O número 20 da revista PSIQUE, atualmente nas bancas, traz matéria intitulada "Quem é o psicólogo brasileiro de hoje?". Dada o grande potencial de utilidade das informações ali contidas para os que pensam em abraçar essa profissão, passo a destacar, por etapas, as mais relevantes dentre elas, comentando algumas e acrescentando mais uma ou outra, não abordadas ali.
1) Em sua introdução, o artigo - cujos dados foram fornecidos pela NOTISA, uma agência de pesquisa - lembra que "a maioria dos alunos (80%) que ingressa na faculdade de Psicologia é mulher, jovem, tem renda familiar média e é solteira" (p. 37).
Posso acrescentar que, quando, em 1968, me transferi da então UEG (hoje UFRJ) para a PUC, os raros estudantes de sexo masculino entre aquela multidão de mulheres eram mal vistos pelos alunos de outras áreas (um tantinho de inveja devia fazer parte disso). Lembro-me de um estudante de engenharia me provocando com o comentário de que um sujeito de sexo masculino fazendo Psicologia era "padre ou veado". Como eu não era nem uma coisa nem outra, arranjei várias namoradas. Talvez seja uma vantagem adicional para os rapazes que pretendem ingressar na área...
[Sobre o assunto, vale lembrar o que diz o artigo, "Em Forma", de Valéria França publicado na revista VEJA (Ano 30, n. 40, 8 de outubro de 1997. p. 17): “A Faculdade de Medicina de Baylor, nos Estados Unidos, descobriu que a abstinência sexual temporária do homem eleva a concentração de espermatozóides portadores do cromossomo X. Quando isso acontece, um casal tem mais chances de gerar um menino. Se o homem tiver relações sexuais diárias, há mais probabilidade de nascer uma menina.” Do que se infere: se as condições ambientais forem de guerra, em que o homem fica pouco em casa, nascem mais meninos; se forem de paz, em que ele está mais em casa, nascem mais meninas". Meninos servem para a guerra, meninas para a paz! Acho que todos esses dados apontam para o papel que a Psicologia irá desempenhar no futuro desse nosso conturbado planeta.]
2) Segue o artigo: "Outra característica que chama a atenção é o despreparo, ou a falta de informação sobre a carreira." (p. 37). Abordo essa questão no item 5 destes comentários.
3) Logo a frente, cita um comentário de Ana Mercês Bock, atual presidente do Conselho Federal de Psicologia: "Uma outra característica do psicólogo é que há muita adesão a sua escolha profissional, o que é percebido no fato de os cursos terem um baixo índice de evasão e de inadimplência" (p. 38). Isso aponta para algo alvissareiro: a profissão deve trazer significativas satisfações além da financeira, sobre a qual logo nos voltaremos. Ana Bock acrescenta: "as pessoas gostam do que fazem, querem fazer isso e, depois de formadas têm grande empenho para exercer a profissão. Por isso, grande parte dos psicólogos está exercendo a Psicologia, mesmo que, às vezes, por poucas horas, ou até como voluntários" (ibid.).
Tal colocação merece importante reparo. Onde diz, "grande parte dos psicólogos", deveria estar dito "grande parte dAs psicólogAs". Isso altera em muito a análise da questão. Devido a funções que exerço e que exerci, tenho e tive acesso às condições de trabalho de várias centenas - esse número não é uma metáfora! - de psicólogas. Embora esses meus contatos confirmem o prazer que derivam de sua atividade profissional, há outro fator que exerce grande peso - possivelmente determinante - para que grande número delas a exerça "part time", como um "bico" ou em termos de voluntariado, qual seja: a imensa maioria é casada, sendo seus companheiros a fonte principal da renda familiar. Rara vez - ou nenhuma - vi uma psicóloga que só contasse com proventos oriundos de seu próprio trabalho dar-se ao luxo de exercê-lo apenas "part time".
4) Segundo Sílvia Renata Lordello, professora da Universidade Católica de Brasília, o aluno entra na faculdade "enganado pelo 'psicologismo', como chamamos a apropriação da Psicologia por pessoas leigas" (p. 38). Se bem entendi o que Sílvia Renata chama de 'psicologismo', ele é certamente uma das PIORES PRAGAS DA PROFISSÃO, responsável, inclusive, pela desvalorização do(a)psicólogo(a) no mercado de trabalho, fazendo esse ponto merecer um comentário mais amplo. Façamos isso.
Quando a ciência ocupa o espaço anteriormente ocupado pelo senso comum, cria um "senso incomum". Com efeito, senso-comum sustentou, durante milênios, o que nossos sentidos sugeriam: que o Sol girava em torno da Terra. Veio a ciência e abalou a todos, ensinando o inverso disso. Também durante milênios, ao nos sentarmos sobre uma cadeira ou sobre uma pedra, o senso-comum nos ensinou estarmos firmados sobre pedaços imóveis e contínuos de matéria. A ciência, mais uma vez, alterou tudo: disse estarmos sentados sobre átomos, bolinhas que giram enlouquecidas pelo espaço, mantendo imensas áreas de vazio entre si...
Pois bem, embora algo de mesma natureza tenha ocorrido quando o ponto de vista científico passou a ocupar-se, de forma particularmente espetacular por meio da Psicanálise, com o estudo da psique, é deprimente verificar a espantosa ausência do senso-incomum científico nas intervenções da maioria dos psicólogos, o que aponta para o baixíssimo nível da formação acadêmica nesse campo do saber. Os efeitos mercadológicos disso são evidentes: por que procurar - e pagar por isso - a um profissional que não é capaz de nos dizer algo diverso do que qualquer leigo “sensato” nos diria?
5) “Uma outra característica comum aos que ingressam [na faculdade de Psicologia] é o desejo de atuar na área clínica”, sobre o que comenta Iolete Ribeiro da Silva, doutora em Psicologia pela Universidade de Brasília: “Muitos chegam com a expectativa de se formar em psicólogo clínico e atuar no consultório dentro de um modelo biomédico, mas a formação tem o desafio de mostrar uma Psicologia com outra cara e com outros compromissos”. (p. 39)
A questão apontada acima é tão crucial para a qualidade da formação dos profissionais que lidam com a saúde psicológica, que cabe fazer algumas observações relativas à formação de outros tipos de profissionais.
Há especialidades que ficam mal servidas, quando sua formação existe como mero apêndice de outras. A Arquitetura só pôde atingir o nível de excelência que atingiu quando sua formação se tornou independente da formação em Engenharia; o mesmo ocorreu com a Farmacologia e a Odontologia, quando se libertaram da formação em Medicina.
A história Odontologia demonstra notavelmente bem essa asserção. Os Estados Unidos foram, em 1939, o primeiro país a criar uma Faculdade de Odontologia, independente da de Medicina. A essa época, os dentistas franceses, mais qualificados do que os brasileiros, dominavam nosso mercado, mas sua formação ainda era um mero complemento da formação médica. Demonstrando a eficácia de seu novo modelo de formação acadêmica, os dentistas vindos dos EUA para o Brasil, foram gradualmente sendo preferidos aos franceses que, formados no modelo antigo, dominavam, até então, nosso mercado. Ao encerrar-se o século XIX[1], o Brasil adota o modelo dos EUA, criando, em São Paulo, a primeira Faculdade de Odontologia[2]. Portugal só faz isso um lustro e meio depois, em 1975. A existência de um Acordo Cultural Brasil-Portugal, assinado em 1966, cujo XIV artigo estabelece a equivalência de diplomas acadêmicos brasileiros e portugueses, permitindo a seus portadores livre exercício profissional no territórios de ambos os países, deu à disputa mercadológica entre nossos dentistas e os “médicos dentistas” de Portugal, um contorno mais estrepitoso do que o ocorrido aqui, dezenas de anos antes, entre americanos e franceses. A população portuguesa, particularmente após a última década de oitenta, passou a preferir maciçamente os nossos profissionais, ao que os lusitanos responderam tentando criar todo tipo de empecilho ao cumprimento integral do acordo de 1966. O que, não só deu origem a uma das mais longas e acirradas querelas diplomáticas entre os dois países – encerrada apenas em 1999, com a vitória dos brasileiros, que tiveram seu direito ao livre exercício de sua profissão no território de Portugal reconhecido por unanimidade no congresso desse país – com deixou, na história da Odontologia[3], uma das marcas mais flagrantes do salto qualitativo que sofreu a formação de seus profissionais, a partir do momento em que ela se libertou da Medicina.
E o que tem isso a ver com as Faculdades de Psicologia e com o fato a maior parte dos que nela ingressa pretende, ao fazê-lo, dedicar-se à Psicologia Clínica? Algumas coisas:
a) O que as faculdades fornecem para essa especialização ocupa um espaço curricular excessivo,
(i) suficiente para prejudicar adequado ensino de outras especialidades; e
(ii) insuficiente para prover quem a escolheu dos instrumentos necessários para exercê-la de maneira minimamente competente, acabando por servir como um desnecessário, cansativo e desestimulante vestíbulo para uma nova “graduação”, igualmente longa, que irá iniciar-se apenas após recebido o diploma, e que ocorre, via de regra, mediante a filiação do psicólogo recém-formado a algum tipo de sociedade psicoterápica, que passa a fornecer o que a faculdade deveria ter oferecido e não ofereceu. A péssima qualidade de nosso ensino básico conseguiu produzir um mal infelizmente necessário: a indústria dos cursinhos pré-vestibulares; a péssima qualidade do ensino acadêmico na especialidade da Psicologia Clínica conseguiu produzir dois: (a) a indústria das “formações” pós-acadêmicas e (b) o abandono da vocação por pessoas talentosas que, sem recursos financeiros para obter, após graduadas, a proficiência que deveriam e poderiam ter obtido durante a graduação, são suficientemente honestas para reconhecer que foram enganadas e desistir de realizar o sonho que chegaram a sonhar.
b) Ainda que – como se fez com a Arquitetura, a Odontologia, a Farmacologia etc. – o ensino da Psicologia Clínica se destacasse dos demais estudos psicológicos, isso não traria conseqüências tão favoráveis quanto trouxe para aquelas outras especialidades.
E por que não? Porque, no que diz respeito à formação dos profissionais que lidam com a saúde e a doença mental, fica demonstrada de forma especialmente gritante o que de verdade tem o dito “casa de ferreiro, espeto de pau”. Com efeito, promover a saúde e combater a doença psicológica é o escopo desses profissionais. Ora, qual a principal característica de uma e de outra? Da primeira, certamente, a operação integrada das funções mentais, da segunda, a operação dissociada dessas funções, do que provém afirmarem alguns que a esquizofrenia, nosologia em que essa dissociação está superiormente presente, encarna o mais acabado modelo da doença psicológica.
Pois bem, a formação dos profissionais de saúde mental é esquizofrênica. Guiado subliminarmente por alguma estúpida adesão a um modelo que DISSOCIA a compreensão do corpo da compreensão da mente, nosso sistema acadêmico propicia a formação EM SEPARADO, por um lado, de psiquiatras, especializados em compreender as bases orgânicas da saúde e a doença psicológica e, por outro, de psicólogos clínicos, especializados em compreender as bases semânticas de ambas. Mais do que isso: propicia a formação, em separado, de MAUS PSIQUIATRAS e de MAUS PSICÓLOGOS CLÍNICOS, pois adiciona à parcialidade de suas formações o tempero de elas serem feitas como encolhidos APÊNDICES de campos mais vastos, de que se deveriam independentizar. Resumindo a ópera:
Enquanto não se criarem FACULDADES DE SAÚDE MENTAL em que os estudantes se dediquem, em tempo integral, a conhecer os aspectos físicos, químicos, biológicos, psicológicos, sociais, antropológicos, religiosos, filosóficos etc. daquela, continuaremos INCOMPETENTES E FRUSTRADOS, ao tentar lidar com uma das dimensões mais essenciais do acontecer humano.
Esse é o verdadeiro desafio que, frente à multidão de pessoas que gostaria de trabalhar na promoção da saúde psicológica de seus semelhantes, mas que se encontram desorientados em sua busca de formação – não por culpa delas, mas da própria Academia – e que chegam às faculdades de Psicologia “com a expectativa de se formar em psicólogo clínico e atuar no consultório dentro de um modelo biomédico”, não o de, como sustenta Iolete Ribeiro da Silva, citada no caput deste item, “mostrar uma Psicologia com outra cara e com outros compromissos”, cara e compromissos totalmente estranhos à vocação dessas pessoas e bem à molde de destruí-la.
6) O artigo cita Lígia Politschuck, psicóloga formada pela USP, que sustenta: “o mercado está saturado, principalmente na área clínica” (p. 39)
Em relação a isso,
(a) o artigo aponta, direta ou indiretamente, algumas saídas para quem faz questão de afirmar-se nessa especialização, saídas essencialmente centradas em associar a formação de uma clientela particular, proveniente de convênios e de outras fontes (o ensino universitário de matérias relacionadas à atividade clínica é uma delas) a algum emprego fixo em áreas correlatas, merecendo, quanto a isso, levar-se em conta
(i) o que lembra a já citada presidente do CFP: “A Psicologia está sendo muito usada nos processos de mediação, dentro da Psicologia Jurídica, e fato idêntico ocorre com a Psicologia dos Esportes, também em franco crescimento” (p. 44); e que
(ii) a “saturação” do mercado apresenta números bastante diversos segundo a região do Brasil: enquanto o sudeste tem um psicólogo para cada 780 habitantes, as regiões norte e nordeste tem um para, aproximadamente, cada 3.200;
(iii) a presença de psicólogos no SUS é praticamente inexpressiva: o IBGE, no censo de 2000, encontrou, para uma população de 169.799.170 pessoas, apenas 14.407 contratados pelo sistema (aproximadamente um psicólogo para cada 12 milhões de usuários!).
(b) além disso, vale levar considerar que, no que diz respeito á Psicologia Clínica, tem grande peso o descrédito da população relativamente a essa especialidade, devido – a meu ver, principalmente – a seus profissionais continuarem se demonstrando incapazes de operar com o senso-incomum a que me referi no item 4 e que os diferenciariam de um leigo.
7) Deixando de lado a ênfase na clínica, são úteis os dados fornecidos pela empresa Catho, especializada em head hunting:
(a) ao listar as três áreas que mais contratam psicólogos, ela aponta a área de recursos humanos e as duas anteriormente mencionadas, a jurídica e a esportiva, acrescentando que, das 150 mil empresas por ela cadastradas, “apenas cerca de 3 mil disponibilizam vagas para psicólogos”(p. 44); e, quanto aos salários, segue a revista:
(b) “a consultora afirma que, tendo como base o setor de RH, “as vagas oferecem salários iniciais de R$ 1.000,00 a 2.000,00, com uma média de R$ 1.200,00 a 1.500,00. E, para níveis mais altos, como o de coordenador, os salários ficam entre R$ 3.000,00 e 4.000,00.” (p. 45)
8) Consola, de qualquer forma, saber que, segundo a revista, “o psicólogo ganhou uma maior visibilidade dentro da empresa” (p. 45), pois, segundo a psicóloga Vânia Ejzenberg, especializada em consultoria de RH,. “Antes, o psicólogo era visto como um técnico desvinculado da estratégia comercial da empresa e, hoje, em uma reunião da empresa, o RH participa e é ouvido, o que não acontecia” (p. 45).
[1] Mais exatamente a 7 de dezembro de 1900,
[2] Que, inicialmente, também incluía o ensino de Obstetrícia e Farmacologia. Logo se verificou que esta última merecia uma faculdade própria e que a primeira faria melhor em voltar aos braços da Medicina.
[3] Denominada Estomatologia, em Portugal. “Odontólogos”, lá, são meros “práticos” da especialidade, sem graduação universitária.
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