segunda-feira

O "CONTEXTO DE FORMULAÇÃO" NA ATIVIDADE CIENTÍFICA

Desde o início do século XX, principalmente como resultado das contribuições de pensadores afiliados à chamada Filosofia da Linguagem[1] (Ludwig Wittgenstein, Bertrand Russell etc.) e ao Círculo de Viena[2] (Moritz Schilick, Rudolf Carnap etc.) que, no trabalho de produção científica, se soe diferençar “contexto de descoberta”, “contexto de validação” e “contexto de aplicação”, caracterizando-se o primeiro por seu desregramento (cf., por exemplo, o conceito de serendipity[3]) e os demais, por um conjunto extremamente exigente de regras que – internacionalmente reconhecidas – norteiam a fiscalização intersubjetiva das (1) coerência lógica e empírica e (2) da eficácia operacional de um determinado saber. A crescente importância das chamadas “ciências sociais” ou “humanas” vem revelando a necessidade de que se reconheça a autonomia e extrema relevância de um QUARTO CONTEXTO de produção científica, o “contexto de formulação”.
E por quê? Porque no âmbito das ciências “não humanas”, a descoberta científica, logo ao ser feita, já vem, via de regra, formulada em termos tão pouco ambíguos, que, se, no contexto de descoberta, foi proposto que e = mc², podemos de pronto passar para os contextos de validação e de aplicação sem grande perigo de estarmos testando a validade ou passando a aplicar algo bem diverso do que o que a descoberta original pretendera veicular. Isso em grande parte se deve ao fato de as descobertas da Matemática, da Física, da Química e quejandas, mesmo ao nascer, já são formuladas em termos que pertencem (veja-se, por exemplo: “o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos”) quase que exclusivamente ao ambiente científico em que foram produzidas, estando esses termos, portanto, muito pouco contaminados pelos significados que lhes atribuiria uma exegese vulgar.
Algo bastante diverso ocorre no âmbito das ciências humanas. Com efeito, essas ciências, sejam puras ou aplicadas, tendem a formular suas proposições empregando vocábulos retirados de nosso linguajar cotidiano, mas dando-lhes sentido diverso e exigindo, dessarte, um especial esforço para que se possa escoimá-los de sua conotação popular, evitando, mediante isso, dentro do próprio contexto científico, ou na interface desse contexto com o restante da sociedade, sérias distorções na transmissão das informações.
Exemplifico. Se, no jargão jurídico, afirmo que um determinado juiz é “incompetente” para julgar determinada matéria, estarei afirmando que ele não conhece o assunto? É óbvio que não. Estou simplesmente afirmando que tal matéria está fora de sua jurisdição. Mas tal obviedade só existe para aquele cujo conhecimento da língua, previamente formatado pela semântica vocabular cotidiana, foi capaz de escapar dessa formatação e reconhecer na “incompetência” daquele juiz um significado técnico que escapa de todo à exegese vulgar...
Outro exemplo. Em um dicionário que lista o SIGNIFICADO COMUM das palavras de nosso léxico, “reprimir” significa “sustar a ação ou movimento de”[4]. Ora, em qualquer bom dicionário ESPECIALIZADO de Psicanálise, “reprimir” significa “impedir a representação verbal de algum fragmento de nossa experiência”! O fato de que o significado técnico-psicanalítico do termo “repressão” foi, no entendimento popular, substituído por seu significado comum destruiu de todo a utilidade da afirmação freudiana de que “repressão causa neurose”, dando, bem ao contrário, origem a catastróficas abordagens pedagógicas que, dizendo-se de “inspiração psicanalítica”, propuseram que se desse às crianças, em vez da liberdade verbal de fato proposta por Freud, uma liberdade de ação que produziu uma geração de monstrinhos... E isso com a cumplicidade de um establishment psicanalítico que, ao arrepio das considerações acima, não fez adequadamente o dever de casa de esclarecer o significado técnico preciso dos termos e proposições da teoria que pretende empregar!
Nas ciências humanas, por sua vocação para, na formulação de seus preceitos e hipóteses, adotar termos já prenhos de significados “não técnicos”, tal explicitação é essencial. Esse é um “dever de casa” que as chamadas “ciências humanas” estão cumprindo muito mal.
[1] Cf., por exemplo, FEIGL, H. & SELLARS, W. (eds.). Readings in Philosophical Analysis. New York: Appleton-Century-Crofts, 1949, passim.
[2] Cf., por exemplo, FEIGL, H. & BRODBECK, M. (eds.). Readings in the Philosophy of Science. New York: Appleton-Century-Crofts, 1953, passim.
[3] Que os ingleses definem como “the natural ability to make interesting or valuabe discoveries by accident”.
[4] Holanda, A. B. de. Novo Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

Nenhum comentário: