segunda-feira

TRAUMA, PRAZER, PONTO DE VISTA ECONÔMICO E MASOQUISMO

O objetivo deste trabalho é, usando como particular exemplo o masoquismo, demonstrar que existem, dentro da produção teórica freudiana anterior a 1920, recursos conceituais capazes de, sem recorrer ao conceito de Pulsão de Morte, explicar os fenômenos de “compulsão à repetição”.

PARTE I — O EXPLANANS

A desvinculação de prazer e constância

A vinculação entre, por um lado, o gradiente de prazer e de desprazer e, por outro, o da quantidade de energia sediada no aparelho psíquico foi-se revelando para Freud cada vez mais insatisfatória, até que, em 1924, ele “pela primeira vez, faz claramente distinção entre o ‘princípio de constância’ e o ‘princípio do prazer’ ”[1]: “doravante evitaremos encarar os dois princípios como um só.” [2]
A desvinculação entre “constância” e “prazer” é um ato de saneamento indispensável para a boa saúde da teoria psicanalítica, mas foi feito com excesso de radicalismo, que deve ser atenuado pela consideração de dois conceitos produzidos pelo próprio Freud, mas, infelizmente mal aproveitados no conjunto da obra. Discutamos esses conceitos.

As memórias hiperestésicas

Nas linhas finais do artigo “Sobre o Mecanismo Psíquico dos Fenômenos Histéricos” (1893), encontramos a seguinte afirmação:
“A provocação do ataque [ = histérico ] resulta, seja da estimulação de uma zona histerógena, seja de uma nova experiência,que, por sua semelhança, evoca a experiência patogênica. Esperamos poder demonstrar que, entre essas duas espécies de condições, aparentemente tão diversas, não há uma diferença essencial, pois em ambos os casos uma memória hiperestésica foi ativada”[3] (grifo meu)
Com a expressão “memória hiperestésica” (“hyperästhetische Erinnerung”) — jamais novamente empregada em toda a obra freudiana e que, por razões de eufonia, passaremos, doravante a chamar de “memória hipertônica”[4] — Breuer e Freud pretendiam referir-se ao tipo de lembrança que, se evocada, provoca dentro do aparelho psíquico um aumento de energia — de “excitação tônica intracerebral”, segundo Breuer — acima do limiar compatível com o bom funcionamento desse aparelho, provocando desprazer e ameaçando a eficiência de suas operações.
A grande contribuição, em termos práticos, do tratamento de Bertha Pappenheim — conhecida na história da Psicanálise sob o pseudônimo de Ana O. — foi a de demonstrar que essas memórias hipertônicas, ao serem verbalizadas, durante o que essa própria paciente apelidou de “talking cure”, eram esvaziadas de seu excesso de carga ou, data venia ao neologismo, eram “eutonizadas”, o que coincidia, entre outras coisas, com a instalação na paciente de um estado de alívio e de bem-estar. Feitas essas descobertas, tanto a técnica empregada por Breuer, quanto a posteriormente desenvolvida por Freud, passariam a visar ao mesmo objetivo, eutonizar memórias hipertônicas, embora esse objetivo nunca tenha sido formulado assim: enquanto a primeira dessas técnicas objetivava atingir a eutonização por meio da catarse, a segunda, passou a perseguir esse objetivo mediante perlaboração (“Durcharbeiten”)[5].

Os dois (sub-)princípios do prazer

Em 1899, no trabalho intitulado “As Memórias Encobridoras”, Freud propõe:
“Impõe-se-nos, então, a idéia de que, na produção de lembranças desse tipo, estão envolvidas duas forças psíquicas, das quais, uma, toma por motivo a importância da experiência como motivo para lembrá-la, enquanto a outra, entretanto — uma resistência — tenta opor-se a isso. ... o que é registrado não é a própria experiência relevante — nesse aspecto, prevalece a resistência — mas, antes, um outro elemento psíquico intimamente associado ao elemento perturbador; aqui, por sua vez, se mostra a força do primeiro princípio, que pretende fixar impressões importantes, mediante o estabelecimento de imagens mnêmicas passíveis de reprodução.” (grifos meus)[6]
O conjunto do artigo nos permite perfeitamente compreender a proposta freudiana de que dois princípios se digladiam para determinar se uma determinada memória será ou não acessível à consciência: o primeiro — a que se refere diretamente o texto que acabamos de citar — é quantitativo, implicando que toda experiência emocionalmente carregada, pouco importando ser ela de natureza prazerosa ou desprazerosa, procura representação na consciência; o segundo é qualitativo e tenta opor-se às demandas do primeiro, sempre que conteúdo da experiência relevante é, em si, desprazeroso, gerando resistência àquela representação.
Se integrarmos essa proposta com o conceito de memória hipertônica e com o conhecimento, provindo do tratamento de Bertha, de que a verbalização da memória hipertônica eutoniza-a, provocando alívio e bem-estar, não é difícil chegar às seguintes conclusões:

(1) no aparelho psíquico humano, há dois tipos básicos de prazer, o prazer de conteúdo e o prazer de representação, cada qual com seu correspondente desprazer[7];
(2) as atividades desse aparelho obedecem a um grande Princípio do Prazer[8], cujo objetivo é a maximização do prazer e a minimização do desprazer;
(3) esse princípio “maior” delega a execução de seus propósitos a dois subprincípios, que operam, um em busca do prazer de representação, outro, do de conteúdo;
(4) sob determinadas circunstâncias — a mais óbvia sendo a da presença, no aparelho psíquico, de uma memória hipertônica (o que pede, em conformidade com os ditames do primeiro subprincípio, que ela seja representada) de conteúdo desprazeroso (o que pede, em conformidade com os ditames do segundo, que ela não seja) — os interesses desses dois subprincípios se conflitam, podendo gerar resultados que dessirvam a ambos e, conseqüentemente, ao Princípio Maior.

No que segue, por razões de simplicidade, chamaremos o primeiro subprincípio de Princípio da Representação e o segundo, de Princípio do Conteúdo, deixando subentendido que são subprincípios do grande Princípio do Prazer.

A metapsicologia do prazer de conteúdo

Tanto Breuer quanto Freud não puderam presenciar a revolução ocorrida, nos anos cinqüenta, na neuropsicologia do prazer, corporificada nas descobertas de Olds e Milner[9]. Com efeito, esses autores demonstraram empiricamente que o mesmo aumento de estimulação que, em uma área do SNC, provocava intensas sensações de prazer, em outra área, provocava uma intensa sensação de desprazer. Ou seja, ao descobrir que não era o aumento ou diminuição de estimulação, mas o local em que essa estimulação ocorria, essa descoberta abriu espaço para uma experimentalmente fundamentada explicação topográfica — mais especificamente até, anatômica[10] — das experiências de prazer e de desprazer, qual seja: se a ativação de uma determinada memória, em razão de seus vínculos associativos, tem por resultado final a estimulação do Centro do Prazer, experimentaremos o primeiro daqueles sentimentos; se, pelas mesmas razões, tem por resultado final a estimulação do de Desprazer, experimentaremos o segundo. Pergunta-se: essa explicação topográfica complementa ou invalida a explicação econômica do prazer/desprazer, por muito tempo sustentada por Freud?
Complementa. A metapsicologia do prazer de conteúdo é qualitativa e topográfica; a do prazer de representação é quantitativa e econômica (= energética). Sendo assim, a desvinculação dos princípios de prazer e de constância operada por Freud em 1924 deveria ter sido feita cum grano salis, de modo a permitir que, na metapsicologia do prazer, a explicação topográfica operasse em conjunção com a explicação econômica, de forma que cada uma dessas explicações desse conta de cada um dos tipos de prazer que acabamos de diferenciar.

A metapsicologia do prazer de representação

Consideremos o seguinte fragmento de uma obra de Hesse, em que ele se dirige ao ser humano como se ele fosse um lobo da estepe::
“pobre Lobo da Estepe ... tens de percorrer o caminho mais longo, mais penoso e mais difícil da humana encarnação; freqüentemente, terás de multiplicar a tua multiplicidade, complicar ainda mais a tua complexidade. Em vez de reduzir teu mundo ... terás de recolher cada vez mais mundo, de recolher, no futuro, o mundo inteiro, em tua alma dolorosamente dilatada, pra chegar, talvez, algum dia, ao fim, ao descanso.”[11]
O que significaria “dilatar dolorosamente” nossa alma (“alma”, lembremos, é o equivalente latino para o grego “psyché”) para “recolher cada vez mais mundo”, para recolher “no futuro, o mundo inteiro”? Hesse, aqui, está expressando de forma especialmente bela a constatação psicanalítica de que o processo humano só chega a termo quando toda sua experiência interna (seu mundo) chega ao termo. Não será certamente por acaso que “termo” deriva etimologicamente do latim terminus! E, enquanto não vencemos as resistências para chegar ao fim, ao término, ao termo não existe paz, existe angústia[12]. Também não será à toa que angustia, em latim, significa “passagem estreita, desfiladeiro”... [13]
Há, na verdade, vários níveis de representação. Um das contribuições mais valiosas que a Psicanálise fez à cultura foi demonstrar que comportamentos e imagens podem ser estágios mais regredidos do processo de representação de experiências que, por sua relevância, exigem chegar ao termo, estágio “terminal” — o trocadilho se impõe — desse processo. Enquanto isso não ocorrer, haverá, não só sintomas — que não são mais do que estágios mais regredidos do processo de representação — mas angústia, ou duas outras defesas disfóricas contra ela: irritabilidade e depressão, essa última, uma excessiva “retirada de pressão”, não menos dolorosa do que o excesso dela[14].
O prazer de representação – as sensações de alívio, serenidade e paz — e o desprazer de [falta] de representação — as disforias (angústia, irritabilidade e depressão) — devem, portanto, continuar a ser metapsicologicamente explicados de um ponto de vista econômico-quantitativo[15], em contraste com o que ocorre com o prazer e o desprazer de conteúdo, que merecem uma explicação topográfico-qualitativa, fundamentada nas descobertas de Olds e Milner. [16] E, como já dito, no conjunto da teoria, esses dois tipos de explicação devem ser cuidadosamente articulados.

Traumatologia

Os melhores momentos da teorização psicanalítica sobre o trauma distinguem três elementos principais: o momento traumático, o evento traumático e o trauma propriamente dito.
Momento traumático é aquele em que a memória de uma determinada experiência é separada do comércio associativo com as demais memórias passíveis de serem conscientemente (= verbalmente) acessadas. Num momento inicial de sua teorização, quando ainda trabalhava em colaboração com Breuer, Freud admitiu três causas para essa dissociação: estados hipnóides, retenção e defesa. Com o desenvolvimento da Psicanálise, as duas primeiras foram descartadas e a defesa, em seu sentido expulsivo[17] — posteriormente especializada sob a forma de “repressão” (“Verdrängung”), “isolamento” (“Isolierung”) e “recusa” (“Verleugnung”) — passou a monopolizar o condão de patrocinar trauma.
O momento traumático, ao retirar a memória de um evento do comércio associativo com as memórias acessíveis à consciência, outorga a esse último o status de evento traumático. Vale notar que o fenômeno — seja qual for — que alça um evento à categoria de traumático pode ser simultâneo ou posterior à ocorrência desse próprio evento, que, portanto, pode tornar-se traumático apenas a posteriori (“Nachträglichkeit” [18]).
Consideremos, agora, o terceiro dos elementos em pauta: o “trauma” propriamente dito. Agora vem em nosso socorro o conceito de “memória hiperestésicas” — aqui chamadas, pelas razões expostas, de “hipertônicas”. Isso porque trauma — psicológico, bem entendido — é, em sua essência, nada mais nada menos do que uma memória, que, obediente aos ditames do Princípio da Representação, procura chegar ao termo e, mas, não tendo superado as resistências que lhe são impostos pelo Príncipio do Conteúdo[19], não se eutonizou, sustentanto uma produção regular de disforias e diversos outros sintomas, esses últimos equivalentes a representações, em estágios “pré-terminais” (= pré-termo), dessa memória hiperestésica.

PARTE II — O EXPLANANDUM

Considerações metateóricas

Estaremos já de posse de um explanans capaz de dar satisfatória conta de nosso explanandum, qual seja, o masoquismo, enquanto exemplo mais conspícuo da “compulsão à repetição”? Suponhamos que sim. Com efeito, se existe um Princípio da Relevância que exige representação “terminal” de toda e qualquer experiência relevante e se o Princípio do Conteúdo opõe resistências a essa “representação terminal”, nada mais razoável do que concluir que o resultado do conflito entre esse dois subprincípios são “formações de compromisso”[20], representações “pré-terminais”, em que o conteúdo desprazeroso se reproduz incessantemente sob formas não verbais, dando compreensível origem aos fenômenos chamados de “compulsão à repetição”.
Mas o objetivo, aqui, é mais do que demonstrar que o explanans exposto — e retirado da produção freudiana pré-1920 — pode dar conta dos fenômenos de compulsão à repetição, entre os quais se destaca o masoquismo: é aventar a possibilidade de que ele dê melhor conta do que o explanans que — avançado por Freud em 1920 — emprega o de Pulsão de Morte para fazê-lo. O valor comparativo de teorias, contudo, não é uma questão teórica, é metateórica, seja: quais os critérios consensualmente empregados pelo método científico — e teimamos, com Freud, em considerar a Psicanálise uma ciência — para decidir que uma teoria é melhor ou pior do que outra?
É sabido e consabido que a ciência optou por preferir a descrição heliocêntrica de nosso sistema planetário, sustentada por Copérnico e reafirmada por Galileu, à descrição geocêntrica, de tradição ptolomaica. O senso comum infere que a ciência concluiu que a primeira dessas descrições é certa, a segunda, errada. Autores sofisticados da Filosofia da Ciência afirmam algo diverso. Dizem que a ciência optou pela descrição heliocêntrica porque ela satisfaz, em maior grau do que a geocêntrica, as exigências da Navalha de Occam[21], seja, do Princípio da Simplicidade. Ou seja, os movimentos de nosso sistema planetário também podem ser corretamente descritos por um sistema geocêntrico. Ocorre, entretanto, que, quando se mantém a Terra imóvel e os demais corpos celestes em movimento, a descrição do sistema, comparativamente ao que ocorre quando se pára o Sol, sofre uma absurda perda de simplicidade, originando-se daí a preferência científica pelo heliocentrismo.
A avaliação do valor comparativo de duas teorias segundo os parâmetros da Navalha de Occam pressupõem, contudo, uma condição cœteris paribus, seja, essas teorias devem preencher de maneira igualmente satisfatória duas outras condições: ter igual extensão — cobrir os mesmos fenômenos — e o mesmo poder — ser capazes de prevê-los e explicá-los com mesma eficácia. Acrescente-se que as considerações de simplicidade também obedecem a critérios hierárquicos: melhor, numa teoria, introduzir mais conceito do que mais uma lei, mais uma lei do que mais um postulado, mais um postulado do que mais um axioma. Em resumo: mais vale introduzir complicação nos níveis inferiores do que nos níveis superiores de uma teoria.

A organização do explanandum

A ciência se desenvolve basicamente em quatro contextos: o da descoberta, o da formulação, o da validação e o da aplicação. Freud, indiscutivelmente genial no primeiro, é particularmente canhestro no segundo.
É preceito primário da lógica (= processo secundário!) que as classificações bem construídas opõem elementos distintos de uma mesma dimensão qualitativa — “alto” a “baixo”, “quente” a “frio”, “gordo” a “magro” — e, nunca, um elemento de uma dessas dimensões a um elemento pertencente a outra — “alto” a “quente”, “frio” a “gordo”, “magro” a “baixo”. Freud foi mestre em infringir esse preceito, o que complicou em muito a organização de seus explananda. Foi para livrar-se dessas classificações truncadas de Freud que Ferenczi passou a chamar de “vegetoneuroses” as “neuroses atuais”, opostas por Freud às “psiconeuroses”, já que, evidentemente, “atual” se opõe a “futuro” ou a “pretérito”, nunca a “psicológico”, que, certamente, se opõe a “vegetativo”. Mas, no que diz respeito a classificações, essa, corrigida por Ferenczi, retrata um dos menores pecados de Freud. Quando, por exemplo, em sua classificação dos “dois princípios do suceder psíquico”, em vez de opor “realidade” — que pode ser prazerosa ou desprazerosa — a “fantasia” — subclassificável da mesma forma (diga-o Melanie Klein, muito mais capaz de reconhecer o caráter desprazeroso das fantasias do que Freud) — opõe “realidade” a “prazer”, incentiva uma confusão conceptual que até hoje assombra o pensamento psicanalítico.
Pois bem, tendo Freud, em 24, desvinculado, de forma que apontamos como excessivamente radical, “prazer” de “economia”, pôs-se, nesse mesmo ano, a meditar quais poderiam ser as relações do masoquismo com aquele ponto de vista metapsicológico. Para isso, naturalmente, deveria organizar seu explanandum. Infelizmente, a classificação do masoquismo feita por Freud em “O Problema Econômico do Masoquismo”, de 1924, é, particularmente para os fins a que se destina, extremamente insatisfatória. Por duas razões. A primeira porque, ao discriminar entre os masoquismos moral, feminino e erógeno, como de hábito, cria categorias que ele próprio se encarrega de superpor e — pasmemos! — não contente com isso, de desqualificar. Com efeito, se uma mulher gosta de apanhar para aceder ao gozo, então o masoquismo é feminino e erógeno (=superposição); mas se for um homem, também é feminino e erógeno (=superposição); mas se não for manifestamente erógeno, for moral, continua sendo algo tipicamente feminino e, segundo reza o artigo, no fundo, é também erógeno (=superposição)[22]; mas, além de, “no fundo”, ser feminino e erógeno — embora, “no raso”, não precise ser feminino e nem sequer erógeno — ele não é, de fato, erógeno (=desqualificação), mas uma expressão da Pulsão de Morte, que se opõe a Eros e se “fundiu” com ele! Um pouquinho confuso, não? Freud, em alguns momentos, faz lembrar Madame Curie, que brindou a humanidade com a descoberta do Raio-X e morreu por conseqüência de lidar com ele; com efeito, aquele cujo pensamento se voltou prioritariamente ao estudo do processo primário e ao combate contra ele, parece — particularmente a partir da segunda metade da segunda década do século passado — ter tido esse pensamento significativamente contaminado por aquele processo. Necandus necavit necaturum![23] Com efeito, a organização freudiana do explanadum “masoquismo” serve muito mal ao objetivo de avaliar as relações desse último com os princípios de prazer e de constância!
E não só pelas confusões e desqualificações expostas, mas, também, por outra razão. Quando, frente a um universo de fenômenos, resolvemos classificá-los, cumpre saber a que interesse serve essa classificação, já que, na verdade, são infinitos os critérios que podemos empregar para construí-la. Se pretendo estudar a reação de universitários a um determinado tipo de propaganda, escolaridade é o critério que me interessa; se estou estudando os efeitos de uma dieta nutricional, indicadores de peso e altura serão fundamentais em minha classificação e assim por diante. Se o que nos motiva é, manifestamente, resolver “o problema econômico do masoquismo”, motivação gerada pelo desejo de reavaliar, a partir de uma nova teoria das pulsões, a relação muito especial que o masoquista estabelece com o prazer, há duas categorias de masoquismo que nos interessa particularmente diferençar: a do masoquismo perverso e a do masoquismo neurótico. E por quê? Porque, como afirma o brocardo psicanalítico, “a neurose é o negativo da perversão” e assim, enquanto, em sua relação com o prazer, o masoquista perverso é manifestamente bem sucedido — ele sofre, mas esse sofrimento lhe dá acesso a um dos maiores prazeres à disposição da humanidade, o orgasmo[24] — no caso do masoquista neurótico[25], não conseguimos vislumbrar qualquer indicador manifesto de que seu comportamento esteja “à serviço do Princípio do Prazer”.

Masoquismo neurótico: falha de função?

O fato de um comportamento não realizar um determinado fim nada informa sobre se esse fim estava ou não sendo visado. Tentar preencher um fim é algo sujeito a uma infinidade de obstáculos, que podem impedir que esse preenchimento ocorra. Freud sempre soube disso e sua mais precoce enunciação de tal conhecimento está em “A Interpretação dos Sonhos”, quando alega que a ocorrência “sonhos de angústia” não são dados capazes de invalidar sua teoria de que as formações oníricas tendem — não obstante implementarem isso mediante os caminhos do processo primário —a realizar o prazer e evitar o desprazer. Revela essa posição quando, por exemplo, em “Para além do Princípio do Prazer”, aborda os sonhos das neuroses traumáticas:
“Se não quisermos ser afastados, pelos sonhos dos neuróticos pós-traumáticos, da [crença na] tendência onírica à realização de desejos, ainda nos resta o fato de saber que, nessa condição, como em muitas outras, a função do sonho está perturbada e afastada de seus propósitos”[26]
Muito bem. Os sonhos do que hoje em dia nomeamos de “neuroses pós-traumáticas” e o “masoquismo neurótico” são resultado, como sugere o trecho acima, (1) da perturbação, por tais ou quais fatores, de uma tendência que, ela mesma, tende ao prazer, ou, como insinua o acréscimo[27], feito em 1921, ao trecho que acabamos de descrever, (2) expressa a operação de “misteriosas tendências masoquistas”?
Em “As Pulsões e as suas vicissitudes”, Freud, mui compreensivelmente, afirma que o assunto abordado ali é tão complexo que se daria por satisfeito sendo capaz de “deixar claro quais são os pontos obscuros”. Como, frente ao questionamento que decidimos aprofundar, secundados por todas as considerações feitas até agora, poderíamos, em relação ao que abordamos aqui, “deixar claro quais são os pontos obscuros”? Optamos pelo seguinte caminho:
Há, reconhecidamente, uma vertente do aparelho psíquico que procura o prazer e evita o desprazer. Haverá situações em que essa vertente não é bem sucedida em virtude da ação de outras, de diversa natureza, que a ela se opõem? Qual seria a natureza dessas outras vertentes?
Sumariemos a resposta que este artigo propõe a essa questão e que passa pelo resgate de contribuições freudianas anteriores a 1920:
O aparelho psíquico opera segundo no sentido de maximizar o prazer e minimizar o desprazer. Há, contudo, pelo menos[28] dois tipos básicos de prazer e de desprazer, o prazer de conteúdo e o prazer de representação. Frente a uma memória hiperestésica de conteúdo desprazeroso, o desejo de representar experiências e memórias hiperestésicas (Princípio da Representação) e o de não representar experiências de conteúdo desprazeroso (Princípio do Conteúdo), o primeiro explicável por via econômica (Breuer e Freud) e o segundo, por via topográfica (Olds e Milner), se conflitam: o segundo desses princípios tenta impedir a representação terminal (= em palavras) da experiência relevante (resistência) e o primeiro insiste, enquanto tal representação terminal não é obtida, em continuar reproduzindo aquela experiência mediante imagens (e.g. = sonhos de neurose traumática) e comportamentos (e.g. = compulsão à repetição, especialmente exemplificada pelo masoquismo neurótico). Como se vê, segundo esse explanans, as vertentes que se opõem aqui são subprincípios do Princípio do Prazer e, portanto, nada autoriza a suposição de que opere, no psiquismo humano, alguma força “para além” desse princípio.
O tipo de leitor a que se destina este artigo já teve, certamente, acesso direto a “Para Além do Princípio do Prazer” e a “O Problema Econômico do Masoquismo”. Propostas duas alternativas teóricas para a explicação do masoquismo neurótico e, mais amplamente, para a de quaisquer fenômenos de “compulsão à repetição” – a que acabamos de descrever e a que faz uso de uma Pulsão de Morte, explorada nesses dois artigos de Freud – como decidir qual a alternativa melhor? Se, ambas, como o geocentrismo e o heliocentrismo, são capazes de dar conta de seu explanandum, só resta um critério para orientar essa decisão: a Navalha de Occam. Deixo aos leitores a tarefa de concluir qual dos dois explanans melhor satisfaz as exigências desse princípio.

Notas:

[1] Comentário de James Strachey, na Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago (J. Salomão, ed.) – ora em diante sempre referida como ESB – vol. XIX, p. 198.
[2] FREUD, S. “O Problema Econômico do Masoquismo” (1924). ESB, XIX, p. 200-1.
[3] „Die Provokation des Anfalles erfolgt entweder durch die Reizung einer Hysterogenen Zone oder durch ein neues Erlebnis, welches durch Ahnlichkeit an das pathogene Erlebnis anklingt. Wir hoffen, zeigen zu können, dab zwischen beiden anscheinend so verschiedenen Bedingungen ein wesentlicher Unterschied nicht besteht, dab in beiden Fällen an eine hyperästhetische Erinnerung gerührt wird.”. S. Freud Gesammelte Werk. Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag, 1999 – doravante sempre referida como GW – vol. 1, p. 96. É a seguinte a tradução da ESB: “[o ataque histérico] Pode ser provocado quer por estímulo de uma zona histerogênica, quer por uma nova experiência que a põe em ação em vista de uma semelhança com a experiência patogênica. Esperamos poder demonstrar que essas duas espécies de determinantes, embora pareçam ser tão diferentes, não diferem quanto aos pontos essenciais, mas que em ambos uma lembramça hiperestésica é evocada.” (ESB, II, 57-8).
[4] Tais razões eufônicas são as seguintes: logo passaremos a falar sobre memórias que, diferentemente do que ocorre com as memórias hiperestésicas, ao serem ativadas, desencadeiam a produção de um nível de energia ideal para que o psiquismo possa trabalhar de maneira organizada e desprovida de angústia. Chamar essas memórias de “eu-estésicas”, como etimologicamente caberia, é uma catástrofe fonética, daí a preferência apresentada por este texto pelo emprego, quando couber, dos adjetivos “hipertônico”, “eutônico” e “hipotônico”, no lugar de “hiperestésico”, “eu-estésico” e “hipo-estésico"
[5] Diferença, sem dúvida, estabelecida a potiori: a relato do tratamento de Bertha Pappenheim mostra o quanto havia de perlaboração na abordagem de Breuer, assim como é indiscutível a presença da catarse nos tratamentos chamados psicanalíticos.
[6] Tradução e grifos meus. A tradução da Imago (ESB, III, p. 337) tem suas distorções, mas não a ponto de impedir o entendimento. O original alemão corre: “man bildet sich dann die Vorstellung, dab zwei psychische Kräfte an dem Zustandekommen dieser Erinnerungen beteiligt sind, von denen die eine die Wichtigkeit des Erlebnisses zum Motiv nimmt, es erinnern zu wollen, die andere aber – ein Widerstand – dieser Auszeichnung widerstrebt. ... nicht das betreffende Erlebnis selbst das Erinnerungsbild abgibt – hierin behält der Widerstand recht – wohl aber ein anderes psychisches Element, welches mit dem anstöbigen durch nahe Assoziationswege verbunden ist; hierin zeigt sich wiederum die Macht des ersten Prinzips, welches bedeutsame Eindrücke durch die Herstellung von reproduzierbaren Erinnerungsbildern fixieren möchte.” ( GW, I, 536).
[7] É impressionante como após, na segunda seção de Para além do Princípio do Prazer (1920), enunciar claramente que a repetição deliberada – consciente ou inconsciente – de experiências “de per si” desprazerosas está “ligada a um outro tipo, porém mais direto, de ganho em prazer” (“ein andersartiger, aber direkter Lustgewinn verbunden ist”, GW, XIII, p. 14) – que, aliás, associa a um suposto “Bemächtigungstrieb” – Freud, já a partir da seção seguinte, se esquece desse “outro tipo de prazer” e, ex chathedra, enuncia como “fato novo e surpreendente” (“neue und merkwürdige Tatsache”) a existência de fenômenos que – supostamente “de per si” – não trazem nenhum ganho prazeroso, mas, ainda assim, são repetidos!
[8] Neste artigo, toda vez que empregarmos a expressão “Princípio do Prazer”, será nesse seu sentido “maior” e, não, no sentido estrito em que Freud freqüentemente – e lamentavelmente – a empregou quando se pretende referir ao princípio que patrocina a ocorrência do processo primário.
[9] Cf.: OLDS, J. & MILNER, P. “Positive Reinforcement Produced by Electrical Stimulation of Septal Area and other Regions of Rat Brain”. J. Comp. Physiol. Psychol., 47, 1954; OLDS, J. “Physiological Mechanisms of Reward”, in: Jones, M. R. (ed.) Nebraska Symposium on Motivation. Lincoln: University of Nebraska Press, 1955; e OLDS, J. “Differential Effects of Drives and Drugs on Self-Stimulation on Different Brain Sites”, in: SHEER, D. E. Electrical Stimulation of the Brain. Austin: University of Texas Press, 1961.
[10] A diferença entre “anatômico” e “topográfico” pode ser bem apreendida mediante a leitura do trabalho freudiano “Alguns Pontos para o Estudo Comparativo das Paralisias Motoras Orgânicas e Histéricas”, publicado em 1893 (ESB, I, 219).
[11] HESSE, H. O Lobo da Estepe. Rio: Record, sem data, p. 69.
[12] Neste texto, as palavras “ansiedade” e “angústia” estão sendo usadas de forma sinonímica.
[13] Não deixa de ser também curioso que “estresse” – que nos chegou através do inglês – provenha, em última instância, do latim “stricto”, que significa “estreito”. A relação da angústia com o estreitamento do processo respiratório deve ser a origem dessas “coincidências” etimológicas.
[14] Numa carta a Flieb – que os editores especulam corresponder a 07/01/1895 – passagem também esquecida da obra, Freud reconhece esse sofrimento gerado, não pela hipertonia, mas pela hipotonia: “Os neurônios ... são obrigados a renunciar a sua excitação, o que provoca sofrimento” (“Die Neurone ... müssen ihre Erregung abgeben, was Schmerz erzeugt”. MASSON, J. M. Sigmund Freud Briefe na Wilhelm Flieb. Frankfurt am Main: S. Fisher Verlag, 1986, p. 102). O grifo é do próprio Freud.
[15] Isso implica discordar frontalmente com a afirmação freudiana, presente no artigo de 1924 citado aqui, de que “o prazer e o desprazer, portanto, não podem ser referidos a um aumento ou diminuição de uma quantidade” (ESB, XIX, 200). O prazer e o desprazer de representação podem. O original alemão é: “Lust und Unlust konnen also nicht auf Zunhame oder Abnahme einer Quantität ... bezorgen werden“ (GW, XIII, 372).
[16] Neste trabalho, deixaremos de lado um terceiro, e não menos importante, tipo de prazer que a clínica nos revela: o prazer de closura. Esse tipo de prazer – sobre cujo estudo muito se debruçou a Psicologia da Gestalt – também jaz no cemitério das grandes e esquecidas, até por ele mesmo, contribuições de Freud: refiro-me ao conceito de “Unverträglich” (= incompatível) que, quando introduzido, em “As Neuropsicoses de Defesa” (1894), foi vítima, a partir da segunda edição do original desse trabalho, da ação de uma parapraxe e, como denuncia Strachey, erroneamente substituído pelo de “Unerträglich” (= intolerável).
[17] A defesa, se globalmente considerada, apresenta mecanismos de expulsão, como os supramencionados, e de retorno, como a “conversão”, o “deslocamento”, a “projeção” etc. Para a teorização relativa ao “momento traumático”, o que nos interessa, evidentemente, são os aspectos “expulsivos” da defesa.
[18] Cf. verbete “a posteriori” in Laplanche, J. & Pontalis, J.-B., Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
[19] Na verdade, vale propor também a existência de um terceiro subprincípio do Princípio do Prazer, o Princípio de Closura, que também possui suficiente autonomia para opor suas intenções às dos demais subprincípios. Mas ultrapassaria os objetivos de nosso texto, abordar essa hipótese aqui.
[20] “Kompromibbildungen”. A expressão “formações conciliatórias” seria uma tradução mais adequada, já que, diferentemente do que ocorre com “Kompromib” em alemão, “compromise”, em inglês, e “compromis”, em francês – onde esses termos implicam algum tipo de transação, conciliação ou acordo – a palavra “compromisso”, no português do Brasil, remete antes de tudo a “obrigação”, “comprometimento” (“commitment”, em inglês).
[21] Cujas formulações originais são: “Frustra fit per plura quod potest fieri per pauciora” { = Não tem sentido fazer mediante mais o que pode ser feito mediante menos} e “Entia non sunt multiplicanda præter necessitatem” {= “Os entes [ teóricos, é claro ] não devem ser multiplicados para além do necessário”}.
[22] “O primeiro masoquismo, o erógeno — prazer no sofrimento — jaz ao fundo também das outras duas formas” (ESB, XIX, p. 201; os grifos são meus). O original completo é “Der erstere, der erogene Masochismus, die Schmerzlust, liegt auch den beiden anderen Formen zugrunde” (GW, XIII, 373). A salada ainda é maior, porque o tipo de masoquismo que, “no raso”, é categorizado como erógeno, é um tipo de masoquismo que, de fato, não encontra prazer no sofrimento, mas, pelo contrário, estabelece o sofrimento com condição para o prazer (orgástico, masturbatório ou não), este, sim, almejado. O masoquismo erógeno “no raso” – ou seja, propriamente dito – não contradiz, nem aparentemente, o Princípio do Prazer. Logo nos dedicaremos a isso.
[23] “O que devia morrer matou o que devia matar”!
[24] O prazer que o Cavalheiro de Sacher-Masoch derivava de seus “contratos de escravidão” com suas amantes – entre as quais se destacam as Madames Fanny de Pistor e Wanda de Douanieff – ilustra fartamente isso.
[25] “Masoquista moral“, na nomenclatura de Freud, que, como de regra, infringe a boa conduta na construção de classificações e opõe “moral” a “erógeno”, em vez de opor “neurótico” a “perverso”.
[26] “Sollen wir durch die Träume der Unfallsneurotiker nicht an der wunscherfüllenden Tendenz des Traumes irre werden, so bleibt uns etwa noch die Auskunft, bei diesem Zustand sei wie so vieles andere auch die Traumfunktion erschüttert und von ihren Absichten abgelenkt worden” (GW, 13, 11). A traduçao da Imago (ESB, XVIII, 25) está gravemente distorcida.
[27] “ou deveremos pensar sobre as misteriosas tendências masoquistas do eu” (“oder wir mübten der rätselhaften masochistischen Tendenzen des Ichs gedenken”). Id., ibid.
[28] Mais uma vez, quero lembrar ter deixado fora de nossas considerações o “prazer de closura”, que deve ser remetido ao conceito freudiano, também pouco valorizado, de “Unverträglichkei”, particularmente relevante para a compreensão das formações obsessivo-compulsivas.

Um comentário:

Anônimo disse...

Thanks :)
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