terça-feira

SONHOS: REALIZAÇÕES DE DESEJO?

A famosa afirmação freudiana de que sonhos são realizações de desejo, já por ele trazida a público em 1900, eclipsou deslavadamente sua desconfirmação, feita pelo próprio autor, em "Para Além do Princípio do Prazer"(1920).
Para que não se atribua essa desconfirmação a meros descuidos de tradução, transcrevo trechos daquela obra como podem ser encontradas nas "edições-padrão" do português e do inglês e em seu original alemão, abrindo espaço para cotejo:
(1) "Esse, então, parece ser o lugar para, pela primeira vez, admitir uma exceção à afirmação de que os sonhos são realizações de desejo ... Dessa maneira, pareceria que a função dos sonhos, que consiste em afastar quaisquer motivos que possam interromper o sono, através da realização dos desejos dos impulsos perturbadores, não é sua 'função original'. " (Rio: Imago, 1976, grifos meus);
(2) "This would seem to be the place, then, at which to admit for the first time an exception to the proposition that dreams are fulfillments of wishes ... Thus it would seem that the function of dreams, which consists in setting aside any motives that might interrupt sleep, by fulfilling the wishes of the disturbing impulses, is not their 'original' function." (London: Hogarth, 1955; grifos meus);
(3) "Hier wäre also die Stelle, zuerst eine Ausnahme von dem Satze, der Traum ist eine Wunscherfüllung, zuzugestehen ... So wäre auch die Funktion des Traumes, Motive zur Unterbrechung des Schlafes durch Wunscherfüllung der störenden Regungen zu bezeitigen, nicht seine unsprüngliche." (Leipzig, Vienna und Zurich: Internationaler Psychoanalyticher Verlag, 1920; grifos meus).
[A propósito, como caberia interpretar os 'lapsos editoriais' de, em português, estar aspeada a expressão 'função original' e, em inglês, o adjetivo 'original', não havendo quaisquer aspas no original alemão? Ficamos tentados a entendê-los como indícios criptografados de que, no movimento psicanalítico, já começava a atuar a intenção inconsciente de obliterar a desconfirmação freudiana de sua hipótese inicial sobre a origem dos sonhos]
Uma das razões que certamente contribuíram para o descaso da literatura psicanalítica posterior a 1920 relativamente à colocação freudiana de que nem todo sonho é uma realização de desejo é a de ter ele associado tal colocação ao conceito de compulsão à repetição, assentando essa última numa mais do que esdrúxula Pulsão de Morte, nunca de todo engolida por seus seguidores (pelos não seguidores menos ainda).
Aliás, a expressão "Pulsão de Morte" só sobreviveu sob a influência de Klein, que - mestra no exercício de usar palavras freudianas em sentidos diversos dos empregados por ele - passou a utilizá-la como mera referência aos impulsos destrutivos desde sempre reconhecidos na psique humana, jogando na latrina todo o aparato metapsicológico com que Freud, desde 1920, os passou a sustentar.
Sustento que compulsão à repetição - cuja existência é clinicamente indisputável - só encontra devido respaldo teórico no reconhecimento do fato, explorado em meu livro "A Nova Conversa", de que "nosso desenvolvimento psicológico só chega a termo (do latim "terminus"), quando chega ao termo (do latim "terminus"), ou seja, à palavra.
Quando tal processo de chegar à palavra é internamente legitimado, o ser humano experimenta uma sensação de alívio, de serenidade, de paz, sensação que batizei de "metaprazer".
O sonho é, na verdade, uma realização desse metaprazer, buscado à despeito de que nele se representem conteúdos desprazerosos (como, por exemplo, nos sonhos recorrentes das neuroses pós-traumáticas) ou prazerosos (como, por exemplo, nos sonhos prazerosos não criptografados, que ocorrem particularmente na infância).
O metaprazer, que também podemos chamar de prazer de representação - fundamentalmente enraizado no prazer de respirar bem (antipoda ao desprazer próprio da angústia) - é resultado da realização dos metadesejos, expressão de uma meta-pulsão, realização essa que somente se torna possível à custa da inserção do sujeito em um meta-ambiente que legitima a fala. E o "setting" psicanalítico foi deliberadamente idealizado para isso.
Exposições mais detalhadas desses conceitos "meta" podem ser encontradas em "A Nova Conversa" ou na Parte IV do artigo "Transferência e Psicanálise", postado neste site.

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