TRANSFERÊNCIA, CONTRA-TRANSFERÊNCIA E SUA
DESCARACTERIZAÇÃO NA HISTÓRIA
DA PSICANÁLISE
PARTE I
OS CONCEITOS ORIGINAIS
Dado que o conceito de contratransferência é um mero subconjunto do de transferência, podendo apenas a partir dele ser compreendido, começaremos abordando esse último.
A) TRANSFERÊNCIA:
1) NATUREZA:
a) Um exemplo:
Segue um exemplo clínico de transferência, transcrito de meu livro “A Nova Conversa”:
“Marcos, em sua primeira semana de análise, chamou-me atenção para um fato a que eu não havia atribuído maior importância:
– Você já notou – perguntou-me ele – que, quando me deito no divã, ponho as costas de minha mão sobre a cabeça? Ou melhor – continuou – eu não ponho minha mão sobre minha cabeça: ela vem para minha cabeça! Eu, aliás, quando me dou conta que isso aconteceu, insisto em tirá-la, mas, basta eu me relaxar e, pum!, lá está ela de novo! Que inferno!
De fato, eu havia percebido que meu paciente, ao se deitar, regularmente punha sua mão direita sobre a cabeça, mas não me passara a idéia de que se estivesse perturbando com isso. Marcos falou-me, também, sobre outro fato que o incomodava: tendo já perdido ambos os pais, podia, quando quisesse, re-evocar a figura paterna, mas não, a figura da mãe. Pensei o de sempre: conforme o paciente for vencendo seus bloqueios e libertando sua fala, memórias anteriormente inacessíveis passarão a ser acessadas e ele conseguirá lembrar-se da imagem materna.
E assim foi. Com um detalhe. Quando recuperou a imagem de sua mãe, lembrou-se de ela fazendo algo a que freqüentemente se dedicava: socar-lhe a cabeça! E de que, nessas ocasiões, ele se protegia das pancadas maternas com um gesto idêntico ao que era compelido a fazer, até então sem saber por quê, sempre que se deitava com a cabeça próxima a mim, no divã da análise! A partir dessa lembrança, Marcos voltou a mandar em sua mão.” [1]
b) O conceito:
A vinheta acima expõe com clareza os elementos básicos que compõem um processo transferencial: um sujeito A – no caso, Marcos –uma memória B – no caso, as pancadas regularmente aplicadas por sua mãe em sua cabeça – e uma percepção C[2] – no caso, a que Marcos tinha de seu psicanalista – distorcida por sua identificação automática e acrítica com ela da memória B.
Toda transferência, portanto, implica uma relação disfuncional entre percepção e memória, em que essa última distorce a primeira.
Já quando existe uma relação funcional entre ambas, o sujeito A, frente à percepção de C, é capaz de perceber sua semelhança com a memória de B, mas distingue identidades e diferenças, podendo, dessa forma, articular a experiência passada com a experiência presente, otimizando a qualidade de sua resposta a essa última.
Vale lembrar, fazendo uso de mais uma transcrição de “A Nova Conversa”, que, embora o termo seja mais freqüentemente empregado quando as memórias de um paciente distorcem a percepção de seu analista, tal emprego merece reparos:
“... a transferência pode ocorrer em relação a circunstâncias e a objetos, sem envolver de maneira direta qualquer relação com pessoas. Se, por exemplo, no dia 12 de outubro de um determinado ano, eu estava passeando em campo aberto e quase fui atingido por um raio, posso apresentar, todo dia 12 de outubro dos anos subseqüentes, mesmo que não saiba por quê, um estado de inquietude que me impeça de sair de casa.
Eu estaria, nesse caso, claramente transferindo minha experiência traumática, não de uma pessoa para outra pessoa, mas, sim, de uma data para outra.
De forma análoga, a transferência pode ser feita de um lugar para outro – no caso de Bertha Pappenheim[3], como vimos, de um quarto para outro – de um animal para outro, de um objeto inanimado para outro, de uma pessoa para um animal, de um animal para um objeto inanimado etc..” [4]
2) CAUSA:
Ao tipo de memória que se impõe sobre nossas percepções, distorcendo-as – produzindo, portanto, o fenômeno da transferência – Breuer e Freud chamaram, em seu famoso artigo publicado em 1893 (“O Mecanismo Psíquico do Fenômenos Histéricos – Comunicação Preliminar”), de “memórias hiperestésicas[5]”, pois, segundo a teorização desses autores, é o excesso de energia psíquica a elas associado que faculta a essas memórias efetuar tal distorção.
Na verdade, uma teorização completa sobre a quantidade de energia associada a uma memória deve distinguir memórias (a) com excesso de carga, (b) com um ótimo de carga e (c) com carga pouca ou nenhuma.
Proponho que passemos chamá-las, respectivamente, de (a) memórias hipertônicas (em lugar das “memórias hiperestésicas” de Breuer e Freud), (b) memórias eutônicas e (c) memórias hipotônicas.[6]
As memórias hipertônicas são causa dos distúrbios psicológicos que ocorrem nos quadros nosológicos que Freud chamou de “(Psico)neuroses[7] Transferemciais[8]” (= basicamente, na terminologia desse autor, a neurose obsessivo-compulsiva, a histeria de conversão e a histeria de angústia, essa última evoluindo usualmente na direção de uma neurose fóbica).
As memórias eutônicas são o fundamento da saúde psicológica, pois estão associadas uma quantidade ideal de energia, que permite o cotejamento entre memória e percepção.
As memórias hipotônicas não têm efeito relevante sobre nosso funcionamento psicológico e podemos excluí-las de nossas teorizações.
3) MANEJO CLÍNICO:
Do supra-exposto, segue-se naturalmente a conclusão de que, para dissolver as distorções perceptuais inelutavelmente presentes nas neuroses de transferência (e, naturalmente, remitir os sintomas a essas distorções associados) – a estratégia de qualquer técnica fundamentada na Psicanálise tem necessariamente por objetivo transformar memórias hipertônicas em memórias eutônicas, ou seja, em outras palavras, o de “eutonizar memórias hipertônicas”.
E como fazer tal eutonização? Dissolvendo a “Verdrängung”, termo traduzido em português, ora por “recalque” (quando Freud nos chega através do francês), como temos feito aqui, ora por “repressão” (quando nos chega através do inglês), o que, no jargão psicanalítico significa legitimar o acesso dessas memórias à expressão verbal.
B) CONTRATRANSFERÊNCIA:
1) NATUREZA:
O conceito de contratransferência é, como dissemos, um subconjunto do de transferência, correspondendo a toda e qualquer transferência proveniente do psicanalista e voltada para seu paciente.
2) CAUSA:
A de sempre, qual seja, a presença, no psiquismo do analista, de uma memória hipertônica que distorce sua percepção dos demais.
3) MANEJO CLÍNICO:
O de sempre, qual seja, a eutonização das memórias hipertônicas presentes no psiquismo do psicanalista, mediante a legitimação de seu acesso à representação verbal, ou seja, dissolvendo o recalque que as mantinha fora da consciência.
Para consecução desse fim, o treinamento clássico de um psicanalista supõe que ele também se submeta como a um tratamento psicanalítico, a que se convencionou chamar de psicanálise didática.
PARTE II
A DESCARACTERIZAÇÃO DOS CONCEITOS
A) UM POUCO DE HISTÓRIA:
1) UMA NOVA AMOSTRA:
A amostra a partir da qual Freud desenvolveu sua técnica e sua teoria era essencialmente constituída por pacientes que apresentavam o que chamou de “neuroses transferenciais” (Histeria de Angústia, Neurose Fóbica, Histeria de Conversão e Neurose Obsessivo-Compulsiva).
Nesses pacientes, a técnica psicanalítica permitia – vide o caso de Marcos – a clara identificação de um tripé constituído por: (a) memórias hipertônicas presentes no psiquismo do paciente e resgatáveis via dissolução do recalque, (b) a pessoa do psicanalista e (c) a distorção da relação com esse psicanalista por aquelas memórias (= transferência, núcleo dos demais sintomas presentes nas enfermidades em tela).
O sucesso com esse tipo de pacientes fez que o trabalho de Freud atraísse significativo número de discípulos, alguns trazendo consigo um grande desafio: vários dentre eles trabalhavam com pacientes muito mais regredidos do que os tratados por Freud.
Essa lacuna nos dados provenientes da prática clínica freudiana e a inadequação de sua técnica para tratar esses pacientes mais regredidos é apontada pelo próprio Freud, em 1911, na introdução de suas “Notas Psicanalíticas sobre um Relato Autobiográfico de um Caso de Paranóia (Dementia Paranoides)”:
“A investigação analítica da paranóia oferece especiais dificuldades a médicos que, como eu, não atuam em instituições públicas. Não podemos aceitar tais pacientes ou prolongar nossa relação com eles, pois a perspectiva de sucesso terapêutico é exigência de nossa técnia. Assim, ocorre que apenas excepcionalmente eu possa dar um mergulho mais profundo na estrutura da paranóia ... Aliás, é bastante freqüente que eu me defronte com paranoicos (e dementes[9]) e aprenda tanto com eles quanto outros psiquiatras com seus casos... mas isso em geral não é suficiente para permitir conclusões analíticas.”[10]
Esses pacientes mais regredidos, escassos na clínica freudiana, têm seus sintomas moldados por memórias hipertônicas cujo conteúdo corresponde a épocas por demais precoces de nosso desenvolvimento para que seja possível[11] seu resgate pela consciência via dissolução do recalque, como proposta por Freud. Com efeito, alguém imagina um paciente sob não importa que tipo de tratamento psicoterápico, lembrando-se: “Ao nascer, senti intensa falta de ar e algo enrolado em torno de meu pescoço?” ou “Quando eu tinha dois meses, preferia o seio direito de minha mãe, mais farto em leite do que o esquerdo?” Espero que não.[12]
A esses pacientes mais regredidos, portanto, falta um dos três elementos essenciais do conceito original de transferência: a possibilidade de remissão dos sintomas mediante dissolução do recalque (= acesso à representação verbal), com a conseqüente eutonização (e simultâneo resgate pela consciência) das memórias hipertônicas que os produziam.
Frente a isso, Freud:
a) denominou as memórias hipertônicas irrecuperáveis pela consciência de “protofantasias” (“Urphantasien”)[13], considerando-as como matrizes universais, filogenéticas e prontas para moldar nossas experiências pessoais;
b) separou o “recalque propriamente dito”, conhecido simplesmente como “recalque” (“Verdrängung”), considerado reversível, de um “proto-recalque” (“Urverdrängung”)[14], do qual eram alvo as citadas “protofantasias” (e,portanto, irreversível);
ci) agrupou os pacientes cujos sintomas eram devidos ao proto-recalque sob o nome de “neuroses narcísicas, separando-os do grupo que denominou de “neuroses transferenciais””[15];
d) entendeu o tratamento psicanalítico como indicado para segundo tipo de transtorno e inadequado para o primeiro, sugerindo uma análise de prova, para evitar prolongamentos infrutíferos no trabalho com os portadores de neuroses narcísicas[16].
2) O IMPASSE:
Na verdade, Freud considerou a técnica psicoterápica por ele desenvolvida não apenas ineficaz para o tratamento das “neuroses narcísicas” (= psicoses): encontravam-se também fora de seu alcance (a) os pacientes com quadros agudos, (b) os com más-formações de caráter, (c) os de idade muito avançada, (d) as crianças e (e) outros, como os não motivados, os mentalmente retardados, etc..[17].
Ora, até o início do século XX, a Psicanálise oferecia praticamente o único tratamento psicológico com condições de pretender cientificidade e, dessa forma, banir um tipo de paciente do acesso a ele terminava significando negar-lhe todo e qualquer atendimento de natureza psicoterápica.
Os que se aproximaram de Freud não se conformaram com isso. Para nos limitarmos aos mais famosos: Karl Gustav Jung e Sandor Ferenczi atenderam psicóticos, Karl Abraham teve sucesso com pacientes de noventa anos ou mais, Reich desenvolveu um importante trabalho com as más-formações caracterológicas, Anna Freud e Melanie Klein voltaram-se para o atendimento psicoterápico de crianças de até mesmo um ou dois anos de idade.
3) AS CONSEQUÊNCIAS IMPASSE
a) O que deveria ter ocorrido:
Ora, o reconhecimento de que os conceitos freudianos, sua técnica e a terminologia que empregou para descrevê-los tinham sua eficácia limitada a um determinado grupo de pacientes deveria, para o bem da Psicologia[18], em havendo pretensão de entender e tratar pacientes não pertencentes a esse grupo, ter redundado na produção de novos conceitos, novas técnicas e nova terminologia que, em vez de pretender substituir os primeiros, que compusesse uma Teoria Geral integrando todas Psicologias Profundas, ou seja, todas descobertas e achados das abordagens psicológicas que operassem com o conceito de inconsciente. Infelizmente, nada disso ocorreu.
b) O que ocorreu:
O inconformismo de muitos dos novos discípulos com as limitações da técnica e da teoria freudianas gerou cisões, umas estrepitosamente assumidas – como as de Adler e Jung[19] – umas diplomaticamente conduzidas, como as de Ferenczi e Abraham – umas sorrateiramente implementadas, como a de Anna Freud e de Klein.
As rupturas ruidosamente assumidas, que queriam deixar patente a existência de uma cisão, produziram termos diferentes para nomear o mesmo conceito, as sorrateiramente implementadas, que preferiam escondê-la, modificaram conceitos sem lhes atribuir novos nomes.
A Psicanálise estava sofrendo da enfermidade que viera curar: o uso insatisfatório da função verbal.
(CONTINUA)
[1] EBRAICO, L. C. de M.. A Nova Conversa. Rio: Ediouro, 2004, p. 18-9.
[2] Não accessível à consciência, é claro.
[3] Paciente que entrou para a história da Psicanálise sob o pseudônimo de Anna O. e que, tendo mudado de residência, alucinava estar vivendo na casa que habitava no ano anterior.
[4] Op. cit.., p. 31-32.
[5] “Hyperästhetische Errinerung”, no original (G.W., vol. I, p. 96)
[6] Isso para evitarmos, nas considerações a seguir, catástrofes fonéticas como “eu-estésicas” e “hipo-estésicas”.
[7] Freud contrapõe aos quadros clínicos que chamou de psiconeuroses – vulgarmente chamados simplesmente de “neuroses” – os quadros clínicos a que chamou de “neuroses atuais” (mais propriamente denominados por Ferenczi de “vegetoneuroses”), que não nos interessam aqui por ficarem à parte dos questionamentos relativos ao conceito de transferência.
[8] “Übertragungsnurosen”
[9] Lembremo-nos de que, à época de Freud, “dementia praecox” era a denominação – proposta por Kraepelin – ao transtorno mental que, após sugestão de Bleuler (de Eugen, o pai, não de Manfred, seu filho), passamos a chamar de “esquizofrenia”.
[10] “Die analytische Untersuchung der Paranóia bietet uns Ärzten, die nicht an öffentlichen Anstalten tätig sind, Swierigkeiten besonderer Natur. Wir können solche Kranke nicht annehmen oder nicht lange behalten, weil die Aussicht auf therapeutischen Erfolge die Bedingung unserer Behandlung ist. So trifft es sich also nur ausnahmsweise, daß ich einen tieferen Einblick in die Struktur der Paranoia machen kann... Ich sehe sonst natürlich Paranoiker (und Demente) genug und erfahre von Ihnen soviel wie andere Psychiater con ihren Fällen, aber das reicht in der Regel nicht aus, um analytische Entscheidungen zu treffen.” (Freud, S. Gesammelte Werke. London: Imago Publishing Co., Ltd., 1999, vol. 8, p. 240)
[11] Dada a insuficiente mielinização do sistema nervoso nas etapas de desenvolvimento a que ficaram fixados ou para as quais regrediram.
[12] En passant, quero lembrar, que, quando pressionadas, as pessoas mentem mesmo sob hipnose.
[13] 1915, Conferências Introdutórias à Psicanálise.
[14] 1911, Caso Schreber
[15] 1914, Introdução ao Narcisismo;
[16] 1913, Sobre o Início do Tratamento. Essa “análise de prova” estender-se-ia por um período de aproximadamente duas semanas – à razão de cinco ou seis sessões de uma hora por semana – para verificar se o nível de desenvolvimento psicológico do paciente justificava aceitá-lo para tratamento. Na verdade, nesse trabalho, não emprega a expressão “neurose narcísica”, apenas introduzida em 1914, como assinalei na nota anterior.
[17] Cf. A Sexualidade na Etiologia das Neuroses (1898), Sobre a Psicoterapia (1904), O Método Psicanalítico de Freud (1904). A área de transição entre uma “neurose narcísica” e uma “neurose transferencial” é matizada e pode exigir uma “análise de prova” para diferenciá-las; os demais grupos contra-indicados para o tratamento psicanalítico não precisavam, naturalmente, passar por esse teste para ser eliminados. Vale também lembrar que o próprio Freud, no primeiro desses artigos, ele comenta: “Acho muito provável que seja possível conceber métodos suplementares para o tratamento de crianças e para o público que procura assistência hospitalar” (“Ich halte es für sehr wohl möglich, daß sich ergänzende Verfahren für kindliche Personen und für das Publikum, welches in den Spitälern Hilfe sucht, ausbilden lassen.” (G.W., 1999, vol. I, p. 514)
[18] Da qual, como bem acentuou Freud, a Psicanálise é um dos ramos.
[19] Que, em abril de 1914, renunciou ao cargo de presidente da Associação Psicanalítica Internacional, para o qual havia sido reeleito em setembro do ano anterior, levando à defecção, três meses depois de sua renúncia, de todo o grupo vindo de Zurique.
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