimento. Mais do que interessado, Henri representa um menino que mais parece acossado pelo fantasma do nascimento: a mulher lhe impõe a visão do relógio, e o de cabeceira tem um tique-taque tão absurdamente alto que não há como esquecer dele. Mas, se, por um lado, há o não querer ver, em outros momentos, esse menino se enche de coragem e parte para o reconhecimento do que está ocorrendo com sua mãe. O apagar e acender de luzes, durante toda a noite, representa, como fará mais adiante, esse conflito entre o ver e o não ver. Há três lugares do trecho descrito em que a coragem de ver toma conta de nosso herói. A negação da vagina é parte integrante da tentativa de negar o nascimento e essa negação leva à teoria de que, simetricamente aos homens, também as mulheres têm pênis. Aranha é um conhecido símbolo de vagina. Em um momento anterior do filme, tomado de coragem e bradando “Estou farto de simetria!”, Henri dispõe-se a enfrentar o nascimento pela vagina e, afastando um relógio, coloca uma enorme aranha empalhada no centro de um aparador. A vontade de (re)conhecer a vagina já tinha aparecido, anteriormente, na pergunta de Françoise sobre a parafernália, os bens da mulher que permaneciam em sua estrita posse, quando de seu casamento. E também em outro momento, quando, inclusive, o menino tenta passar da posição passiva de quem não possuía certas informações e está ficando chocado pelo contato com elas, para a posição ativa de quem detém certas informações privilegiadas e pretende chocar os outros com elas. Refiro-me à cena em que, no parque, um senhor, fazendo da necessidade virtude, dá parabéns a duas meninas, Véronique e Valérie – que tinha acabado de atravessar uma ponte, clássico símbolo de nascimento – pelo seu desempenho ao descer de um escorregador – alguma dúvida quanto ao significado disso? – propondo-se, em seguida, a mostrar-lhes algumas imagens fantásticas, que o espectador infere serem de natureza sexual. Há, na verdade, mais uma cena em que essa vontade, entre corajosa e assustada, de encarar a realidade encontra expressão: no consultório médico, onde logo o reencontraremos, Henri tentará desempenhar o papel de quem quer a verdade esclarecida, mas é desenganado – na verdade, em termos latentes, aliviado – pelo médico, que lhe diz que, se quer sonhar, vá procurar um psicanalista...
Reconhecer que a mãe é portadora de uma vagina, através de que nos expulsou de seu ventre, e que tem com nosso pai intimidades que não tem conosco e deram origem a alguém que será nosso rival não é algo que ocorra sem conseqüencias. Uma das principais é uma profunda decepção com a mãe e um temporário rompimento interno da relação com ela. Qualquer tipo de retorno à água se presta a ser símbolo de volta à situação intra-uterina. Cônscia da decepção do marido-filho, Helène, a esposa-mãe, tenta consolá-lo através de um temporário retorno simbólico ao ventre materno, representado por “férias junto ao mar”. Ao que Henri dignamente responde com o trocadilho que já havíamos mencionado na introdução a esta análise e que é uma das expressões mais claras do atual estado de suas relações com a mãe: “Non, la mer/mère n’est plus la mer/mère” (“Não, o mar = mãe não é mais o mar = mãe!”). Seu desligamento dessa relação já se havia expressado por haver ele pensado que ela saíra de casa quando ela estivera o tempo todo ali e através de não a haver reconhecido ao passar anteriormente por ela, quando cruzaram na rua. A segunda dessas conseqüências é a raiva insana, expressa pela intenção de invadir violentamente o interior da mãe, destruindo os filhos que estão ali. Com efeito, o filme começa com a invasão da terra-mãe de Buñuel, a Espanha, sendo brutalmente invadida e tenho seus filhos fuzilados. Logo adiante, essa invasão brutal se repete: um dos oficiais napoleônicos viola um sacrário (= útero) e devora as hóstias (= filhos) que lá se encontram. Essa invasão vingativa pode ser sexualizada: esse mesmo oficial acaricia e beija libidinosamente a estátua de D. Elvira – no que é obstado pela reação vigorosa do pai – e, logo adiante, dispõe-se a violar seu túmulo (= útero) para pô-la em sua própria cama. Os ataques do menino a invasão dessa “estranha” ( = irmã ) que ameaça tomar seus espaços também se expressa através de seu protesto contra o estrangeirismo check-up, empregado por Helène por conta de ser “mais rápido” do que o francês “examen général”, o que transforma tal protesto numa crítica à pressa, que, como veremos, representa os prováveis alvoroço e açodamento que tomaram conta de todos, na casa dos Buñuel, a partir do anúncio da chegada de uma nova criança.
Quanto às fotografias – que, segundo a previsão do espectador, representaria algo indecente – são, manifestamente, da maior ingenuidade e o caráter chocante de seu conteúdo latente só é aludido via comentários do casal frente a elas. Isso é um aviso de Buñuel. Ele nos adverte: veja, sob os elementos mais inocentes, escondem-se outros, altamente carregados. Algumas dessas fotos retratam conhecidos símbolos: uma alameda (= vagina), um templo (= útero), o arco do triunfo (= a vagina, vitoriosamente atravessada), um veículo entrando em um túnel (= nascimento ou coito), um obelisco (= pênis), etc.. O rasgo (= vagina) no centro do Taj Mahal, um monumento mortuário (=mãe-útero) é, consistentemente, o que desperta maior perturbação. O fato de Henri devolver as fotos a Véronique, sua filha-irmã (“filha”, no conteúdo manifesto; “irmã”, no latente) e de ficar examinando-as, logo em seguida, junto com ela – algo, aliás, totalmente incoerente do ponto de vista manifesto – é um derivado da vertente meramente libidinosa do Complexo de Caim – if you can’t avoid it, relax and enjoy it.. A pergunta da menina de se pode substituir as fotos por figuras de aranha, é uma provocação. Eqüivale a irmã perguntar ao irmão: “Como é? Vai mesmo bancar a verdade – note-se, aliás, que a menina se chama Véronique, nome derivado do latim veritas, verdade, e que a babá que permitiu acesso às fotos chamava-se Françoise, palavra cognata de “franco” e de “franqueza” – central de tudo isso, que existe uma vagina, pela qual nós nascemos?” Henri finge que sim: chega até a lamentar – num ápice de cinismo – que certos tipos de aranha não existam na França...

TRECHO 2

Descrição

Consultório. Um médico afirma enfaticamente a Henri, a quem chama de M. Foucault que, do ponto de vista “estritamente fisiológico” (sic), o consulente não tem nada, mas que se ele “insiste em contar seus sonhos” (sic), que vá procurar um psicanalista, que poderá ficar a escutá-lo durante “meses ou anos, se necessário for” (sic). Henri insiste que não se trata de um sonho e que a carta que lhe havia sido entregue na noite anterior estava ali com ele. O médico começa a examiná-la, quando entra na sala uma enfermeira, que o chama com urgência para uma saleta contígua, onde lhe mostra ter acabado de receber uma carta informando que seu pai, muito idoso, está muito mal – “acaba de ter duas crises” (sic) – e pede licença para ir visitá-lo. O médico fica algo contrariado com o pedido, lamentando que aquilo esteja ocorrendo logo naquele momento, em que há tanto trabalho. Pergunta à assistente quanto tempo ela ficaria ausente. Ela retruca que um ou dois dias, mas que retornará assim que possível e o patrão aquiesce.
Muda-se a cena e vemos a enfermeira dirigindo, na estrada, sob chuva. Ora liga o limpador de pára-brisas, ora o desliga. Surge, então, vindo em direção contrária, um tanque de guerra que pára a seu lado. Um dos três militares que o ocupam salta do veículo e pergunta a nossa nova personagem se viu raposas atravessando a estrada. Ela diz que não. Ele se volta, então, para um dos que ficara no tanque, dizendo: – “Viu? É como eu lhe dizia, não há raposas por aqui. Jamais houve!” Ao que o outro retruca: – “Mas, tenente, eu tenho excelentes informações! Pode ser que, com a chuva... Nós temos ainda 50km a percorrer. O senhor verá!” Ao que o tenente redargúe: – “Muita perda de tempo! A caminho!” E, voltando-se para a senhora: – “A senhora vai em direção a Argenton?” Ela aquiesce. E ele completa: – “Então, tenha cuidado! Houve um desabamento e a estrada talvez esteja bloqueada!” A tradução fala em “deslizamento” e omite o “talvez”.
A enfermeira logo chega a uma estalagem. A chuva cai pesadamente. Entra. Pergunta ao dono da estalagem se pode telefonar. Ele desculpa-se, dizendo que as comunicações telefônicas estão cortadas devido às inundações. A enfermeira pergunta se há um quarto vago. O estalajadeiro pergunta-lhe se “de frente” ou “de fundos”. Ela responde que tanto faz, pois sairá cedo, na manhã seguinte. Ele pergunta se ela quer jantar, ela responde que “apenas leite e frutas”. Ele pede que ela espere um minuto e sugere que ela vá se secar. Ela se desloca na direção da lareira, diante de que já se encontram dois religiosos e uma mulher. A enfermeira começa a esquentar-se frente a lareira. Um dos religiosos comenta: – “Que tempo infernal!” Ao que ela retruca: – “Parece que a estrada de Argenton está fechada!” Convidam-na a sentar. Senta-se. Não vemos mais a outra mulher. Chega um outro religioso, que diz estarem todos, como ela, bloqueados ali. Outro lhe pergunta se é da região. Ela responde que sua família é e indaga de onde são eles. Responde que do Convento de São José, onde ela diz já haver estado com seu pai, a quem vai justamente visitar, pois está muito doente e ela não sabe sequer se o encontrará vivo. – “O que tem ele? – indaga outro. Ela, sem dar atenção à pergunta, diz ter muito medo (em francês, “peur”). Outro deles, tresouvindo-a, comenta: – “Coração (em francês, “coeur”)! É o mal de nossa época! A agitação... A inquietude... As viagens...” Ela rebate, descrevendo a vida pacifica e pouco agitada que leva o pai na chácara de que cuida. Aproxima-se mais um religioso, o quarto e mais velho de todos, acrescentado: – “Se todos orassem a São José e dedicassem uma meia hora do dia à meditação, tudo estaria perfeitamente tranqüilo.” Ela aquiesce. Chega o estalajadeiro com o leite e as frutas e convida-a a subir. Deixa-a no quarto após haver-lhe oferecido mais um cobertor e para acordá-la no dia seguinte, ofertas que são recusadas.
Três religiosos sobem também para seus aposentos. Despedem-se. Dois entram em um quarto; o terceiro, no outro. Este último sai, logo em seguida, e dirige-se ao banheiro. Está fechado. Volta, contrariado, para o seu quarto. Logo sai do banheiro uma mulher de seus vinte e tantos anos, vestida à espanhola, entrando em um quarto, onde um guitarrista toca uma música flamenga. Ela pede que ele reinicie a música e começa a sapatear. A porta do quarto ficara aberta. Uma nova personagem – um senhor muito alto, de seus quarenta, que terá sempre que curvar-se para atravessar os umbrais – saí de um quarto contíguo e, de maneira bastante pouco simpática, dirige-se ao quarto de porta aberta, fechando-a ostensivamente e encerrando-se de novo em seu quarto. O religioso que havia ficado no térreo sobe agora as escadas com uma moringa com água e entra no quarto do que ficara sozinho, que logo fecha a porta. O religioso mais velho sai de seu quarto e dirige-se ao banheiro, já vazio, entrando e fechando-se nele. O que por primeiro tentara entrar no banheiro sai de seu quarto carregando um santuário de madeira e dirige-se ao quarto da enfermeira. Bate à porta, anuncia-se como padre Gabriel pergunta se pode falar-lhe. A moça, em camisola, entreabre a porta e Gabriel, ainda que pedindo licença, claramente força sua entrada no quarto, indicando o santuário e perguntando: – “A senhora sabe o que é isso?” Ela responde que é uma imagem e o intruso se estende sobre os efeitos miraculosos de tal imagem, sobre que tinha sido pensando no pai dela que ele havia trazido a imagem até ali e sobre os benéficos efeitos que orações feitas frente a ela na residência de uma tal Marquesa de la Pommarède haviam tido sobre a saúde dessa última. Ele logo vê um baralho sobre uma mesinha do quarto e pergunta à moça se ela costuma jogar cartas. Ela responde que joga paciência, quando sozinha. Ele diz fazê-lo também, que é muito relaxante. Ouvem-se ruídos de passos em direção ao quarto e o religioso diz que devem ser os outros padres. Abre-lhes a porta. Um deles diz que, com a permissão da anfitriã, vão rezar pelo pai desta. A enfermeira amareladamente agradece e diz estar muito sensibilizada. Oferecem-lhe um rosário, que ela aceita. Ajoelham-se, menos o mais velho, que se acomoda sobre uma cadeira. Um dos religiosos diz que, naquela noite, irão meditar sobre os Mistérios Dolorosos, iniciando com a agonia de Jesus sobre o Monte das Oliveiras. Começam com o Pai e Nosso, passando em seguida para a Ave Maria. A câmara vai-se aproximando do santuário e vemos nitidamente a imagem de São José, com o menino Jesus ao colo, por detrás de duas velas acesas..
Pouco depois a câmara focaliza o santuário fechado e ouvem-se vozes. – “Eu sigo” – diz a de um frade. – “Eu também. Mais dez.” – diz a de outro. – “Eu passo – diz a da enfermeira. – “Eu sigo. Mais um escapulário” – diz outro. Estão todos, menos o religioso mais velho, jogando, sentados em torno da pequena mesa onde Gabriel havia visto as cartas. Objetos religiosos servem como fichas para o jogo e são desrespeitosamente atiradas ao meio da mesa, à cada aposta. A câmara afasta-se um pouco e vemos que o estalajadeiro também está no quarto, fumando e bebendo, embora não participe do jogo. O religioso mais velho, além de não jogar, não fuma nem bebe. Todos os demais fumam e, à exceção da moça, bebem. A enfermeira certifica-se quanto ao valor das “fichas”: – “Dez são as virgens, vinte e cinco os Sagrados Corações, não é?” Um dos frades confirma: – “Sim, cinqüenta são os escapulários.” Gabriel se inclina de maneira bastante íntima sobre a moça, pondo a mão em seu ombro, mas, frente a surpresa levemente indignada dessa, se afasta, perguntando: – “A senhora me havia dito que seu pai viveu nas colônias, não é mesmo?” Ela nega, dizendo que ele nunca deixou a região e indagando a razão da pergunta. – “Por nada!” – desculpa-se Gabriel, que, logo em seguida, com um olhar de quem se volta para o passado, sorri, dizendo: – “Ela era tão engraçada!” Segue-se o seguinte diálogo:
– “Quem?” – indaga a enfermeira.
– “Uma senhora muito devota que nos vinha visitar. Seu marido era militar...” – responde Gabriel.
– “E daí?” – retruca ela.
– “Nada! Nada!” – defende-se ele.
– “Frei Gabriel! – invervém outro religioso, em tom de censura.
– “Eu não disse nada demais!” – retrata-se Gabriel.

Toca uma buzina. O estalajadeiro comenta: – “São talvez os clientes que eu estava esperando e que acabam de chegar. Peço que me dêem licença, senhores. Até já.” Apenas sai o estalajadeiro e um dos frades jogadores pergunta se a quadra é superior à trinca, ou o contrário. Outro confirma a superioridade da quadra.

Interpretação

Onde se costuma ter confirmação – ou não – de gravidez? Em um consultório médico, é claro. No filme, o marido (= filho), que havia recebido a notícia, entre outras coisas, através da carta que havia sido deixada em sua cama, está insistindo com o médico sobre que tal notícia é verdadeira, sendo veementemente contradito por esse último. A interpretação é óbvia: inverte-se uma situação em que uma notícia indesejável me é imposta, por uma em que eu insisto que ela é verdadeira – “fisiológica” – e me dizem que eu estou sonhando e mandam-me eu procurar um psicanalista. Também outra pessoa recebe uma carta – a enfermeira do médico – que, no conteúdo latente, representa, evidentemente, à irmã de nosso protagonista latente, Buñuel. Esse fato fica indicado, entre outras coisas, pelo fato de a mesma atriz representar (a) a enfermeira, (b) uma mulher, Estelle, que encontraremos depois, extremamente parecida com a irmã de outro representante manifesto de nosso protagonista latente e (c) a própria irmã desse representante. Pois bem, a enfermeira também recebe uma correspondência. E o que diz essa correspondência? Que seu pai está à morte. Ora, se o pai dela está à morte e ela é irmã(o) de nosso protagonista, o pai deste está à morte. A cena do consultório realiza – como tão freqüentemente acontece no processo primário – dois desejos mutuamente contraditórios: (a) não nasceu irmã nenhuma e, além disso, (b) vou me vingar do desgraçado do meu pai – e dos médicos e das enfermeiras! – que têm responsabilidade no nascimento dessa irmã. A tentativa de recuperar a imagem da mãe fálica, ameaçada pela notícia do nascimento fica superiormente representada pelo encontro, na estrada, entre os militares e a referida enfermeira. Eles, dentro um tanque – belíssima representação condensada da fantasiada conjunção entre útero e pênis – trafegam em sentido contrário ao da enfermeira e, ao mesmo tempo que enviam uma mensagem (“Viu? Nós estamos dentro, você está fora!”), sublinham sua intenção de manter a negação da vagina, pois procuram por raposas, animal que, por razões que desconheço, freqüentemente se presta a representar uma mulher fálica (Cf., por exemplo, o filme “The Fox”, a raposa, cujo tema-base é a homossexualidade feminina). A polêmica interior sobre se os genitais femininos são, ou não, iguais – “simétricos” – aos masculinos fica evidente nas discussões sobre a presença ou não das raposas. Os militares, de qualquer forma, avisam que a estrada, no sentido em que a percorre a enfermeira, sofre o risco de estar bloqueada por uma barreira. Estrada barrada (= cruz = vagina). Já dissemos que Argentum é Lua – clássico símbolo de mãe – em latim. Não me supreenderia que, das duas Argenton que existem na França, a Argenton de que se fala no filme seja Argenton-sur-Creuse, sendo que “creuse” (fem.), em francês, significa “que tem uma cavidade, um talho”. Um símbolo eqüivalente ao Taj Mahal rasgado! O fato de haver três militares e mais uns dados sobre que logo nos voltaremos sugeriu-me que Buñuel tivesse dois irmãos homens. Posteriormente, como já assinalei, pude confirmar isso.
Já podemos reconhecer, frente ao comentado até aqui, duas das grandes linhas de elaboração do trauma relativo ao nascimento de uma irmã. A primeira, nega esse nascimento e tenta manter a teoria de que a mãe, em vez de vagina, tem um pênis. A segunda, reconhece o indesejado nascimento – não só o da irmã, como o do próprio “sonhador” – como também expressa impulsos vingativos contra os envolvidos com a ocorrência dele. Logo aparecerão elementos da terceira vertente, já esboçada, do Complexo de Caim, aquela vertente que implica uma conformidade com a situação inescapável e adota a filosofia do “if you can’t avoid it, relax and enjoy it”. Essa última opção elaborativa irá ficando cada vez mais evidente com o decorrer do filme.
Quem encontra a enfermeira, logo que chega à estalagem? Quatro padres. Padres (= pais)? Bem, nos diálogos em francês, chamam-se assim. Mas são religiosos de um convento e, pelo menos em nosso vernáculo, mais freqüentemente os chamamos de freis, frades, ou seja, de “irmãos”. A chegada de nossa heroína a um lugar onde já estão quatro irmãos representa, evidentemente, o nascimento de uma irmãzinha numa família onde já existem aqueles. Bem, um dos “irmãos” é bem mais velho do que os demais. Parece-me razoável, na verdade, considerar que, no conteúdo latente, esse religioso mais velho é representante do pai, enquanto os três demais representam irmãos que começam um processo de identificação com esse último, dando origem à confusão “padre/frade”. Essa interpretação, como vimos, corresponde à realidade histórica da vida de Buñuel: eram três os elementos masculinos de uma prole de sete.
A proposta feita pelos religiosos de que um pouco mais de devoção a São José poderia ser muito valiosa para a saúde do pai da enfermeira é sutilmente ácida. Quem foi São José? Foi o “pai” que teve o “bom-senso” de não coabitar com a mãe, dessacralizando-a e, por não fazê-lo, escapou ao ódio dos filhos, o qual, imperante no conteúdo latente do filme, produz um pai doente, quase à morte, no manifesto. Esse, dizem-nos os “frades-padres” seria o modelo a seguir para a manutenção da própria saúde... (Note-se, de passagem, que, através do mistério da Santíssima – não tanto! – Trindade, através de sua identificação com o Pai, o Filho acaba fertilizando a mãe e sendo pai de si mesmo.)
O encontro na estalagem representa uma encruzilhada na dinâmica psicológica de nosso herói, o filho. No conteúdo latente, o processamento das informações que vem recebendo está paralisada: no conteúdo manifesto, linhas rodoviárias e telefônicas estão rompidas pela inundação (= rompimento de bolsa amniótica?) e, no dizer de um dos “frades-padres” estão todos “bloqueados” ali. As perturbações do processo de comunicação ficam sinalizados (a) pelo fato de a enfermeira dar uma para-resposta, respondendo que tem muito medo, quando um dos religiosos lhe pergunta de que sofre o pai dela, (b) pelo de outro dos interlocutores tressouvir “coração” (=”coeur”), onde foi dito “medo” (= “peur”) e (c) pelo completo desentendimento relativamente ao tipo de vida – pacífica ou agitada – do pai da heroína. Agitação, aliás, é o que ocorre durante a noite na estalagem, um verdadeiro “tempo infernal”, como expressara um dos religiosos, logo à chegada da enfermeira. No meio dessa azáfama, uma nova personagem, o senhor alto que passa com dificuldade pelas portas – representação da dificuldade do nascimento – expressará sua censura em relação às atividades noturnas dos pais fechando a porta onde um casal de espanhóis – como os pais de Buñuel – toca e dança o flamenco – expressando um tipo de relação sexual em que a mulher é vista como fálica.
A cena do “padre-frade” invadindo o quarto da enfermeira com seu santuário de São José é um derivado do componente vingativo do Complexo de Caim. A mensagem básica é: não sou eu que estou tendo que “engolir” essa barriga de minha mãe, grávida de minha irmã. É ela que vai ter que me engolir. Eu, que, não por acaso, tenho o mesmo nome, Gabriel (que rima com Buñuel), do arcanjo que anunciou à Maria que ela seria mãe de Jesus , “convido-me” à entrar no quarto (= vida) de minha irmã levando-lhe um belo símbolo de um útero grávido, o santuário. A terceira linha de elaboração – “if you can’t avoid it, relax and enjoy it” – que já havia se insinuado com as carícias eróticas do militar à estátua de Dona Elvira e o ardoroso entrevero, na sala de sua casa, entre Hélène e Henri, começa mais nitidamente a partir daqui: a enfermeira recebe Gabriel em trajes íntimos (camisola e robe-de-chambre) e ele percebe, sobre a mesinha do quarto, um baralho com que a enfermeira-irmã se entretém, jogando paciência (= masturbação?), quando está sozinha. Diz que ele também o faz e que é “muito relaxante”. O componente vingativo ainda produz um derivado: a moça é forçada – numa receptividade tão amarela quanto a de uma criança a quem se apresenta seu novo irmãozinho – a aceitar dentro de seu quarto todos os outros “frades-padres” que – piamente, no conteúdo manifesto, e cinicamente, no latente – propõem-se a rezar a São José pela saúde do pai dela. Deixado de lado o desagradável episódio da gravidez materna (= santuário fechado), inicia-se uma decisiva libinização-dessacralização da relação do protagonista latente com sua irmã e com seus pais, processo explicitamente representado a partir da cena do jogo. Os símbolos sacros são instrumentos de esbórnia (entre eles, perceba-se, o que representa a virgem é o que tem menor valor); fuma-se e bebe-se; a aproximação de Gabriel à enfermeira, assim como seus comentários sobre uma senhora beata (que, aliás, despertam a censura de um outro “irmão-pai”), são de natureza francamente libidinosa. O religioso mais velho, assim como o estalajadeiro, prováveis representantes paternos, não participam do jogo, apenas o observam, sugerindo que a libidinosidade se desenvolve, realmente, apenas entre os irmãos, sob a tolerância benfazeja do pai, que, nota-se, vingativamente, fica de fora. Se havia três irmãos que resolveram ampliar seu “clube do bolinha” acolhendo nele uma irmã com quem tinham brincadeiras sexuais e a irmã é a quarta do grupo, afirmar a superioridade da quadra sobre a trinca é, indiscutivelmente, uma alusão indireta a isso. Em tempo: não consigo atinar quanto ao significado do comentário de Gabriel, logo fará outro similar, quanto a uma possível estadia do pai da enfermeira “nas colônias”. As novas personagens que passam, em seguida, a habitar a película irão selar a libidinização incestuosa das relações de nosso protagonista latente com sua mãe e sua irmã. Mas, para que isso seja possível, as ansiedades relativas à vagina deverão sofrer um desdobramento especial. Passemos à descrição de mais um trecho do filme.

TRECHO 3

Descrição

Chega à estalagem um casal composto por um rapaz de seus vinte anos e uma senhora de seus cinqüenta, essa escondida por detrás de uns imensos óculos escuros e claramente constrangida. No quarto, já sozinho, o rapaz tira de sua bagagem um frasco de bebida e toma um gole escondido, como que tomando coragem, e dizendo logo em seguida:

– Alea jacta est!
– Que quer dizer isso? – pergunta a senhora.
– Que é maravilhoso! Venha sentar-se perto de mim.

Desenvolve-se um diálogo em que vemos que o rapaz, François, é sobrinho da senhora e ambos desenvolvem desde há muito um envolvimento erótico, tendo-se beijado, pela primeira vez, num dia de Páscoa, na penumbra de uma igreja. Nunca, entretanto, haviam estado sozinhos como agora e a tia, que havia aceitado o convite do sobrinho para isso, está claramente assustada, de forma que, quando, após se haverem beijado, ele começa a subir com sua mão direita por sob suas saias, ela se levanta de onde estavam sentados, quase deitados, e pede que ele a leve de volta para casa. François, então, promete que não vai tocá-la, mas que não sairá daquele quarto sem havê-la visto nua. Frente às hesitações da tia, torna-se peremptório e está quase tirando à força as roupas da senhora, quando ouvimos uma trovoada mais forte e apagam-se as luzes. O rapaz acende, com seu isqueiro, duas velas. A senhora acaba por desistir de fazer frente à pressão do sobrinho e pede que ele se vire, enquanto ela tira a roupa, em troca de ele prometer que não vai tocá-la. François, também visivelmente nervoso, toma mais um gole de bebida e acende um cigarro que termina por apagar contra um quadro pendurado à parede, onde se vê uma figura de mulher, talvez nua. Quando recebe autorização para virar-se, vê que, após despir-se, a tia se deitara, cobrindo-se com os lençois. Aproxima-se e tenta descobri-la, mas só o consegue vencendo as tentativas da tia de impedi-lo. Descobre-a, então, por completo, e – entre encantado e perplexo – vê o corpo escultural de uma mulher – não, certamente, o de uma com cinqüenta anos! – que, com os braços, esconde o próprio rosto. Decide, então, apagar de novo as velas. Ao voltar, a tia cobrira-se novamente. Tenta descobri-la. Ela resiste. Diz que vai gritar. Começa a pedir socorro. François toma de um travesseiro e começa a sufocá-la, enquanto ela se debate, só libertando-a quando ela se aquieta. A tia está bem, mas ele se assusta com o que fez e sai do quarto.
Já fora dele, dá de encontro com o senhor alto que mencionáramos anteriormente e que, vindo do andar de baixo, com uma vela na mão, comenta, em francês: – “Je vais vous éclairer!” O que, na versão legendada do filme, é traduzido por “Vim trazer a luz!”. As luzes se acendem. O rapaz diz que vai descer para tomar alguma coisa, mas o senhor alto diz que o bar está fechado e convida-o para tomar um cálice de Porto em seu quarto. François inicialmente recusa, mas, frente à insistência do outro, acaba aceitando. Já no quarto, apresenta sua companheira como Srta. Rosenblum e a si mesmo como Jean Bermans. Ficamos sabendo que o nome completo do rapaz é François de Richmond. Trocam algumas palavras sobre o que fazem. Jean diz ser chapeleiro a Srta. Rosenblum sua colaboradora. Pergunta se François está sozinho e, com alguma hesitação, ele diz estar com sua mãe. Batem à porta. É a enfermeira que vem à procura de fósforos. Jean convida-a para entrar um pouco. Ela indica não poder, por estar acompanhada por quatro senhores.

– “Quatro senhores!” – admira-se Jean, trocando um olhar cúmplice com a Srta. Rosemblum.
– “Nós poderíamos talvez convidá-los também” – acrescenta a senhorita.
– “Seria muito agradável!” – concorda Jean, que se dispõe a ir buscar pessoalmente os novos convivas, surpreendendo-se um pouco quando verifica serem eles religiosos, mas logo se adaptando ao fato.
Após algumas recusas iniciais, os religiosos acabam cedendo à insistência do Sr. Bermans, que diz precisarem comemorar o acaso que os reuniu e, no caminho para seu quarto, pergunta a um dos religiosos se são dominicanos. O outro retruca que não, que são carmelitas. Jean comenta, de forma enigmática: – “Felizmente!”. Já dentro do quarto, Gabriel chama o anfitrião à parte e lhe pergunta se não se teriam conhecido antes, talvez no Congo Belga, a que esse último responde não haver jamais estado na África. Os presentes passam a trocar observações conversações banais e a Srta. Rosenblum – cujo primeiro nome agora sabemos ser Edith – dirige-se ao banheiro, onde começa a trocar-se. Voltamos à sala, onde ouvimos os religiosos dizerem que São Cristóvão, São Jorge e vários outros santos foram decanonizados. Voltamos ao banheiro. Edith está com um vestido de couro negro, justo e curto, sobre o qual coloca um roupão também escuro. Arma-se com um chicote e sai do banheiro, onde entra Jean. Na sala, comenta-se que Savonarola, um dos mais expressivos dominicanos, anteriormente julgado e condenado como herege, estava hoje completamente reabilitado e logo, talvez, será invocado nas igrejas.

– “Em compensação” – comenta nossa enfermeira – “outros irão desaparecer!”
– “Sim, nós pensamos que Santa Teresa de Lisieux... – acrescenta um dos religiosos.
– “Santa Teresa!” – espanta-se a enfermeira – “Como é possível?!”
– “Correm em Roma certos rumores, mas... – confirma um outro.

Dentro do banheiro, Jean coloca um terno sui generis, cujas calças lhe deixam expostas as nádegas, cobertas apenas pela aba traseira do paletó. Na sala, continuam as conversas sobre reavaliações de santidade, quando ouvimos o estalar de um chicote e a voz de Jean, que já se encontra ali, e cujas nádegas estão sendo açoitadas por Edith, enquanto ele brada coisas do gênero: – “Aí, bata, sua puta! Mais forte! Ainda uma vez! Assim! Sou um porco! Sou lixo! Bata! Sua megera! Assim! Sou podre! Leproso!” Os convidados, absolutamente consternados, começam a sair, enquanto Jean suplica que não o façam... No corredor, os religiosos agradecem a enfermeira por sua acolhida e o mais velho tem que ser contido pelos demais para não voltar ao quarto e espancar também ao Sr. Bermans...
François entra em seu quarto. Sua tia parece dormir. As camas são separadas e o rapaz, aparentemente conformado, começa a se preparar para recolher-se na sua, quando a tia estende um braço em sua direção, dizendo: – “Vem! Vem!” Ele senta-se ao lado dela, que completa: – “Tudo que você quiser!” E começamos a ouvir de novo a música flamenga, o rapaz se inclina sobre sua tia e a câmara se desloca, enfocando, primeiro, uma lareira e, depois, o olhar aparentemente atento de uma raposa empalhada...

Interpretação

As “metástases” edipianas do Complexo de Caim são evidentes neste trecho. O casal que chega à estalagem é formado por tia, mais velha, e sobrinho. Tia – irmã da mãe – é uma representante condensada de irmã e de mãe. O envolvimento erótico com ela condensa Édipo e Caim. O constrangimento relativo à situação se expressa de forma bem clara, no conteúdo manifesto, através da atitude assustada da tia e com óculos escuros que nos reportam ao avestruz. O rapaz também está assustado com o que pretende perpetrar. Para tomar coragem, bebe. Em seguida, enuncia a clássica frase de Júlio César, antes de atravessar o Rubicão e invadir Roma, cidade a que – como à mãe – levam todos os caminhos. Mas tem medo de mostrar que está com medo. Quando a tia lhe pergunta o que significa a frase, dita em latim, traduz, enganosamente: “É maravilhoso!” O envolvimento amoroso-sexual de ambos é antigo e tinha pela primeira vez se expressado em uma igreja: vemos aqui, ao mesmo tempo que uma dessacralização da igreja, uma tentativa de manter unidos o sexual e o ideal.
O desejo, posto pelo sobrinho como o primordial, de ver a tia (= mãe + irmã) nua é uma reedição, neste trecho do filme, da pergunta, anteriormente enunciada, “O que é parafernália?” Mas a coragem não é tanta. Quando chega a hora disso, as luzes se apagam. Para “dar a luz” novamente, o sobrinho acende velas, tentativa de conjugar a idéia de parir com fantasia de mulher que não tem vagina, tem pênis. É preciso coragem: o rapaz bebe mais um pouco. O elemento raivoso, agressivo, em relação à mãe “traidora” é expresso através de um símbolo sádico do pênis, um cigarro acesso, que é apagado em uma figura de mulher, num quadro pendurado na parede. A ansiedade é um estado psicológico que deforma nossa percepção. Daí que objetos deformados, feios, evoquem ansiedade. E daí que se exija beleza da mulher, portadora da vagina, o desencadeador-mór de ansiedade, em um nível que não se exige do homem. No filme, a ansiedade provocada pela vagina é inicialmente negada através de fazer que o rapaz veja o corpo nu da tia como o corpo escultural de uma mulher na flor de seus anos. O retorno do recalcado, entretanto, é inevitável, embora apareça sob forma vingativo-invertida: a falta de ar sofrida quando do nascimento não é reexperimentada pelo rapaz. Bem ao contrário, é ele que a inflige à representante da mãe, sufocando-a com o travesseiro.
Assustado com seu “feito” vingativo, o rapaz sai para o corredor da estalagem, que, representando simbolicamente seu medo de ver, continua às escuras. Aparece o senhor alto que havia fechado a porta do quarto da espanhola e, com uma vela na mão, diz que vem para “esclarecê-lo”, o que, logo veremos, é bem pouco verdade. Convida-o, de qualquer forma, para tomar um Porto, outro símbolo de vagina: é o lugar que nos transfere do mar para a terra, da terra para o mar. Diz ser chapeleiro. Freud dizia que chapéus eram símbolos masculinos. Sem dúvida, embora de maneira indireta. A cabeça representa – dependendo do grau de regressão de quem usa o símbolo – o corpo ou o pênis e o chapéu, naturalmente, a parte da anatomia humana que os acolhe (algo semelhante acontece com o sapato). A enfermeira, representante da irmã, aparece e procura fósforos: pede luz. Foi, sem dúvida, seu nascimento que, para bem ou para mal, exigiu o “esclarecimento” de certas questões. Essa luz, para o chapeleiro, não é algo tão bem vindo. Quando convida os religiosos para o seu quarto, pronuncia um aliviado “Felizmente!”, ao saber que não são dominicanos, a ordem mais interessada em “esclarecer” os mistérios da fé. (Não consigo entender a fixação de Gabriel – aquele, dentre os irmãos que provavelmente representa Buñuel – com as colônias. Imagino que algum elemento, a que não tenho acesso, bastante pessoal de sua história, dê conta disso.)
A inversão dos valores trazida pela sexualidade – desidealização de uns, reabilitação de outros – fica, naturalmente, representada pelas alterações de status que passam a sofrer São Cristóvão, que salvou Cristo das águas, símbolo de nascimento; São Jorge, possível representante do pai que andou se metendo com o dragão, sabido representante da vagina; Sta. Teresa, que o filme sugere não ser tão santa assim; e, por fim, Savonarola, contestador da hierarquia eclesiástica. Enquanto essa nietzschiana Umwertung aller Werte – transmutação de valores – está em curso, a teoria do nascimento pelo ânus – e correspondente deslocamento da raiva para as nádegas – está em curso e o resultado, em nível manifesto, é a cena do chicoteamento de Jean Bermans pela senhorita Edith Rosemblum. A identificação do irmão latente com a pessoa de sua mãe grávida pela bunda, aqui, é mais do que evidente. Após “resolver” o problema do nascimento através de empregar para isso o ânus, o Sr. François – a que perguntava sobre a parafernália chamava-se Françoise – pode voltar à sua tia, que lhe oferece “tudo o que quiser”, lembrando as prostitutas que dizem “fazer tudo”, para indicar que aceitam relação anal. A escolha desse tipo de relação fica apenas insinuado, pois, logo em seguida, a câmara focaliza a lareira – símbolo de útero – e uma raposa empalhada – sem comentários – enquanto voltamos a ouvir o flamenco... Com todos esses dados, fica difícil olhar com ingenuidade a pergunta feita pelo estalajadeiro à enfermeira, quando da chegada desta, sobre o tipo de cômodo que iria preferir: “De frente ou de fundos?” Ao que ela responde: “Tanto faz.”

TRECHO 4

Descrição

Manhã seguinte às agitadas ocorrências que vimos de relatar. Refeitório da estalagem. Um senhor por nós desconhecido toma seu café da manhã. Desce a enfermeira, pronta para partir e o tal senhor lhe pergunta se vai para Argenton e se pode lhe dar uma carona. Ela concorda em levá-lo e saem. Ele se oferece para carregar a valise da moça. Nossa nova personagem é deixada frente a uma academia de polícia. A câmara enfoca uma sala de aula da academia, onde estão os alunos-policiais, numa baderna muito pouco compatível com representantes da lei. Canta-se, dança-se e, num determinado momento, após ser solenemente anunciado pela corneta de um colega, um dos policiais saca de sua arma e atira contra uma lâmpada, destruindo-a, atitude aplaudida pelos demais. Percebendo que está chegando o professor – o senhor que tomara carona com a enfermeira – os policiais tomam seus lugares. Consoante ao clima de rebeldia, vêem-se, no quadro negro, os dizeres: “O coronel é cornudo” e “O capitão é veado”. O autor da façanha não se apresenta, o professor comenta que seus alunos mais parecem crianças do que adultos feitos e decide começar a aula, que é continuamente interrompida por um entra e sai que chega a deixá-lo desorientado. O tema da aula é a relatividade das leis e costumes, não obstante sua importância para a manutenção da ordem social. Menciona-se, por exemplo, o contraste entre sociedades monogâmicas e poligâmicas. Ao deslocar-se por entre os alunos, um deles acaba por, sem que ele perceba, pespegar-lhe com um alfinete, na aba traseira do paletó, à altura da nádega direita, um boneco de papelão. Com o entra e sai de alunos – uns chegando atrasados, outros sendo requisitados por várias razões, a última e mais grave sendo a explosão de um gasômetro – acabam ficando apenas dois e, voltando à sua mesa de sua ronda pela sala, nosso professor, ao sentar-se, o faz – e dolorosamente – sobre o mencionado alfinete. Cria-se um pequeno quiproquó, contornado pela requisição da presença de um oficial superior, cuja chegada passa a garantir o clima de serenidade necessário à continuidade da aula. Essa, que mantém sua ênfase sobre a variedade das leis e costumes, segue com um relato apto a ilustrar tal variedade. Conta o professor que ele e sua senhora haviam sido convidados recentemente para um encontro bastante peculiar, na casa de uns amigos. Lá chegados, são recebidos pelos donos da casa e por uma menina de seus sete anos que imaginamos ser filha desses últimos, além de serem apresentados a uma certa Srta. Calmette. Passam a uma sala decorada de forma a nos fazer tirar o chapéu à imaginação de Buñuel. Nessa sala, uma comprida mesa de centro está rodeada, não por cadeiras, mas por vasos sanitários, sobre que, após destapá-los e levantar saias ou abaixar calças, sentam-se todos. Sobre a mesa, em lugar de comida, pratos e talheres, encontram-se jornais e revistas, que começam todos a folhear, enquanto entabulam conversação. Fala-se que é lamentável que uma certa cantora de ópera tenha engordado um pouco, o professor diz que teve que voltar logo de sua última viagem a Madri devido ao forte cheiro de comida que exalavam as ruas da cidade, daí desliza-se para o perigo da superpopulação e para um de seus corolários: a imensa produção de excrementos, calculados, dali a 20 anos, à razão de dez milhões de toneladas por dia. Sofia, a menina, diz para a mãe, a alto e bom som, que está com fome. Esta lhe responde que não deve falar assim à mesa. É falta de educação. O professor levanta-se e pergunta, meio à socapa, à empregada onde é a sala de jantar. Ela responde que é a última porta à direita, ao fundo do corredor. Ele se dirige ao local e entra em um pequeno compartimento que tem toda a aparência de um banheiro, mas, para nosso espanto, após acomodar-se sentado, baixa uma mesa móvel e, apertando um botão, aciona um mecanismo que faz chegar a ele um prato de comida e uma garrafa de vinho. Começa a comer, de forma algo grosseira, quando a Srta. Calmette tenta entrar no aposento, retornando à sala ao verificar que ele está ocupado. Voltamos à sala de aula, onde os dois alunos pedem para retirar-se pois devem retomar sua rotina de policiais. São dispensados.

Interpretação

O essencial do filme já foi analisado. A maior parte dos elementos que vamos enfocar não passam de variações simbólicas do que já encontramos. A desmitificação da autoridade e a revolta contra a ordem provocadas pelo nascimento da irmã expressam-se através dos adjetivos – corno e veado – com que são brindados o coronel e o capitão e pela baderna em que se encontram os policiais antes da entrada em sala do professor. “Coisa de criança”, diz esse último, e como está certo! A raiva contra a mãe grávida e a sensação de “lavar a própria honra” associada aos atos de agressão contra ela ficam igualmente bem expressas através do tiro na lâmpada – elemento que “dá a luz” – e dos aplausos de aprovação post facto. A idéia da gravidez pela bunda continua, representada pelo boneco que pespegam ao traseiro do professor e a tacha na bunda tem o mesmo espírito que o chicoteamento de cena anterior. No curioso relato do professor sobre a reunião para que foi convidado, o incômodo com o nascimento transparece na censura à cantora da opera que “engordou” e, consoante à teoria anal do nascimento, a preocupação com superpopulação transforma-se em uma preocupação com excrementos. Os jornais e revistas sobre a mesa cercada de latrinas corresponde, naturalmente, ao fato de que o banheiro é, para a maioria das crianças, o lugar onde mais freqüentemente se “informa” sobre a natureza dos genitais humanos, não tão expostos em outros cômodos da casa. O deslocamento da censura para o comer – o professor volta da Espanha antes do previsto pelo nauseante fedor de alimento que invade Madri, pede perdão por mencionar a palavra “comida”, Sofia é censurada por mencionar abertamente que está com fome, a “sala-de-jantar” é um cubículo privado – não me parece universal. Suponho que algum elemento, por mim desconhecido e bastante específico da história de Buñuel, esconda a explicação disso. Consta, de qualquer forma, na autobiografia do autor, que ele detestava ser observado enquanto comia e quem tiver visto “O charme discreto da Burguesia”, que logo analisaremos, poderá reconhecer que esse último filme se desenrola totalmente em torno dessa proibição. A Srta. Calmette, que parece algo deslocada na reunião em tela, me parece um bom símbolo da irmã, vingativamente nomeada de forma a contrastar toda o alvoroço em torno de seu nascimento, que o irmão ciumentamente deveu suportar. Em tempo: todo o conteúdo da aula que se desenvolve na academia de polícia e que se ocupa da relatividade dos costumes, parece de molde – o que é bem estranho em uma academia militar – a insuflar a tolerância (leia-se: em crianças revoltadas com a gravidez da mãe). Ainda: a explosão e o acidente na rodovia que esvaziam a sala de aula são prováveis símbolos do nascimento, sobre o qual todos da casa concentraram sua atenção, deixando o irmão já nascido, como ao professor, a “ver navios”.

TRECHO 5

Descrição

Os dois policiais que acabaram de pedir licença para sair da aula. Ambos na rua. Entra um carro em alta velocidade por uma esquina, vindo em direção aos policiais, que o interceptam. O motorista, um novo personagem, diz que estava com pressa porque ia ao médico, no que é desacreditado pelos policiais, que o multam. A justificativa do motorista, no entanto, era verdadeira e, na cena seguinte, vemo-lo em um consultório médico, onde descobrimos que seu nome é Richard. O médico olha os exames laboratoriais trazidos pelo paciente e diz que está tudo bem. Examina também radiografias, apontando uma parte clara e uma pequena mancha, as quais trata como sem importância. Após um pequeno papo social descompromissado, em que se levanta a possibilidade, ou não, de o paciente passar suas férias junto ao mar, segue-se o seguinte diálogo:

– Bem... – diz Richard – E então?
– Mais uma coisa. Eu gostaria de lhe fazer uma pequena incisão. Simples curiosidade médica.
– Grande?

O médico meneia negativamente a cabeça, enquanto indica com as mãos um corte de uns vinte centímetros.

– É uma operação?
– Só para ver.
– Quando?
– Quando você quiser. Quando tiver tempo... – ao que acrescenta, algo abrupta e inesperadamente – Amanhã, seria bom para você?
– Amanhã! É tão urgente?
– Essas coisas, você sabe, é melhor fazer o mais rápido possível!
– O que é que eu tenho?
– É como você quiser... Pessoalmente, eu preferiria ver...
– Ouça bem, eu não sou mais uma criança. Se a coisa é séria, o senhor pode me dizer.
– Gosto de pacientes como você – e, mais uma vez, acrescenta de forma súbita – Você tem um neoplasma.
– Ah, sei... sei... sei... O que é isso?
– É uma proliferação de células, ou, se você prefere, um câncer.
– Como?
– O senhor tem um câncer no fígado.
– Um câncer, eu? – diz Richard, parecendo achar graça.
– Num estágio bastante avançado.

Richard continua rindo, mas, aos poucos vai-se tornando sério.

– Mas, hoje em dia... Você sabe... Essas coisas... Um cigarro? – oferece o médico, em seguida a que leva, na face esquerda, uma bela bofetada de seu cliente.

Cena seguinte. Richard, de novo, em seu carro. Estaciona em frente a um edifício e entra, logo chegando ao que, aparentemente, é seu apartamento e onde alguém que supomos ser sua esposa pergunta-lhe o que lhe disse o médico, que ficamos sabendo chamar-se Passolini.

– Não é nada – responde Richard.
– Ainda bem. Eu estava com medo, sabe?! E ele te deu um tratamento?
– Não, nem mesmo isso. Aliette não está em casa?
– A esta hora, ela está no colégio.

Toca o telefone. A mulher atende. Recebe uma notícia que a espanta e ficamos sabendo que é a escola, informando que sua filha desapareceu. Fica naturalmente perturbada e diz que estão indo imediatamente para lá. Richard não parece perturbar-se e tenta acalmá-la – chama-se Brigitte - dizendo que deve haver uma explicação. Na cena seguinte, Richard e sua esposa – o sobrenome de ambos é Legendre – caminham apressadamente pelo pátio da escola, acompanhados pela diretora, que tenta dar explicações, e por uma outra mulher, que não sabemos de quem se trata. Na sala de aula, é a professora quem começa a explicar-se. Estava dando aula normalmente, quando, de repente, deu-se conta de que a menina não estava mais ali. A essa altura de seu relato, uma das alunas vem em direção à mulher do casal, e a ela se dirige, dizendo:

– “Mamãe!’.
– Cale-se! O que você quer? – repreende a mãe.
– Eu estou aqui! – protesta a menina.
– Fique calada quando a Sra. Diretora está falando. Entendeu?
– Sim!
– Ótimo! E, agora, volte para o seu lugar!

A menina retorna.

– Vou fazer a chamada de novo, diante dos senhores – continua a diretora, chamando o nome de algumas meninas, que se declaram presentes, até que enuncia – Legendre, Aliette! – e a filha de Richard se levanta, respondendo presente – Os senhores vêem? – continua a diretora – ela está aí!
– E as outras, estão? – questiona Richard.
– Todas. Eu verifiquei – responde a diretora.
– A senhora procurou por toda a parte?
– Procuramos por toda a escola. E nada!
– Meu deus, o que pode haver acontecido! – intervém Brigitte.
– Se a senhora acha que nós vamos nos contentar com explicações tão simplistas, a senhora se engana! – completa Richard.
– Mas, senhor! – balbucia a diretora.
– É preciso avisar imediatamente à polícia – diz o pai, dirigindo-se à carteira da filha – Onde você deixou o seu casaco? – pergunta-lhe.
– No corredor – responde a filha.
– Vamos! – ordena Richard.

Nova cena. Uma delegacia de polícia. Na parece, o mesmo quadro de Goia, representando um fuzilamento, que havia iniciado o filme. O comissário faz entrarem Richard, Brigitte e Aliette Legendre e a senhora de identidade desconhecida que os havia acompanhado. Desenvolve-se o seguinte diálogo:

– Sr. Legendre?
– Sim, senhor comissário, grato por nos receber.
– Em que posso ser útil?
– Nossa filhinha desapareceu – intervém Brigitte.
– Quando?
– Há uma hora, na escola. A babá a acompanhou como sempre e quando se fez a chamada, ela estava lá – responde Richard.
– Reviramos toda a escola e não a encontramos – acrescenta Brigitte.
– Vocês têm inimigos? Pessoas que lhes queiram mal? – continua o comissário.
– Não, não acredito – redargúe Richard.
– Bem, no caso de tratar-se de um seqüestro, os senhores teriam meios para pagar o resgate?
– Sim, certamente – responde o pai.
– Entendo. O senhor tem testemunhas?
– Tem a babá.
– Foi a senhora que acompanhou a menina à escola? – questiona o comissário.
– Sim, mas eu não tenho nada com isso. Não fui eu. Eu a deixei em frente à porta. Não é verdade, Aliette?
– Sim. Ela fez como todos os dias. Me deixou na frente da porta.
– Você vai falar quando nós a interrogarmos – interrompe o comissário – Nós vamos preencher uma ficha de desaparecimento. Os senhores fizeram bem em trazê-la. Isso facilita muito as coisas. Venha aqui, garota. Bem, vejamos... Legendre... Seu primeiro nome?
– Aliette – responde a menina.
– Raça branca. Sua idade?
– Oito anos e meio – responde a garota.
– Estado civil, solteira. Olhos marrons, cabelo castanhos. Qual é a sua altura?
– Um metro e vinte e cinco – auxilia Brigitte.
– E pesa?
– Vinte e cinco quilos – completa a mãe.
– Casaco azul, sapatos pretos, meias brancas – termina o comissário, mandando chamar o cabo.
– Diga ao comandante para revirar toda a Paris e achar esta menina – ordena ao cabo, quando ele chega.
– Muito bem, senhor comissário. É essa ai? – reage o cabo.
– Sim, por quê? – indaga o comissário.
– Não poderíamos levá-la conosco?
– Não, não vale a pena. Olhe-a bem, para poder reconhecê-la e comece imediatamente.
– Perfeitamente, Sr. Comissário.
– O senhor olhou os seus sapatos. Estão longe de impecáveis.
– É verdade, mas essa manhã eu não tive tempo de...
– Sei. Pode ir. Bem, senhoras e senhores...

E despedem-se, o comissário solicitando que lhe comuniquem qualquer novidade, mesmo que sejam aconselhados a não o fazer. Saem todos e a cena se encerra com o comissário admirando seus sapatos, lindamente engraxados.
Cena seguinte. O cabo da cena anterior levanta-se da cadeira de engraxate, onde acabara de ser atendido. O serviçal se desloca para outra cadeira, onde começa cuidar dos sapatos de uma nova personagem – um senhor alto, com feições germânicas – com o qual troca diálogo sobre seu cachorro – de nome Chico –, onde são censurados aqueles que maltratam os animais. No transcurso o diálogo, o alemão dá umas bolachas entre carinhosas e agressivas na cara do cachorro.. Terminado o serviço, nossa nova personagem segue em direção a um edifício altíssimo, que se destaca fortemente entre as construções próximas. Carrega consigo uma maleta. Chega num apartamento do que aparenta ser o último andar do edifício, onde se vêem pilhas de madeira cobertas de plástico, que, semi-infladas, se agitam com o vento. Na maleta, logo vemos, escondia-se uma espingarda com um visor. O homem toma dela e dirige-se a uma janela, de onde atira, atingindo, à distância, primeiro, um homem, depois outro, e mais outro. Os transeuntes começam a se dar conta de que algo errado estava acontecendo. Depois, um pássaro é atingido. Em seguida, mais um homem. Mais um, com uma cabeleira algo feminina, é acertado no ventre. Uma bala atinge a janela de um quarto onde se encontra um casal. A mulher dirige-se até ela e é baleada. Mais uma mulher é atingida na rua. Mais uma. Dois policiais, um de binóculo, tentam localizar de onde vêm os tiros. Conseguem. Pedem reforços. A última vítima focalizada pela câmara parece estar grávida.
Tribunal, em audiência aberta ao público. Entra nosso atirador com cara de alemão e senta-se no lugar do réu. O juiz, após ordenar que o acusado se levante, lê o veredito, detalhando a votação:

– A todas as questões relativas à culpabilidade e à deliberação, a resposta foi “sim”, por uma maioria de oito votos, pelo menos. Àquelas relativas a circunstâncias atenuantes, a resposta foi “não”, por uma maioria de oito votos, pelo menos – e completa, citando os artigos em que se baseia a sentença – A corte condena Levasseur, Bernard, à pena de morte.

O réu faz uma mesura de agradecimento e um policial o libera das algemas, cumprimentando-o em seguida. Na verdade, todos passam a cumprimentá-lo. Na saída, três mulheres se aproximam, pedindo-lhe autógrafos.

Interpretação

Acho que já é escusado decodificar certos elementos: a pressa, interceptada pelos policiais; a visita ao médico; os comentários sobre férias no mar. O elemento escopofílico do Complexo de Caim – mencionado quando falamos de crianças abrindo relógios – fica muito bem representado quando Dr. Passolini diz que vai abrir a barriga de Richard “só para ver”. Nada melhor para representar a “anomalia” de uma gravidez do que um neoplasma, “proliferação de células” de natureza cancerosa. Quem ousa diagnosticá-la, dessa vez, tem o que merece, uma bela bolacha. Em casa, a “vergonha” associada ao diagnóstico se confirma pela negação de Richard, frente ao questionamento de sua esposa, sobre seu estado. Nenhuma cena poderia representar melhor a negação do reconhecimento da existência de alguém que, como diz a diretora, “está aí!”, do que todas as conversas sobre o desaparecimento de Aliette, tanto na escola quanto na delegacia, em plena presença dessa última. Sapato, como já aludimos, é um clássico símbolo de pênis: tê-los sujos, significa ter manchada a honra masculina. Engraxá-los “limpa a honra” e é nessa direção que o filme agora se desloca. No gabinete do comissário, vemos uma reprodução do quadro de Goia que representa a invasão do ventre da mãe e destruição de seus conteúdos. Críticas às intenções, fartas no conteúdo latente, de fazer mal a uma criança aparecem disfarçadas sobre maus tratos a animais, desencadeados pela presença de Chico. “Chico” e “chica”, vale lembrar, significam, em espanhol, “menino” e “menina”. A babá havia respondido “ya”, sugerindo ser alemã, no gabinete do comissário. Bernard Levasseur tem o tipo físico típico da raça alemã, conhecida pela sua tentativa de exterminar uma raça, a dos judeus. Genocídio é uma representação simbólica de todo infanticídio, inclusive via aborto (cf. análise do lapso Aliquis, em A Psicopatologia da Vida Cotidiana). Bernard já havia “lavado sua honra” engraxando os seus sapatos e, agora, vai lavá-la a bala. Ele concretiza suas intenções assassinas do alto de um edifício que sobressai sobre todos os demais: a busca de manter uma sensação de superioridade já se revela aqui. Atira de um compartimento onde vemos pilhas de madeira – mãe – cobertas por plásticos inflados ao vento – mais uma vez, reconhecimento e negação, a barriga inchou, mas é de vento. Levasseur começa vingando-se sobre representantes do pai, três homens, um pássaro – símbolo conhecido de pênis (piu-piu, pinto, peru e, last but not least, o brasileiríssimo “passaralho” ) – mais um homem e, após uma figura de transição – um homem com cabeleira feminina e que, significativamente, é atacado no ventre – passamos para a vingança contra a mãe: quatro mulheres são atingidas. A primeira, antes de ser vitimada, estava na cama, com um homem – vingança contra as relações sexuais da mãe com o pai – a última estava grávida – sem comentários. No tribunal, após ficar estabelecida suas plenas culpa e deliberação, Bernard será, coerentemente, liberado e cumprimentado, assim como o policial que, na academia, foi aplaudido por haver alvejado uma lâmpada.

TRECHO 6

Descrição

Na transição da última cena para esta cena, ficamos sabendo que Bernard Levasseur era poeta e que, durante os 14 meses de duração de seu julgamento (seria notável se fosse essa a diferença de idade entre Luís e Margarida Buñuel; infelizmente, não possuo dados que possam confirmá-lo), a procura por Aliette havia continuado em vão.
Gabinete do chefe de polícia (= “préfêt de police”, que, na tradução legendada, é chamado de “delegado”), que recebe o Sr. Legendre e lhe dá notícia de que descobriram sua filha. Manda-a entrar, juntamente com sua mãe, a quem Richard pergunta onde estava, acrescentando que a esperou “até as onze horas” (sic) (a tradução legendada, estranhamente, diz que ele a esperou “durante 2 horas”!). Segue-se um pequeno diálogo sobre isso, em que Brigitte diz que “não poderia ter sido de outra forma” (sic). Sr. Legendre pergunta ao chefe de polícia se a menina foi bem tratada. O chefe responde que “nada lhe faltou” (sic) e pede confirmação à Sra. Legendre. “Como sempre” – responde ela. Perguntado sobre como acharam a menina, o chefe de polícia responde:

– Eu tenho aqui o relatório. É uma estória bastante pouco banal. Vou lê-la para os senhores. “Na noite de 7 para 8 de fevereiro, a população de Lisieux foi despertada por uma explosão ensurdecedora. Logo que os primeiros socorros chegaram ao local, para sua grande surpresa...

Quando é interrompido por uma assistente, que lhe lembra a hora. São 13h30min. O chefe de polícia, se dá conta de que tem um encontro e deve sair imediatamente. A assistente retoma a leitura do relatório e quando chega onde já havia chegado seu chefe, há uma mudança de cena.
O chefe de polícia deixa seu carro e dispensa seu motorista, entrando em um bar e surpreendendo-se que ainda não haja chegado quem ele espera. Reclama com o barman sobre a “música em conserva” (sic) e pede que ela seja desligada, o que aquele faz a claro contragosto. Senta-se a uma mesinha e abre sobre ela as peças de um dominó. Chega nova cliente, que pede ao garçom um cálice de Porto tinto. A atriz que a representa é a mesma que representou, anteriormente, a enfermeira e, até o fim do filme, ficamos sem saber se ainda a representa ou a uma nova personagem. O chefe de polícia retorna-se para vê-la e parece chocado. Ela se acomoda a outra mesa e ele deixa a sua, dirige-se a ela, pede desculpas por incomodá-la, logo acrescentando que ela nada tem a temer, já que ele é o chefe de polícia. Pergunta se pode sentar um instante junto a ela, ao que ela aquiesce. Chega o Porto da senhora e o garçom avisa que o pedido do chefe está na mesa que este anteriormente ocupava, recebendo a ordem de que o deixe lá. O chefe volta-se para a recém chegada e diz-lhe que sua chegada o havia perturbado.

– Hoje faz quatro anos desde que minha irmã morreu. Eu a amava muito. A senhora se parece tanto com ela que eu tive impressão de revê-la. Mesmo rosto, mesma voz, mesma postura. Ela se chamava Margueritte - coloca-se o delegado.
– Eu me chamo Estelle – retruca a moça, como que para marcar as diferenças.

O chefe de polícia começa, então, a recordar-se de uma tarde de verão, em que fazia um calor insuportável. Começamos a presenciar a cena, em que se ouve, o fundo, um solo de piano. Vemo-lo sair de seu quarto e passar por sua mãe, que o censura por ter deixado de cumprir um compromisso e lhe diz que ele jamais será ninguém. O chefe entra no quarto de onde vem o som. É o quarto da irmã que, nua, toca piano. O irmão não dá qualquer atenção especial a isso, mantendo a expressão de quem se deixa levar pelo fascínio da música. A um certo instante, a irmã pára e diz para o irmão que acha que não irá para um encontro de família em Toulouse e que vai dizê-lo à mãe. Nosso chefe diz que essa ficará furiosa. A irmã comenta sobre o enfado de reuniões de família, perguntando o que faria em Toulouse à três da tarde. “A sesta”, ironiza o irmão, que pede, em seguida, que ela toque uma rapsódia de Brahms. Ela aquiesce. Ele acende, então, um cigarro e, deixando cair o isqueiro, põe-se de gatinhas, numa posição em que se vê a parte inferior do corpo da irmã que, sem nada mais sobre ele, usa longas meias de náilon preto e sapatos da mesma cor. Voltamos ao bar e vemos o chefe dirigir-se a Estelle, dizendo:

– Afinal das contas ela não foi a Toulouse, vindo a morrer alguns dias depois. A senhora também toca piano?
– Sim, um pouco.
– A senhora não é francesa, pois não?
– Nasci na Itália.

Na continuação do diálogo, Estelle pergunta de que morreu Margueritte. De colique du miserere, responde ele, acrescentando, frente à curiosidade de sua interlocutora:

– Uma coisa horrível. Particularmente o fim. Rejeitam-se pela boca os excrementos (esta última palavra é falada a meio). Desculpe!

Toca o telefone, enquanto o chefe diz a Estelle que o encontro foi tão extraordinário que ele gostaria de revê-la, mencionando convidá-la para um dos bailes de seu departamento, o que ela, em princípio, aceita. O garçom atende e diz que querem falar com o chefe, surpreso por não ser Marcel, seu motorista, única pessoa que sabe ele estar ali. Manda perguntar quem é. O garçom responde ser Margueritte. O chefe diz ao garçom que mande essa pessoa “ir se foder” (sic), logo pedindo vênia a Estelle por sua linguagem e chamando de “sinistra” tal brincadeira com uma pessoa que há quatro anos está morta. O garçom, contudo, diz que a pessoa insiste, que diz querer ver o agora indignado cliente aquela noite, no jazigo da família, acrescentando que a chave está na gaveta direita da escrivaninha desse último.

– Sim, é verdade! – diz o chefe de polícia com profundo espanto – Pergunte-lhe o que lhe pedi que tocasse numa tarde de verão muito quente, quando entrei em seu quarto.

O garçom obedece.

– “A rapsódia de Brahms”, senhor chefe de polícia – retorna.

O chefe de polícia vai até o telefone:

– Alô! Sim, sou eu. Quem é você? ... Compreender o verdadeiro mistério da morte? Esta noite Mas...

A outra pessoa desliga e logo nos vemos na cena seguinte, quando um táxi deixa o chefe em frente ao cemitério. Ele verifica que a porta principal está fechada e procura uma lateral. Atende um funcionário. O chefe – que agora passamos a saber chamar-se Richepin – usa de sua autoridade para entrar no cemitério, fechado em virtude da hora. Richepin entra em um jazigo, onde se guia com a luz de uma lanterna elétrica, detendo-se frente a um caixão, de onde uns cabelos castanhos e viçosos de mulher escapam por sob a tampa, cabelos que Richepin começa a apalpar, dando-se conta, logo em seguida, de que há um aparelho de telefone junto ao caixão. Tira uma talha do bolso e começa a abrir a tampa desse último, quando três policiais entram no jazigo para prendê-lo. Richepin tenta impor sua autoridade para impedir a prisão, mas é levado, aos trancos, para fora.
Gabinete do comissário onde Richard havia apresentado queixa sobre desaparecimento de sua filha. O comissário, mesmo aquele, está engraxando seu sapato quando entra outro policial – o comissário esconde a flanela atrás das costas –e anuncia a chegada de alguém. O comissário manda entrar. Trata-se de Richepin, que chega estranhamente desalinhado, protestando contra o tratamento “indigno” (sic) a que foi submetido. Segue-se este diálogo:

– O senhor foi encontrado profanando uma sepultura e sua desculpa é dizer que é o chefe de polícia.
– O senhor sabe perfeitamente que eu sou o chefe de polícia! Eu lhe ordeno que faça que me devolvam minhas coisas imediatamente e que me acompanhe a meu gabinete. Eu lhe garanto que conversaremos sobre isso!
– Bem... Nós dizíamos: profanação de sepultura.
– Era a sepultura de minha irmã!
– De sua irmã?
– Sim, eu tinha ido ver a minha irmã. Ela me havia telefonado!
– Bem, vá, devolva-o a sua cela! – desiste o comissário.

Mal sai Richepin, levado pelo policial, o comissário, que em seguida saberemos chamar-se Dupuis, toma do telefone, pedindo que o liguem com o chefe de polícia, acrescentando urgência. Após desculpar-se por poder estar incomodando, Dupuis continua:

– Imagine que prendemos um fulano que se diz chefe de polícia!
– Ele pretende ser o chefe de polícia! É curioso! E se parece comigo? É simpático? – pergunta o supostamente verdadeiro chefe de polícia.
– Nem um pouco, senhor.
– Entendo. Mande-o imediatamente aqui.
Comissário e Richepin no vestíbulo do gabinete do chefe de policia. Entram, Richepin sendo guiado de maneira bastante rude pelo policial que os acompanha. Entram no gabinete – que percebemos ser o mesmo em que Sr. Legendre havia recebido a notícia de que haviam encontrado sua filha – e nosso novo chefe de polícia cumprimenta jovialmente o preso, dispensando Dupuis e oferece sua própria cadeira a Richepin, que declina. Sentam-se, então, ambos em frente a mesa, o novo chefe pede dois uísques a seu assistente e comenta que Richepin engordou.

– Você também – responde, com intimidade, o recém-chegado.

Trocam algumas palavras sobre a enormidade de jantares oficiais, com suas bebidas e comidas e como é importante saber evitá-los,

– Que que o senhor faz esta manhã? – continua Richepin.
– Esta manhã... – hesita o outro.
– Ah, sim, o zoo, ao meio-dia – adianta-se o “ex-chefe”.
– Eu temo perturbações, mas tomei minhas precauções.
– Mandei colocar 12 viaturas ao redor do local – assegura-lhe o outro, como que recuperando funções.
– Não agrupadas. Dispersas. Para não alarmar os jovens. O importante é impedi-los de chegar às jaulas.
– As fechaduras foram cuidadosamente examinadas.
– Se afinal, alguns animais forem abatidos, paciência! A vida...
– A vida de nossos homens é mais preciosa do que a de uma zebra – concorda Richepin.

Chega o uísque. Brindam. A nova cena se inicia com imagens de animais: um pavão, um rinoceronte, uma foca, um hipopótamo, um abutre, um urso, uma leoa. Várias vozes de animais ao fundo. Vemos as duas personagens da cena anterior chegando ao zoológico, acompanhados de comitiva civil e policial. Já dentro dele, ouvem brados: “Viva la Caiena! Viva la Caiena!” E logo o novo chefe de polícia ordena: “Atacar!” Ao que reforça Richepin: “E com vigor!” (= “Et frappez fort!”)

Ao fundo, se ouvem tiros e badalar de sinos, enquanto a câmara se desvia para focalizar, contra um fundo borrado, um avestruz.

Interpretação

Tendo o irmão “ofendido” lavado sua honra com o festim homicida que vimos de descrever, a existência de sua irmã torna-se mais suportável e Aliette reaparece. Aliás, o fato de ser Brigitte que confirma ter sido a menina tratada “como sempre” durante seu desaparecimento, passa a idéia de que Aliette, na verdade, estivera o tempo todo com a mãe, e o seu “seqüestro” ser meramente um fato construído pela mente do irmão, assim como, no primeiro trecho que analisamos, Henri havia fantasiado que sua esposa, Helène, havia saído de casa.. O aparecimento real da irmã ocorrera de fato, após uma “explosão”: o seu nascimento .
Ao deixar apressadamente seu gabinete, o Sr. Richepin vai para um bar, onde se prepara para arrumar as peças do quebra-cabeças existencial – representado por um jogo de dominó – com que se vem defrontando. A vertente sexual do relacionamento com a irmã, atinge, agora, sua máxima clareza. Sua irmã chama-se Margueritte – uma das irmãs de Buñuel, como vimos, chamava-se Margarita, provavelmente a mais velha das três que vieram ao mundo logo depois do nascimento de nosso autor. A mesma atriz representa, no filme, por primeiro, a enfermeira da libidinosa sessão de jogos com os irmãos, ocorrida na estalagem, mais tarde, Estelle, a quem Richepin começa a fazer a corte e que diz ser assustadoramente parecida com a irmã dele e, por fim, essa própria irmã. Pede-se, para variar, um Porto, de significado já aludido. Não é implausível que a cena do piano encubra alguma cena real. Tocar piano é símbolo de masturbação; calor, de desejo sexual. Se juntamos isso à referência brincalhona à sesta, poderíamos imaginar que a cena condensa masturbações, feitas à hora da sesta, durante que o menino imaginava o corpo nu da irmã (cujas pernas e genitália terá, quem sabe?, visto alguma vez ao agachar-se sob um piano real, enquanto aquela tocava). O comentário crítico da mãe teria possivelmente por alvo oculto o desligamento da realidade associado a essa atividade masturbatória. A vertente rejeitadora do Complexo de Caim reaparece, neste trecho, de maneira atenuada: Estelle, existe, mas é “estrangeira”, leia-se, “não pertence à família”. A vertente agressiva desse complexo, nesse trecho, não só “mata” a irmã , mas o faz de maneira sui generis. Ela morre de colique du miserere. Miserere, em latim, significa “tenha compaixão” : na colique du miserere, o pedir compaixão, certamente, não terá funcionado. É, além disso, uma doença que atinge o ventre e que, segundo o Richepin, em seu estágio terminal, faz a vítima verter fezes pela boca, mais uma referência, que não mais exige comentários, às teorias infantis sobre o nascimento. A penetração do jazigo da irmã e a ameaça, não cumprida em virtude da chegada dos policiais, de, com uma talha, violar o esquife, também já dispensa interpretação. Os cabelos que saem do féretro reeditam uma cena real relatada na autobiografia de Buñuel , mas, como um resto diurno de um sonho, ao reaparecer no filme, sugere ter algum significado latente: imagino que representam pelos pubianos. As cenas seguintes revelam que Richepin representa, no conteúdo manifesto, o menino que, em seu processo de crescimento, identifica-se com o pai e, também, que esse último olha com benevolência tal processo. Quando o comissário Dupuis leva Richepin ao gabinete – o mesmo em que Richepin atendera ao casal Legrange – do “verdadeiro” chefe de polícia, esse último chega, até, a oferecer sua cadeira para o “transgressor” (o pai de Buñuel morreu quando esse tinha quatorze anos e ele, como primogênito, assumiu, a partir daí, o papel de “chefe” da família). A maneira que termina o filme sugere que Buñuel teve uma iniciação sexual de um tipo não raro, nos velhos tempos. Algum homem mais velho – representante simbólico do pai – levou-o a um prostíbulo (= zoológico) onde mulheres, em seus cubículos (= jaulas), são tratadas como animais (apartamentos onde rapazes levam garotas para lhes dar uma “surra de pica” são freqüentemente chamados de “matadouros”). A visão sado-masoquista do coito, pelo menos no que diz respeito a esse filme, não é superada: o que ocorre no prostíbulo-zoológico é uma batalha, cuja crueza é de difícil digestão, fazendo que a avestruz continue a dominar a cena...
Com tudo que vimos até aqui, torna-se compreensível a curiosíssima figura que aparece nos cartazes em que se faz a propaganda do filme: um avestruz: símbolo da negação; barrigudo, a gravidez negada está ali bem presente; cuja barriga é uma bunda, representação da teoria do nascimento anal; numa postura que se confunde com a da Estátua da Liberdade, referência à “délivrance”; segurando uma vela com duas características dignas de nota: está apagada, indicando nova tentativa de negação do “dar a luz”, e curvada, indicando os abalos que a notícia de um nascimento trouxe à teoria de que a mulher tem pênis.

Terminamos. Frente à análise acima, alguém poderia repetir a pergunta feita a Freud, quando, em uma situação cotidiana, ele realizou com sucesso a análise de um lapsus linguae de um desconhecido, a pedido desse mesmo desconhecido: – “Mas tudo isso não poderia ser meramente obra do acaso?” Ao que respondeu:

‘Devo deixar a você decidir se pode ou não explicar todas essas conexões através da suposição de que elas são apenas obras do acaso. Posso, entretanto, assegurar-lhe que cada caso como esse que você se dá ao trabalho de analisar irá levá-lo a “obras do acaso” igualmente espantosas.”

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