quarta-feira

Tradução da ESB de "A Hereditariedade e a Etiologia..." (Freud,1896a)"

Encontrei essas linhas jogadas entre meus antigos escritos. Elas, infelizmente, não continham referências, salvo as contidas no próprio texto, sobre todas as fontes de que retirei as informações abaixo. A postagem é oportuna, pois a ESB [sigla para a tradução para o português da obra psicológica completa de Freud, oferecida pela Editora Imago], pois a Imago, a partir de 2004, com uma reedição da ESB sob a coordenação geral de Luiz Alberto Hanns , parece estar tentando se redimir dos “crimes” cometidos nas edições anteriores contra os originais freudianos.

A ESB para sofreu uma significativa revisão em 1987. Com efeito, muitos erros da edição original, de 1976, foram eliminados (No que segue, vamos nos referir às edições anteriores a 1987 como ESBa e às demais como ESBb). Essa revisão de 1987, entretanto, via de regra, não faz mais do que adaptar melhor a ESB à tradução inglesa que, por vezes, se afasta grosseiramente do original freudiano, como, por exemplo, quando, no artigo em pauta, se permite traduzir o francês “irritation” ( = “irritação” ) pelo inglês “excitation” ( = “excitação” ), distorcendo gravemente o pensamento freudiano original.

Infelizmente, nossa tradução “padrão”, não apenas incorpora virtualmente todos os erros da SE, mas ainda consegue piorá-la: conseguiu isso, por exemplo, em ESBa, ao transformar “the intrinsic structure of the neurosis” ( = “a estrutura intrínseca da neurose” ) em “a intrincada estrutura da neurose” (ESBa, III, 176). Na ESBb, que, pelo menos, tenta manter só os erros do inglês, isso vem corrigido.

Meus reparos às traduções de 1896b apresentadas pelas ESB não listam os erros que, como “neuroses maiores”, não prejudicam a compreensão do texto. Os demais seguem organizados em três grandes grupos. Do primeiro, constam pequenos deslizes que não prejudicam de forma significativa a compreensão do pensamento de Freud; ao segundo, pertencem aqueles enganos que trazem moderado prejuízo; formam o terceiro grupo, o erros de tradução que dificultam grandemente a compreensão do original. .

As incorreções que trazem pequeno prejuízo à compreensão do todo são as seguintes:

1. Na ESB (ESBa: 167; ESBb: 138), onde se lê “desde que” (tradução indevida do inglês “since”), leia-se “já que”;

2. Onde se lê (ESBa: 167; ESBb: 138), “patogênese neurótica” (razoável tradução de “neurotic pathogenesis”, mas sofrível tradução do original “pathogénie nerveuse”), leia-se “patogenia nervosa”;

3. Onde se lê (170; 140) “moderada” (cabível tradução do inglês “moderate”, mas injustificável transformação do original francês “médiocre”), leia-se “medíocre”;

4. Onde se lê (170, 140) “hereditariedade nervosa intensamente carregada” (compreensível tradução do inglês “severely loaded nervous heredity”, onde a SE decidiu acrescentar “severely” a um trecho do original francês onde esse advérbio inexiste), leia-se “carregada hereditariedade nervosa” ( = “hérédité nerveuse chargée”);

As seguintes, trazem um prejuízo moderado:

1. Onde se lê (170, 140) “coincidência” (SE: “coincidence”), leia-se “concorrência” (original: “concurrence”); aqui, a má tradução faz-se perder a idéia de “somação”, essencial ao pensamento que orienta o artigo;

2. Onde se lê (171, 141) “outra forma de afecção nervosa” (perfeita tradução de “other form of nervous affection”), leia-se “outra afecção nervosa” ( = “autre affection nerveuse”). Há algum prejuízo porque cada “afecção nervosa”, digamos, a esquizofrenia, pode apresentar determinadas “formas” ou “variações” – denominadas “patoplastias” – que dependem, entre outras possibilidades, da classe social, da cultura (o conteúdo dos delírios de um africano é certamente diverso do de um europeu), sem que isso implique em alteração do diagnóstico de esquizofrenia. Quando Freud, em 1896a, fala de “autre affection nerveuse”, está obviamente se referindo a uma alteração nosográfica, não a uma alteração patoplástica e a desnecessária inclusão do termo “forma” por Strachey – obedientemente seguida pela ESB – pode induzir a erro, particularmente em um texto em que Freud faz questão de enfatizar que a neurose obsessivo compulsiva não é uma “forma de histeria” a que se acrescentam obsessões, mas uma entidade nosográfica, por ele delimitada, de natureza totalmente autônoma (raciocínio análogo pode ser empregado relativamente à neurose de angústia e à histeria);

3. Onde se lê (171, 141), “desenvolvimento”, leia-se “crescimento”. Aqui é um dos lugares onde a Imago piora Strachey, que traduziu corretamente o francês “accroissement” pelo inglês “growth”;

4. A ESBb (145) resolveu “melhorar” a ESBa (176) acrescentando gratuitamente o adjetivo “primeira” ”– inexistente tanto no original francês, quanto na tradução para o inglês da SE – ao trecho “o sujeito está em sua infância; piorou e a piora não é irrelevante, pois fazem parte integrante de 1896a as hesitações freudianas relativas a até que idade poderiam ocorrer os eventos que iriam mais tarde se transformar no núcleo mnêmico inconsciente de uma psiconeurose;

As que seguem trazem um relevante obstáculo à compreensão do texto:

1. Onde se lê (171, 141) “linhas de aproximação” (SE: “lines of approach”), leia-se “pontos de apoio” (original: “points d’appui”); uma correta compreensão deste trecho é seminal para uma crítica freudiana aos culturalistas, que, na verdade, encontram “ponto de apoio” para a eficácia de sua técnica no fato de reduzirem o aporte quantitativo das “causas concorrentes ou acessórias” da neurose, fazendo-a retornar a um estado de latência, sem haver eliminado sua “causa específica”;

2. Onde se lê (176, 145) “excitação sexual precoce” (SE: “precocious sexual excitation”), leia-se “irritação sexual precoce” (original: “irritation sexuelle précoce”); esse erro torna praticamente incompreensível a argumentação com que Freud tenta justificar o fato de a memória do evento infantil, reativada após a adolescência, exercer a posteriori um efeito maior do que o que teve o próprio evento, quando de fato ocorreu; essa argumentação – e termo “irritação”, em vez de “excitação” – é naturalmente consoante com o fato de que, à época em que escreveu essas linhas, Freud ainda não havia reconhecido a existência espontânea da sexualidade na infância; irá fazê-lo no verão de 1987, em conseqüência de sua auto-análise;

3. Onde se lê (177, 145) “inspiradas” (SE: “inspired”!), leia-se “aspiradas” (original: “aspirés”); o trecho diz respeito ao mecanismo do “recalque por atração”, em que uma memória reprimida suga ( = aspira ) para o inconsciente outras lembranças associadas a ela; “inspiradas”, aqui, impede de todo que se possa perceber isso;

4. Onde se lê, “Uma psiconeurose aparece mais freqüentemente como acessória à neurose neurastênica, provocada por esta e acompanhando seu declínio. Isso ocorre porque as causas específicas da neurastenia...” (ESBa, 179)

Ou:

“A psiconeurose aparece mais freqüentemente como um acessório da neurose neurastênica, provocada por esta e acompanhando seu declínio. Isso ocorre porque as causas específicas da neurastenia...” (ESBa,147), leia-se: “Mais freqüentemente, a psiconeurose se revela como acessória às neuroses neurastênicas, provocada por elas e acompanhando seu curso. Isso ocorre porque as causas específicas dessas últimas...” (ESBa, 179) (original: “Plus souvent la psycho-névrose se présente comme accessoire aux névroses neurasthéniques, évoquées par elles et suivant leur décours...”)

Freud se referia à neurastenia segundo a descrição de Beard como “as neurastenias” ou “as neuroses neurastênicas” (sinonimicamente, portanto, com “neuroses atuais”), pois entendia que a entidade delimitada por esse último deveria ser subdividida em duas entidades nosológicas autônomas: a neurastenia propriamente dita e a neurose de angústia. O que Freud afirma no original de l896a, portanto, é as causas específicas de ambas as neuroses atuais podem agir como causas acessórias na equação etiológica das psiconeuroses. A SE traduz ambiguamente o francês “às neuroses neurastênicas” ( = aux névroses neurasthéniques ) por “a uma neurose neurastênica” ( = “a neurasthenic neurosis”), deixando ao leitor a tarefa de subentender corretamente “a uma [das duas] neuroses neurastênicas”. A ESB não cumpriu essa tarefa a contento e, em sua tradução, eliminou a referência do texto original a uma das neuroses atuais, distorcendo completamente seu significado. Na injustificável tradução de “décours” ( = curso, decurso ) por, respectivamente, “decline” e “declínio”, SE e ESB compartilham irmamente o engano: não há qualquer razão para se supor que o “curso” a que se refere Freud seja um curso “declinante”.

5. Deixei para o fim a discussão de um trecho de 1896a que gerou saborosa e internacional confusão. Refiro-me à parte do artigo em que, no fim de sua primeira seção, Freud fala – os grifos são meus – da “existência de outras influências etiológicas, de uma natureza menos compreensível” (Original: “l’existence d’autres influences étiologiques, d’une nature moins compréhensible.”). Entretanto, quem for à ESB (167, 139) ou à SE (III, 145) encontrará, respectivamente, “INcompreensível” e “INcomprehensible” e uma nota explicando que, embora tenha-se “compreensível” no original, a edição alemã das obras completas, de 1906 em diante, passou a imprimir “INcompreensível”, voltando ao original “compreensível” apenas a partir da edição de 52. Strachey – que mantém, como a ESB o “menos INcompreensível” – afirma que “há argumentos a favor de qualquer uma dessas alternativas”. Na verdade, há fortes argumentos contra ambas. Se não, vejamos:

O francês “comprendre”, o inglês “comprehend” e o português “compreender” acolhem igualmente dois significados: o de “assimilar intelectualmente” e o de “abranger”. Ao derivar adjetivos desses verbos, essas três línguas geram, respectivamente, “compréhensible”, “comprehensible” e “compreensível”, sempre com o mesmo significado de “passível de ser assimilado intelectualmente”, mas separam-se a partir daí: enquanto o francês “compréhensible” e o português “compreensivel” indicam “inteligível, tolerante, acolhedor”, o inglês “comprehensive” indica “abrangente”, correspondendo ao francês “comprenant”, hoje em desuso, mas ainda empregado na época de Freud, e para os quais não existe equivalente em português cognato de “compreender”. Ora, no texto sub judice, Freud se dedica a desqualificar a candidatura da hereditariedade dissimilar, em virtude de sua natureza excessivamente ampla, ao status de causa das neuroses. Após tê-lo feito, se oferece para substituí-la por uma etiologia de natureza “menos compreensiva” ( = “moins compréhensible”)! Não é óbvio que o que pretende fazer é oferecer uma etiologia de natureza “menos abrangente” (= “moins comprenante”) e, não sendo um falante nativo do francês, atrapalhou-se com o termo que escolheu?!

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