sábado

JOSÉ PAULO CAVALCANTI VERSUS F. PESSOA

A recente 'quase autobiografia" de José Paulo Cavalcanti Filho sobre Fernando Pessoa, remeteu-me quase que automaticamente aos seguintes trechos de Schopenhauer:

"quando um livro é célebre (grifo meu), é preciso distinguir se isso se deve à matéria [igual, no léxico schopenhaueriano, ao conjunto de dados trazidos pela obra] ou à forma [igual, nesse léxico, ao pensamento do autor sobre esses dados].
Pessoas comuns e superficiais podem nos oferecer, graças à materia, livros muito importantes, uma vez que o tema só era acessível a elas. É o caso, por exemplo, das descrições de países distantes, ..., de histórias das quais foram testemunhas ou cujas fontes tiveram tempo e dedicação para investigar e estudar (grifo meu).
Em contrapartida, quando o importante é a forma, só uma mente de destaque é capaz de nos oferecer algo digno de ser lido (grifo meu).
... o público dirige sua atenção muito mais para a matéria do que para a forma ... Essa tendência se revela da maneira mais ridícula em relação às obras poéticas, quando a atenção se volta com todo cuidado para os acontecimentos reais ou para as circunstâncias pessoais que deram ensejo à criação poética ... de modo que as pessoas lêem mais obras sobre Goethe do que obras de Goethe ... Essa preferência pela matéria, contraposta à forma, corresponde à atitude de um observador que negligencia a forma e a pintura de um belo vaso etrusco para investigar quimicamente o material e as cores (grifo meu).
A busca de repercussão [= sucesso] por meio da matéria ... torna-se absolutamente censurável nas áreas em que o mérito deve se basear expressamente na forma, como é o caso das obras poéticas." ("A Arte de Escrever". Porto Alegre: L&PM, 2010, p. 64-65.)

O que avulta no trabalho de Cavalcanti é a mal disfarçada intenção de apequenar Pessoa - cuja grandeza, aliás, escapole inelutavelmente pelas linhas e entrelinhas dessa quase autobiografia(ah, que vontade de ser ele!)- tentando convencer o leitor - com a sutileza de um elefante - de que, em torno desse último, fez-se, como diria Shakespeare, much ado about nothing (muito barulho por nada), pois os dados (a "matéria" de Schopenhauer) que colheu levaram-no - após ter aventado ser Pessoa um homossexual enrustido, com pênis pequeno e vasta vaidade compensatória que o compelia a esconder uma miopia de 12 graus com lentes de 3 - à sua grande descoberta: a de que Pessoa "não tinha imaginação". Possivelmente terá sido levado a essa sua momentosa conclusão pelas seguintes linhas do poeta, totalmente desprovidas da faculdade de imaginar:

"O maestro sacode a batuta,
E lânguida e triste a música rompe...

Lembra-me a minha infância, aquele dia
Em que eu brincava ao pé dum muro de quintal
Atirando-lhe com uma bola que tinha dum lado
O deslizar dum cão verde, e do outro lado
Um cavalo azul a correr com um jockey amarelo...

Prossegue a música, e eis na minha infãncia
De repente entre mim e o maestro, muro branco,
Vai e vem a bola, ora um cão verde,
Ora um cavalo azul com um jockey amarelo...

Todo o teatro é o meu quintal, a minha infância
Está em todos os lugares, e a bola vem a tocar música,
Uma música triste e vaga que passeia no meu quintal
Vestida de cão verde tornando-se jockey amarelo...
(Tão rápida gira a bola entre mim e os músicos...)

Atiro-a de encontro à minha infância e ela
Atravessa o teatro todo que está aos meus pés
A brincar com um jockey amarelo e um cão verde
E um cavalo azul que aparece por cima do muro
Do meu quintal... E a música atira com bolas
À minha infância... E o muro do quintal é feito de gestos
De batuta e rotações confusas de cães verdes
E cavalos azuis e jockeys amarelos...

E dum lado para o outro, da direita para a esquerda,
Donde há árvores e entre os ramos ao pé da copa
Com orquestras a tocar música,
Para onde há filas de bolas na loga onde a comprei
E o homem da loja sorri entre as memórias da minha infância...

E a música cessa como um muro que desaba,
A bola rola pelo despenhadeiro dos meus sonhos interrompidos,
E do alto dum cavalo azul, o maestro, jockey amarelo tornando-se preto,
Agradece, pousando a batuta em cima da fuga dum muro,
E curva-se, sorrindo, com uma bola branca em cima da cabeça,
Bola branca que lhe desaparece pelas costas abaixo..."

Com efeito: ou sobra miopia em Cavalcanti ou falta imaginação a Pessoa.

Um comentário:

Jorge disse...

Esse livro "Fernando Pessoa, uma quase-autobiografia" é infame e ignóbil.
Concordo plenamente com a sua opinião que Cavalcanti teve como preocupação "apequenar Pessoa".
Os motivos subjacentes à elaboração desse livro absurdo podem ter sido dois principalmente. Um, por se sentir retratado em muitas personagens dos livros de FP, um burguês endinheirado, semi-intelectualoide e sem princípios espirituais elevados, levando-o a vingar-se. Outro, com receio que as idéias sócio-políticas de Fernando Pessoa se tornem conhecidas e atraiam multidões, particularmente porque FP previu a decadência da sociedade atual e seu ressurgimento com o V Império do Espírito Santo.