PARTE I
OS CONCEITOS ORIGINAIS
Dado que o conceito de contratransferência é um mero subconjunto do de transferência, podendo apenas a partir dele ser compreendido, começaremos abordando esse último.
A) TRANSFERÊNCIA:
1) NATUREZA:
a) Um exemplo:
Segue um exemplo clínico de transferência, transcrito de meu livro “A Nova Conversa”:
“Marcos, em sua primeira semana de análise, chamou-me atenção para um fato a que eu não havia atribuído maior importância:
– Você já notou – perguntou-me ele – que, quando me deito no divã, ponho as costas de minha mão sobre a cabeça? Ou melhor – continuou – eu não ponho minha mão sobre minha cabeça: ela vem para minha cabeça! Eu, aliás, quando me dou conta que isso aconteceu, insisto em tirá-la, mas, basta eu me relaxar e, pum!, lá está ela de novo! Que inferno!
De fato, eu havia percebido que meu paciente, ao se deitar, regularmente punha sua mão direita sobre a cabeça, mas não me passara a idéia de que se estivesse perturbando com isso. Marcos falou-me, também, sobre outro fato que o incomodava: tendo já perdido ambos os pais, podia, quando quisesse, re-evocar a figura paterna, mas não, a figura da mãe. Pensei o de sempre: conforme o paciente for vencendo seus bloqueios e libertando sua fala, memórias anteriormente inacessíveis passarão a ser acessadas e ele conseguirá lembrar-se da imagem materna.
E assim foi. Com um detalhe. Quando recuperou a imagem de sua mãe, lembrou-se de ela fazendo algo a que freqüentemente se dedicava: socar-lhe a cabeça! E de que, nessas ocasiões, ele se protegia das pancadas maternas com um gesto idêntico ao que era compelido a fazer, até então sem saber por quê, sempre que se deitava com a cabeça próxima a mim, no divã da análise! A partir dessa lembrança, Marcos voltou a mandar em sua mão.” [1]
b) O conceito:
A vinheta acima expõe com clareza os três elementos básicos que compõem um processo transferencial: (1) um sujeito A – no caso, Marcos – (2) uma memória B[2] – no caso, as pancadas regularmente aplicadas por sua mãe em sua cabeça – e (3) uma percepção C – no caso, a que Marcos tinha de seu psicanalista – distorcida por sua identificação automática e acrítica com ela da memória B.
Toda transferência, portanto, implica uma relação disfuncional entre percepção e memória, em que essa última distorce a primeira.
Já quando existe uma relação funcional entre ambas, o sujeito A, frente à percepção de C, é capaz de perceber sua semelhança com a memória de B, mas distingue identidades e diferenças, podendo, dessa forma, articular a experiência passada com a experiência presente, otimizando a qualidade de sua resposta a essa última.
Vale lembrar, fazendo uso de mais uma transcrição de “A Nova Conversa”, que, embora o termo seja mais freqüentemente empregado quando as memórias de um paciente distorcem a percepção de seu analista, tal emprego merece reparos:
“... a transferência pode ocorrer em relação a circunstâncias e a objetos, sem envolver de maneira direta qualquer relação com pessoas. Se, por exemplo, no dia 12 de outubro de um determinado ano, eu estava passeando em campo aberto e quase fui atingido por um raio, posso apresentar, todo dia 12 de outubro dos anos subseqüentes, mesmo que não saiba por quê, um estado de inquietude que me impeça de sair de casa.
Eu estaria, nesse caso, claramente transferindo minha experiência traumática, não de uma pessoa para outra pessoa, mas, sim, de uma data para outra.
De forma análoga, a transferência pode ser feita de um lugar para outro – no caso de Bertha Pappenheim[3], como vimos, de um quarto para outro – de um animal para outro, de um objeto inanimado para outro, de uma pessoa para um animal, de um animal para um objeto inanimado etc..” [4]
2) CAUSA:
Ao tipo de memória que se impõe sobre nossas percepções, distorcendo-as – produzindo, portanto, o fenômeno da transferência – Breuer e Freud chamaram, em seu famoso artigo publicado em 1893 (“O Mecanismo Psíquico do Fenômenos Histéricos – Comunicação Preliminar”), de “memórias hiperestésicas[5]”, pois, segundo a teorização desses autores, é o excesso de energia psíquica a elas associado que faculta a essas memórias efetuar tal distorção.
Na verdade, uma teorização completa sobre a quantidade de energia associada a uma memória deve distinguir memórias (a) com excesso de carga, (b) com um ótimo de carga e (c) com carga pouca ou nenhuma.
Proponho que passemos chamá-las, respectivamente, de (a) memórias hipertônicas (em lugar das “memórias hiperestésicas” de Breuer e Freud), (b) memórias eutônicas e (c) memórias hipotônicas.[6]
As memórias hipertônicas são causa dos distúrbios psicológicos que ocorrem nos quadros nosológicos que Freud chamou de “(Psico)neuroses[7] Transferenciais[8]” (= basicamente, na terminologia desse autor, a neurose obsessivo-compulsiva, a histeria de conversão e a histeria de angústia, essa última evoluindo usualmente na direção de uma neurose fóbica).
As memórias eutônicas são o fundamento da saúde psicológica, pois estão associadas uma quantidade ideal de energia, que permite o cotejamento entre memória e percepção.
As memórias hipotônicas não têm efeito relevante sobre nosso funcionamento psicológico e podemos excluí-las de nossas teorizações.
3) MANEJO CLÍNICO:
Do supra-exposto, segue-se naturalmente a conclusão de que, para dissolver as distorções perceptuais inelutavelmente presentes nas neuroses de transferência (e, naturalmente, remitir os sintomas a essas distorções associados) – a estratégia de qualquer técnica fundamentada na Psicanálise tem necessariamente por objetivo transformar memórias hipertônicas em memórias eutônicas, ou seja, em outras palavras, o de “eutonizar memórias hipertônicas”.
E como fazer tal eutonização? Dissolvendo a “Verdrängung”, termo traduzido em português, ora, como temos feito aqui, por “recalque” (quando Freud nos chega através do francês), ora por “repressão” (quando nos chega através do inglês), o que, no jargão psicanalítico significa legitimar o acesso dessas memórias à expressão verbal.
B) CONTRATRANSFERÊNCIA:
1) NATUREZA:
O conceito de contratransferência é, como dissemos, um subconjunto do de transferência, correspondendo a toda e qualquer transferência proveniente do psicanalista e voltada para seu paciente.
2) CAUSA:
A presença, no psiquismo do analista, de uma memória hipertônica que distorce sua percepção do paciente.
3) MANEJO CLÍNICO:
O de sempre, qual seja, a eutonização das memórias hipertônicas presentes no psiquismo do psicanalista, mediante a legitimação do acesso dessas memórias à representação verbal, ou seja, dissolvendo o recalque que as mantinha fora da consciência.
Para consecução desse fim, o treinamento clássico de um psicanalista supõe que ele também se submeta como a um tratamento psicanalítico, a que se convencionou chamar de psicanálise didática.
(CONTINUA)
Notas:
[1] EBRAICO, L. C. de M.. A Nova Conversa. Rio: Ediouro, 2004, p. 18-9.
[2] Não accessível à consciência, é claro.
[3] Paciente que entrou para a história da Psicanálise sob o pseudônimo de Anna O. e que, tendo mudado de residência, alucinava estar vivendo na casa que habitava no ano anterior.
[4] Op. cit.., p. 31-32.
[5] “Hyperästhetische Errinerung”, no original (G.W., vol. I, p. 96)
[6] Isso para evitarmos, nas considerações a seguir, catástrofes fonéticas como “eu-estésicas” e “hipo-estésicas”.
[7] Freud contrapõe aos quadros clínicos que chamou de psiconeuroses – vulgarmente chamados simplesmente de “neuroses” – os quadros clínicos a que chamou de “neuroses atuais” (mais propriamente denominados por Ferenczi de “vegetoneuroses”), que não nos interessam aqui por ficarem à parte dos questionamentos relativos ao conceito de transferência.
[8] “Übertragungsneurosen”.
PARTE II
A DESCARACTERIZAÇÃO DOS CONCEITOS ORIGINAIS
A) UM POUCO DE HISTÓRIA:
1) UMA NOVA AMOSTRA:
A amostra a partir da qual Freud desenvolveu sua técnica e sua teoria era essencialmente constituída por pacientes que apresentavam o que chamou de “neuroses transferenciais” (Histeria de Angústia, Neurose Fóbica, Histeria de Conversão e Neurose Obsessivo-Compulsiva).
Nesses pacientes, como vimos a técnica psicanalítica permitia a clara identificação de um tripé: (1) memórias hipertônicas presentes no psiquismo do paciente e resgatáveis via dissolução do recalque, (2) o psicanalista e (3) a distorção da relação com esse psicanalista por aquelas memórias (= transferência, núcleo dos demais sintomas presentes nas enfermidades em tela).
O sucesso com esse tipo de pacientes fez que o trabalho de Freud atraísse significativo número de discípulos, alguns trazendo consigo um grande desafio: vários dentre eles trabalhavam com pacientes muito mais regredidos do que os tratados por Freud.
Essa lacuna na prática clínica freudiana e a inadequação de sua técnica para tratar esses pacientes mais regredidos é apontada pelo próprio Freud, em 1911, na introdução de suas “Notas Psicanalíticas sobre um Relato Autobiográfico de um Caso de Paranóia (Dementia Paranoides)”:
“A investigação analítica da paranóia oferece especiais dificuldades a médicos que, como eu, não atuam em instituições públicas. Não podemos aceitar tais pacientes ou prolongar nossa relação com eles, pois a perspectiva de sucesso terapêutico é exigência de nossa técnia. Assim, ocorre que apenas excepcionalmente eu possa dar um mergulho mais profundo na estrutura da paranóia ... Aliás, é bastante freqüente que eu me defronte com paranoicos (e dementes[1]) e aprenda tanto com eles quanto outros psiquiatras com seus casos... mas isso em geral não é suficiente para permitir conclusões analíticas.”[2]
Esses pacientes mais regredidos, escassos na clínica freudiana, têm seus sintomas moldados por memórias hipertônicas cujo conteúdo corresponde a etapas por demais precoces (pré-verbais) de nosso desenvolvimento para que seja possível[3] seu resgate pela consciência via dissolução do recalque, como preconizado por Freud. Com efeito, alguém imagina um paciente sob não importa que tipo de tratamento, lembrando-se: “Ao nascer, senti intensa falta de ar e algo enrolado em torno de meu pescoço?” ou “Quando eu tinha dois meses, preferia o seio direito de minha mãe, mais farto em leite do que o esquerdo?” Espero que não.[4]
A esses pacientes mais regredidos, portanto, falta um dos três elementos essenciais do conceito original de transferência: a possibilidade de remissão dos sintomas mediante dissolução do recalque (= acesso à representação verbal), com a conseqüente eutonização (e simultâneo resgate pela consciência) das memórias hipertônicas que os produziam.
Frente a isso, Freud:
a) denominou as memórias hipertônicas irrecuperáveis pela consciência de “protofantasias” (“Urphantasien”)[5], considerando-as como matrizes universais, filogenéticas e prontas para moldar nossas experiências pessoais;
b) separou o “recalque propriamente dito”, conhecido simplesmente como “recalque” (“Verdrängung”), considerado reversível, de um “proto-recalque” (“Urverdrängung”)[6], do qual eram alvo as citadas “protofantasias” (e, portanto, irreversível);
c) agrupou os pacientes cujos sintomas eram devidos ao proto-recalque sob o nome de “neuroses narcísicas", separando-os do grupo que denominou de “neuroses transferenciais”[7];
d) entendeu o tratamento psicanalítico como adequado para segundo tipo de transtorno e inadequado para o primeiro, sugerindo uma análise de prova, para evitar prolongamentos infrutíferos no trabalho com os portadores de neuroses narcísicas[8].
2) O IMPASSE:
Na verdade, Freud considerou a técnica psicoterápica por ele desenvolvida não apenas ineficaz para o tratamento das “neuroses narcísicas” (= psicoses): encontravam-se também fora de seu alcance (a) os pacientes com quadros agudos, (b) os com más-formações de caráter, (c) os de idade muito avançada, (d) as crianças e (e) outros, como os não motivados, os mentalmente retardados, etc..[9].
Ora, até o início do século XX, a Psicanálise oferecia praticamente o único tratamento psicológico com condições de pretender cientificidade e, assim sendo, banir um tipo de paciente do acesso a ele terminava significando negar-lhe todo e qualquer atendimento psicoterápico.
Os que se aproximaram de Freud não se conformaram com tais limitações. Para nos limitarmos aos mais famosos: Karl Gustav Jung e Sandor Ferenczi atenderam psicóticos, Karl Abraham teve sucesso com pacientes de noventa anos ou mais, Reich desenvolveu um importante trabalho com as más-formações caracterológicas, Anna Freud e Melanie Klein voltaram-se para o atendimento psicoterápico de crianças de até mesmo um ou dois anos de idade.
3) AS CONSEQUÊNCIAS IMPASSE
a) O que deveria ter ocorrido:
Ora, o reconhecimento de que os conceitos freudianos, sua técnica e a terminologia que empregou para descrevê-los tinham sua eficácia limitada a um determinado grupo de pacientes deveria, para o bem da Psicologia[10], em havendo pretensão de entender e tratar pacientes não pertencentes a esse grupo, ter redundado na produção de novos conceitos, novas técnicas e nova terminologia que, em vez de pretender substituir os primeiros, compusesse uma Teoria Geral abrangendo todas Psicologias Profundas, ou seja, todas descobertas e achados das abordagens psicológicas que operassem com o conceito de inconsciente.
Infelizmente, nada disso ocorreu.
b) O que ocorreu:
O inconformismo de muitos dos novos discípulos com as limitações da técnica e da teoria freudianas gerou cisões, umas estrepitosamente assumidas – como as de Adler e Jung[11] – umas diplomaticamente conduzidas, como as de Ferenczi e Abraham – umas sorrateiramente implementadas, como a de Anna Freud e de Klein.
Em seu lado positivo, essas rupturas produziram uma imensa riqueza de teorias e técnicas alternativas; em seu lado negativo, as ruidosamente assumidas, que queriam deixar patentes suas discordâncias, embora se negassem psicanalíticas, produziram termos diferentes para nomear o mesmo conceito, as sorrateiramente implementadas, que preferiam escondê-las, modificaram conceitos sem lhes atribuir novos nomes, insistiram em continuar se nomeando Psicanálise. Essa última, na verdade, estava sendo vítima do mal que viera curar: o uso insatisfatório da função verbal.
(CONTINUA)
Notas:
[1] Lembremo-nos de que, à época de Freud, “dementia praecox” era a denominação – proposta por Kraepelin – ao transtorno mental que, após sugestão de Bleuler (de Eugen, o pai, não de Manfred, seu filho), passamos a chamar de “esquizofrenia”.
[2] “Die analytische Untersuchung der Paranóia bietet uns Ärzten, die nicht an öffentlichen Anstalten tätig sind, Swierigkeiten besonderer Natur. Wir können solche Kranke nicht annehmen oder nicht lange behalten, weil die Aussicht auf therapeutischen Erfolge die Bedingung unserer Behandlung ist. So trifft es sich also nur ausnahmsweise, daß ich einen tieferen Einblick in die Struktur der Paranoia machen kann... Ich sehe sonst natürlich Paranoiker (und Demente) genug und erfahre von Ihnen soviel wie andere Psychiater con ihren Fällen, aber das reicht in der Regel nicht aus, um analytische Entscheidungen zu treffen.” (Freud, S. Gesammelte Werke. Londres: Imago Publishing Co., Ltd., 1999, vol. 8, p. 240)
[3] Vista a insuficiente mielinização do sistema nervoso.
[4] En passant, quero lembrar, que, quando pressionadas, mente-se mesmo sob hipnose.
[5] 1915, Conferências Introdutórias à Psicanálise.
[6] 1911, Caso Schreber.
[7] 1914, Introdução ao Narcisismo.
[8] 1913, Sobre o Início do Tratamento. Essa análise de prova estender-se-ia por um período de aproximadamente duas semanas – à razão de cinco ou seis sessões de uma hora por semana – para verificar se o nível de desenvolvimento psicológico do paciente justificava aceitá-lo para tratamento psicanalítico. Na verdade, nesse trabalho, não emprega a expressão “neurose narcísica”, apenas introduzida em 1914, como assinalei na nota anterior.
[9] Cf. A Sexualidade na Etiologia das Neuroses (1898), Sobre a Psicoterapia (1904), O Método Psicanalítico de Freud (1904). A área de transição entre uma “neurose narcísica” e uma “neurose transferencial” é matizada e pode exigir uma “análise de prova” para diferenciá-las; os demais grupos contra-indicados para o tratamento psicanalítico não precisavam, naturalmente, passar por esse teste para ser eliminados. Vale também lembrar que o próprio Freud, no primeiro desses artigos, ele comenta: “Acho muito provável que seja possível conceber métodos suplementares para o tratamento de crianças e para o público que procura assistência hospitalar” (“Ich halte es für sehr wohl möglich, daß sich ergänzende Verfahren für kindliche Personen und für das Publikum, welches in den Spitälern Hilfe sucht, ausbilden lassen.” (G.W., 1999, vol. I, p. 514)
[10] Da qual, como bem acentuou Freud, a Psicanálise é um dos ramos.
[11] Que, em abril de 1914, renunciou ao cargo de presidente da Associação Psicanalítica Internacional, para o qual havia sido reeleito em setembro do ano anterior, levando à defecção, três meses depois de sua renúncia, de todo o grupo vindo de Zurique.
PARTE III
REORGANIZAÇÃO TERMINOLÓGICO-CONCEITUAL
Como reparar as conseqüências nefastas do “big bang” terminológico-conceitual resultante do choque entre profissionais que se assemelhavam por serem adeptos de uma Psicologia Profunda[1] e diferiam porque seus conceitos e práticas voltavam-se sobre diferentes amostras clínicas?
No início do século passado, para “curar-se” de uma esquizofrenia, bastava a um paciente embarcar em um transatlântico e trasladar-se dos Estados Unidos para a Europa. Como isso? Simples: nos EUA, o conceito de esquizofrenia era muito mais amplo do que o empregado na Europa, e, portanto, ali chegando, não mais seria diagnosticado como tal!... Obviamente, é impossível chegar-se a grandes conclusões, seja sobre esquizofrenia, seja sobre transferência, seja sobre o que for, se determinados autores definem um mesmo termo de forma diferente do que outros o fazem[2].
Seguem-se, algumas sugestões para “higienizar” a terminologia produzida por Freud, seus seguidores e seus antagonistas, eliminando situações em que um só termo esconde uma duplicidade de conceitos e outras em que um só conceito tem sua unidade obscurecida por uma duplicidade de denominação.
Consoantes a essa hipótese, rascunhamos também um maior detalhamento e organização dessa terminologia “higienizada”, com a esperança de que, no espírito de Haeckel[3], possam servir à evolução[4] das Psicologias Profundas, psicanalíticas ou não.
Esse rascunho será vazado de forma dogmática, pois seu valor - ou a falta dele - só poderão ser comprovados pela experiência empírica, sendo, destarte, ocioso tentar demonstrá-lo via argumentação.
A) PROTOFANTASIAS E ARQUÉTIPOS:
Há um notável consenso entre correntes tão aparentemente opostas como o são a de Freud e a de Jung sobre que o psiquismo humano abriga “protofantasias” – no jargão do primeiro – ou “arquétipos” – no do segundo – ou seja, conteúdos psíquicos não resgatáveis pela consciência, mas, ainda assim, capazes de moldar nossa relação com o mundo.
Como estamos lidando com uma duplicidade terminológica que esconde uma unidade conceitual, iniciarei a pretendida “higienização”, dando preferência ao termo “arquétipo” e abandonando o termo freudiano “protofantasia”.
Faço isso, por um lado, levado pelo vasto currículo do termo “arquétipo” na história do pensamento – foi empregado, pela primeira vez, em Filosofia, pelos neoplatônicos, retomado mais tarde, em Teologia, por Agostinho e, finalmente, por Jung[5], em Psicologia – e sempre com o significado básico que acabamos de apontar, tenha ele sua origem em uma memória filogenética, como querem Jung e Freud, ou em outras fontes, como queriam os neoplatônicos e Agostinho.
B) ARQUÉTIPOS E NEÓTIPOS:
Por outro lado, também prefiro “arquétipo” a “protofantasia”, porque o primeiro torna mais evidente a vantagem de que se crie o termo “neótipo”[6], vantagem constituída por tal neologismo nos permitir manejar com mais desenvoltura o fato – reconhecido por praticamente todas as Psicologias Profundas – de que o ser humano se desenvolve formatando sua experiência a partir de arquétipos.
Assim, se consideramos a existência de um Arquétipo do Inimigo, a vida de Marcos formatou-o, dentre outros modos, mediante o neótipo de sua mãe socando-lhe a cabeça.
C) TRANSTORNOS ARQUETÍPICOS E NEOTÍPICOS:
Frente às dificuldades conceituais associadas aos termos “neurose” e “psicose”, as últimas versões tanto do CID quanto do DSM passaram a empregar no lugar daqueles o termo “disorder”, traduzido entre nós pelo termo “transtorno”.
Acoplando essa mudança terminológica à criação do termo “neótipo”, sugiro que as denominações “neuroses narcísicas” e “neuroses transferenciais” sejam substituídos, respectivamente, por “transtornos arquetípicos” e “transtornos neotípicos”, com duas ressalvas:
a) a de que único critério de diferenciação entre ambos transtornos é a de que, nos primeiros, os arquétipos ainda não foram formatados sob forma de neótipos, não interessando se a falta dessa formatação se deve a que o paciente seja psicótico, seja uma criança, seja porque regrediu momentânea ou estavelmente a essa pré-formatação, ou por sejam lá quais outras razões;
b) a de que se reserve o termo formatação[7] para a moldagem de uma experiência vital por um arquétipo hipertônico proto-recalcado e o termo transferência[8] para a distorção de uma experiência vital por sua identificação com neótipo hipertônico recalcado.
No que diz respeito à natureza dos transtornos arquetípicos e neotípicos, minha contribuição é basicamente de coletar e organizar contribuições de autores[9] que ficaram dispersas ao longo da história da Psicologia.
Em tempo: em seu seminal artigo, “O conflito entre os modos de pensamento Aristotélico e Galileano na Psicologia contemporânea” (1931), Kurt Lewin[10] sublinha como é primordial para o sucesso da ciência que ela se empenhe para passar de um pensamento de tipo aristotélico, estruturado em classes, para um de tipo galileano, vazado em contínuos. Exemplifico: a ciência de tipo aristotélica tinha uma teoria sobre o frio e outra sobre o calor, a de tipo galileano uma só, sobre a temperatura.
Infelizmente, na nosologia psicológica, nossos diagnósticos ainda são essencialmente a potiori, entenda-se: se um paciente apresenta 80% de características esquizofrênicas, 10% de características fóbicas e 10% de características obsessivas, vai levar o diagnóstico de esquizofrenia and that’s it.
Assim, relativamente aos dois tipos de pacientes a que nos vimos referindo, devemos estar sempre atentos a que, entre eles, existe um contínuo que pode ser percorrido (inclusive por um mesmo paciente, ao longo seu tratamento), tanto na direção da tipicidade arquetípica quanto da tipicidade neotípica.
Fundamental, de qualquer forma é reconhecer que esses tipos existem e que não há cabimento em tentar compreendê-las com os mesmos conceitos ou submetê-las ao mesmo tipo de tratamento psicológico.
1. TRANSTORNOS ARQUETÍPICOS:
Os transtornos arquetípicos, como vimos, são definidos por uma insuficiência de vínculos neotípicos, que devem ser construídos em uma relação pessoal - via de regra com um psicoterapeuta - tendo ficado explícito que chamar essa relação pessoal de transferencial é uma verdadeira catástrofe terminológica[11]. A isso, vale acrescentar que, no que diz respeito a essa categoria de transtorno:
i. seus arquétipos nucleares são o trauma do nascimento (Rank) e o desejo de retorno à situação intra-uterina (Ferenczi);
ii. em conseqüência disso:
a. suas fantasias de ataque referem-se geralmente ao corpo inteiro;
b. suas ansiedades são de tipo paranoide (ad modum Klein);
iii. fazem acontecer, na relação com seus terapeutas, “coisas que nunca aconteceram, mas sempre existiram”[12]
iv. seus sonhos são facilmente compreendidos a partir de nosso conhecimento de mitos e símbolos, dificilmente exigindo, para essa compreensão, recurso a neótipos infantis;
v. seus vínculos interpessoais são excessivamente frágeis, sendo facilmente rompidos por estímulos que desencadeiem angústia ;
vi. impera neles uma relação ambivalente com uma mãe onipotente que representa ao mesmo tempo o útero que acolhe e a vagina que expulsa (arquétipos resgatados por Klein sob a forma de “seio bom” e “seio mau”);
vii. em transtornos arquetípicos de tipo depressivo, o paciente se identifica com a vagina, acusando-se pelo pecado da expulsão (posição basicamente feminina);
viii. em transtornos arquetípicos de tipo paranóico, o paciente se identifica com o feto, vítima daquela expulsão (posição basicamente masculina);
2. TRANSTORNOS NEOTÍPICOS:
Os transtornos neotípicos, segundo a terminologia proposta, são definidos pela presença de memórias hipertônicas de vínculos neotípicos recalcados. Sobre a natureza desses reina inconstestavelmente Freud e pouco do detalhamento que se segue não proveio dele:
i. o arquétipo nuclear – posteriormente formatado em neótipos – desse tipo de paciente é o do coito-sadomasoquista, em que o pênis “castiga” a vagina pelo “pecado” de nos haver parido[13];
ii. em conseqüência disso:
a. suas fantasias de ataque referem-se geralmente a partes do corpo, representantes das genitálias masculina e feminina;
b. suas ansiedades são de tipo fóbico.
iii. distorcem a relação com seus terapeutas transferindo sobre ela as memórias hipertônicas dos neótipos a que estão fixados;
iv. a compreensão cabal de seus sonhos fica na dependência de material associativo, remetendo freqüentemente à lembrança de neótipos infantis anteriormente recalcados;
v. seus vínculos interpessoais são sólidos, mas rígidos, não sendo facilmente rompidos por estímulos que desencadeiem angústia;
vi. imperam neles relações triangulares em que a rivalidade com pessoas de um determinado sexo convive com a atração pelas do sexo oposto (em Freud, essa triangulação fica associada às figuras parentais, mas essa amarração específica, como demonstrou Malinowski[14] é contingente e não essencial);
vii. em transtornos neotípicos de tipo histérico, basicamente feminino, o paciente se identifica com a vagina, fica na posição de vítima e teme os ataques do pênis;
viii. em transtornos neotípicos de tipo obsessivo-compulsivo, basicamente masculino, o paciente se identifica com o pênis, fica na posição de algoz e culpa-se por isso.
D) ESTRATÉGIA E TÉCNICA[15]:
Estratégias psicoterápicas têm fim, técnicas psicoterápicas são meios de implementação desses fins.
A catarse, por exemplo, indicada em determinados contextos emergenciais, é uma estratégia psicoterápica. A hipnose, determinadas drogas (o pantotal sódico, o amobarbital, o ácido lisérgico etc.), os festivais (ritos carnavalescos e religiosos etc.), são técnicas diversas, mediante as quais a estratégia catártica pode ser implementada.
Feita essa diferenciação, é fácil deduzir qual a estratégia psicoterápica adequada aos transtornos neotípicos e qual aos arquetípicos, nomeando-as de acordo.
E) PSICANÁLISE E PSICOSSÍNTESE:
Visto que transtornos neotípicos são devidos memórias hipertônicas de vínculos passados recalcados e repetidos de forma automática e rígida em virtude do processo transferencial, a estratégia psicoterápica a ser eleita deve logicamente visar à desconstrução desses vínculos, via dissolução de sua transferência, sendo a técnica psicanalítica freudiana, o melhor exemplo disso.
Posto isso, toda técnica que implementar uma estratégia desconstrutiva, como aqui entendida, deve ser considerada psicanalítica, só devendo ser aplicada a pacientes que chegaram à etapa verbal de nosso desenvolvimento psicológico, estabilizando-se nela.
Por outro lado, se os transtornos arquetípicos são devidos a insuficiência no desenvolvimento de vínculos suficientemente fortes para servir de sustentáculo à formação de neótipos, a estratégia psicoterápica de eleição deve logicamente visar à construção de tais vínculos, de natureza muito mais real do que transferencial, sendo essencial – não importa o tipo de técnica escolhida para implementar tal estratégia – que as intervenções do terapeuta gerem o mínimo possível de angústia. As técnicas junguiana e kleiniana são bom exemplo disso.
Toda técnica que implementar uma estratégia construtiva, como entendida aqui, deve ser considerada psicossintética, só devendo ser aplicada a pacientes que não chegaram, global ou parcialmente, à etapa verbal de nosso desenvolvimento psicológico, firmando-se nela.
Notas:
[1] Denominação genérica que merecem todas as teorias que incluem em seus pressupostos a existência de um inconsciente psicológico (não simplesmente neurológico, como se fazia antes de Freud; cf., neste saite, o artigo “O Conceito Freudiano de Psicológico”).
[2] O Código Internacional de Doenças (CID), cujo capítulo V é dedicado aos transtornos mentais, e o Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM) são tentativas de eliminar esse tipo balbúrdia terminológica.
[3] Ernst Heinrich Philipp August Haeckel (1834 –1919), eminente filósofo, biólogo, médico artista alemão, que descobriu, descreveu e nomeou milhares de novas espécies, traçou uma árvore genealógica relacionando todas as formas de vida e cunhou termos clássicos da Biologia como filogenia, ecologia etc.. Divulgou o trabalho de Charles Darwin na Alemanha e é o autor da hipótese – adotada por Ferenczi em seu extraordinário “Thalassa” – de que a ontogênese repete a filogênese.
[4] O mencionado Haeckel afirma que “diferenciação” e “integração das partes diferenciadas” são dois elementos indispensáveis a qualquer processo de evolução.
[5] Jung empregou o termo “arquétipo”, pela primeira vez, em 1919, embora já em 1912 tivesse feito referência, em seus escritos, a imagens primordiais e universais presentes em nosso inconsciente.
[6] Vale reconhecer a Jung, no que diz respeito aos arquétipos, os mesmos méritos que Freud atribuiu a si mesmo, relativamente à sexualidade, quando disse: “Muitos, antes de mim, namoraram a idéia da sexualidade na etiologia das neuroses. Eu casei com ela”.
[7] Dentro ou fora do ambiente terapêutico.
[8] Dentro ou fora do ambiente terapêutico.
[9] Em particular Freud, Rank, Ferenczi e Jung.
[10] Psicólogo alemão (Mogilno, 1890), transladou-se para os EUA, em 1933, onde se refugiou antes da Segunda Guerra, por esposar teorias incompatíveis com o Nazismo. Morreu ali, em 1947. São famosos seus trabalhos sobre Teoria de Campo, em que aplicou os princípios da Teoria da Gestalt.
[11] Que deixou Jung sobremaneira confundido. Como afirma Steinberg: „“Não há a mesma consistência ou a mesma evolução nas opiniões de Jung [se comparadas às de Freud] sobre o valor da transferência. Bem ao contrário, esta é a única área ... em que ele freqüentemente se contradiz. Ele chega a se contradizer no mesmo artigo. Isto talvez indique algum conflito emocional pessoal de Jung com a relação ao assunto transferência.” (Steinberg, W.. 1992, p.19). Se havia conflito pessoal, não sei, mas chamar de transferência o que não é certamente cria confusão em qualquer inteligência suficientemente crítica.
[12] Caius Sallustius Crispus (86 a.C.- c. 35 a.C), historiador e pensador romano, fazendo referência à natureza dos mitos.
[13] Esse arquétipo, em Freud, aparece descrito como a protofantasia do coitus a tergo (realizado por trás, como ocorre na esmagadora maioria do reino animal).
[14] Bronislaw Kaspar Malinowski, antropólogo polonês (1884-1942), fundador da escola funcionalista.
[15] A falta de cabimento de se empregar o termo “método” para uma ciência específica – p.e., falar em “método psicanalítico” – seja em sua dimensão prática ou teórica, e as desastrosas conseqüências desse uso, estão brilhantemente expostas no excelente livro de Rudner “Filosofia da Ciência Social” (Rudner, R.S.. Rio: Zahar, 1969, p. 34).
PARTE IV
O NÍVEL META
Cumpre abordar mais dois grupos de diferenciação terminológico-conceitual para que possamos nos apossar de forma mais acabada da pirâmide teórica em que se alojam os conceitos de arquétipo, neótipo, formatação, transferência, contratransferência, transtornos arquetípicos, neotípicos etc..
Essa minha proposta exige aprofundamento em separado, portanto, vou, neste espaço, enunciá-la de forma sucinta e dogmática.
A) META-OCORRÊNCIA E METAMBIENTE:
1. META-OCORRÊNCIA:
Caso A:
(a) eu tenho um pai agressivo;
(b) eu comunico a ele que isso me faz sofrer;
(c) ele me responda:
(i) Caramba, meu filho, eu não tinha consciência de que estava machucando você com essa minha maneira agressiva de ser. Mas, na verdade, vejo que sempre fui assim. Não me controlo e, com isso, machuco pessoas de quem eu gosto e não quero machucar. Muitas vezes, nem percebo que estou machucando. Você me ajudaria apontando toda vez que eu agrido você sem me estar dando conta disso... Ou:
(ii) Como agressivo? Você não vê que eu faço isso para seu bem? Só assim eu estou preparando você para a vida! Preparando você para não ser um mariquinhas, que, aliás, parece que já é. Você deveria é me agradecer por eu ser assim!
Caso B:
(a) eu tenho um pai delicadamente firme, amoroso e gentil;
(b) eu comunico o quanto isso me faz admirá-lo e gostar dele;
(c) ele me responde:
(i) Caramba, meu filho, fico satisfeito de ouvir isso. Aliás, eu também amo e admiro muito você... Ou:
(ii) Ah, meu filho, eu não faço mais do que minha obrigação... Aliás, você se lembrou de dar banho no cachorro?
Nas distinções que pretendo introduzir no vocabulário técnico da Psicologia, as “ocorrências”, empregadas lato sensu, englobam:
(a) “ocorrência stricto sensu” – ou, mais simplesmente, “ocorrência” – aplicável, em nosso exemplo, ao comportamento – agressivo ou amoroso – do pai; e
(b) “meta-ocorrência”, aplicável à maior ou menor capacidade de escuta desse pai relativamente aos efeitos que seu comportamento tem sobre os demais.
Generalizando, podemos ter, assim, quatro possibilidades, ilustradas pelos dois casos – fictícios – relatados:
Caso A:
1. Ocorrência desfavorável acompanhada de:
1.a. meta-ocorrência favorável; ou a
1.b. meta-ocorrência desfavorável;
Caso B:
1. Ocorrência favorável somada a:
1.a. meta-ocorrência favorável; ou a
1.b. meta-ocorrência desfavorável;
2. METAMBIENTE:
Da distinção entre “ocorrência” e “meta-ocorrência” decorrem automaticamente outras, quais sejam, a de um campo[1], o “ambiente lato sensu”, abrangendo dois sub-campos:
(a) o “ambiente stricto sensu” – ou, mais simplesmente, “ambiente” – como “sub-campo” que abrange as “ocorrências”; e
(b) o “metambiente” como o “sub-campo” que abrange as “meta-ocorrências”, ou seja, o sub-campo do campo total que onde ocorre – ou não – o processamento verbal das ocorrências do “ambiente (propriamente dito)”.
B) AMBIENTE, METAMBIENTE, TRANSTORNOS ARQUETÍPICOS E NEOTÍPICOS:
Defendo as seguintes teses, que, como disse, não podem ter sua validade confirmada ou desconfirmada aqui:
1) A qualidade do “ambiente”, em seu senso estrito, é o que determina a presença, ou não, dos transtornos arquetípicos. Se ela é “muito” (como seria bom poder metrificar!) desfavorável, o sujeito não consegue formatar seus arquétipos, transformando-os em neótipos;
2) Se é “suficientemente” (!) favorável para que essa transformação ocorra, mas a qualidade do “metambiente” não o é o bastante para que esses neótipos sejam eutonizados, conseqüentemente, accessíveis à consciência, tais neótipos vão permanecer inconscientes e hipertônicos, gerando as transferências que caracterizam os transtornos neotípicos.
C) PSICOTERAPIA AMBIENTAL ou PSICOSSÍNTESE:
Frente ao exposto, em nada admira que profissionais voltados para o trabalho com transtornos causados por graves defeitos de seu ambiente (stricto sensu) infantil, passassem a dar atenção – Jung, Ferenczi, Klein etc., cada um a seu modo – a quais correções deveriam ser introduzidas no “ambiente” psicoterápico stricto sensu – portanto, à sua relação pessoal com os pacientes.
Infelizmente, não era para qualquer um ter coragem suficiente para abandonar nomes – como “Psicanálise” e “transferência” – e práticas – como a interpretação – que já se haviam tornado griffes capazes de revestir com manto de cientificidade a atividade de quem os empregava.
Particularmente no que diz respeito à transferência, Ferenczi, dentre os citados, foi o mais corajoso, Jung o mais confuso[2], Klein a menos cuidadosa.
D) PSICOTERAPIA METAMBIENTAL ou PSICANÁLISE:
Pacientes neotípicos foram vítimas de graves perturbações em seus metambientes, ou seja, no sub-conjunto de suas relações com o mundo referentes à possibilidade – ou não – de comunicar verbalmente o que lhes ocorria em seus ambientes (stricto sensu).
A obra de Freud é um mergulho na natureza desses metambientes e na natureza das alterações metambientais que deveriam ser introduzidas no ambiente terapêutico para servir a esses pacientes.
Desse profundo mergulho, nasceram novos conceitos e novos termos para os descrever, tais como Psicanálise, proto-repressão, proto-fantasia, pulsão, eu, super-eu, isso, fixação, transferência, neurose atual, psiconeurose narcísica, psiconeurose transferencial e que se tornaram referência para todos os ramos da Psicologia – profunda ou não – que surgiram depois.
Devemos, na esteira do conceito de metambiente, acrescentar a esse aparato teórico ainda outro conceito – o de metatransferência – e, como não poderia deixar de ser, também seu inescapável derivado – o de metacontratransferência – os quais abordo sucintamente a seguir.
E) METATRANSFERÊNCIA:
1. O CONCEITO:
Vimos que a transferência é causada pela presença em nosso psiquismo de uma memória hipertônica neotípica inconsciente que se impõe sobre percepções atuais, distorcendo-as.
Ora, mas, para o avanço da Psicanálise, é fundamental separar dois especiais componentes dessas memórias, aos quais não se deu devida atenção.
Refiro-me ao fato de que parte dessas memórias se refere a nosso “ambiente” (no senso estrito que apontei acima), outra a nosso “metambiente” precoces. O que nos leva à seguinte categorização:
(a) Transferência lato sensu:
(a.1) Transferência ambiental (= transferência);
(a.2) Transferência metambiental (= metatransferência).
Exemplo: eu amava meu pai (= ocorrência), meu pai ficava envergonhado quando eu demonstrava meu amor por ele, levando-me a não verbalizar esse amor (= meta-ocorrência), confundo meu analista com meu pai, passo a amá-lo (= transferência) e bloqueio minha expressão verbal desse amor porque penso que vou envergonhá-lo (= metatransferência).
2. O MANEJO:
a. A interpretação metatransferencial::
Ora, visto que a Psicanálise foi prioritariamente construída com o objetivo de resolver problemas metambientais – não ambientais, como a Psicossíntese – é a dissolução da metatransferência, não da transferência, seu alvo preferencial.
Assim, é muito mais eficiente, para seus fins, comunicar a um paciente:
“Você falou mais baixo quando disse que está com raiva de mim, tem idéia do porquê disso?”
Do que o terapeuta perceber que o paciente está pouco atento para sua raiva dele e apontar-lhe isso[3].
Freud namorou essa idéia – em particular
(a) quando afirmou que não se deve interpretar a transferência antes que haja um bloqueio das associações livres do paciente e
(b) quando afirmou que o analista deve interpretar a resistência antes do resistido – mas não casou com ela.
E namoros não costumam dar filhos, casamentos sim.
b. Os indicadores de ruptura;
A literatura psicanalítica é farta em informações que nos facilitam interpretar elementos cifrados do material fornecido por pacientes. E assustadoramente ausente em dar indicações, frente ao material fornecido, sobre qual o fragmento dele está maduro para, ao sofrer intervenção do psicanalista, resultar em associações, sonhos e insaites, em vez de recrudescer resistências e agravar sintomas.
Para ter o efeito desejado, mesmo a intervenção metatransferencial – a mais eficaz dentre todas à disposição de um psicanalista – deve ser feita sobre um material maduro para recebê-la.
Chamei de “indicadores de ruptura” os sinais enviados pelo paciente de que, num determinado lugar de seu discurso, ele está ávido por nossa escuta, mas temendo os resultados de tentar obtê-la.
Mais uma vez, vejo-me frente a um tema que exige aprofundamento em um espaço basicamente seu e, portanto, limitar-me-ei a fazer uns curtos comentários sobre esses indicadores, enriquecendo-os com alguns exemplos.
Antes de tudo, cabe assinalar que só é indicado avançar sobre indicadores de ruptura quando eles são monótonos, ou seja, quando se limitam a um mesmo tema. Quem atentar para esses indicadores de ruptura vai ficar – como fiquei eu – surpreendido com a freqüência com que essa monotonia ocorre.
Isso é revela-se de forma particularmente evidente em uma primeira entrevista: o paciente fala sobre inveja, raiva, tristeza, saudades, medo, culpa etc., mas só acrescenta “entendeu?”, quando fala de culpa.
Ora, ele não me conhece. Por que acharia que eu entendi quando ele falou de todas as outras emoções, mas, quando falou de culpa, não?
A experiência clínica comprova que, num tal caso, “culpa” é o único material sobre o qual ele está (a) querendo ser entendido e (b) preparado para isso.
E, sobre esse material, a intervenção correta é de natureza metatransferencial, do tipo: “Você percebeu que me perguntou se eu entendi várias vezes durante a entrevista?” ... “Percebeu onde?” ... “Foi só quando você falou de culpa. Por que eu entenderia quando você estava falando sobre e, quando sobre culpa, não? Como era a comunicação sobre culpa em sua família?”
Dou minha mão à palmatória, se, com esse tipo de intervenção, feita nesse lugar de seu discurso, o paciente não acrescentar material significativo para o aprofundamento de sua análise. Também dou se ele fizer igual acréscimo a partir de intervenções feitas em outros lugares e de outro tipo.
São indicações (IRs = indicadores de ruptura) de que o paciente está querendo ser escutado, mas teme em tentar fazê-lo:
a) Intervenções como: Sabe? Né? Entendeu? Viu?
b) Falar mais alto;
c) Falar mais baixo;
d) Gaguejar;
e) Sentar na beira da poltrona;
f) Etc., etc., etc., etc.,etc,etc,etc..
Como afirmei, raramente ocorre que os IRs não se foquem, durante um bom tempo, sobre um mesmo e único tema. Só vi essa “falta de monotonia” em duas situações clínicas:
(a) quando o trabalho sobre um tema já está por terminar e outros temas estão rivalizando para decidir qual vai ser o próximo da fila; e
(b) quando o paciente é ou está mais regredido e revive uma época em que não eram apenas algum(ns) elemento(s) de seu mundo interno, mas ele como um todo, que seu metambiente rejeitava.
F) METACONTRATRANSFERÊNCIA:
1. O CONCEITO:
O conceito de metacontratransferência é, obviamente, um subconjunto do de metatransferência, correspondendo a toda e qualquer metatransferência proveniente do psicanalista e voltada para seu paciente.
2. CAUSA:
A presença, no psiquismo do analista, de uma memória hipertônica metambiental que dificulta sua fala e sua escuta na relação com o paciente.
Tenho um exemplo paradigmático de metacontratransferência. Quando perguntei a uma supervisionanda por quê ainda não havia falado para um determinado paciente sobre um certo assunto, ela, muito consciente de si mesma, respondeu-me:
“Porque, quando eu falar isso para ele, eu também vou ouvir!”
1) MANEJO:
Metacontratransferências relevantes para o trato com um determinado paciente são aquelas que impedem o terapeuta de atuar em conformidade com o que determina a técnica por ele empregada.
Assim, para a detecção de uma metacontratransferência, é necessário, seja um supervisor, seja um suficiente conhecimento dessa técnica por parte de quem é vítima dessa metacontratransferência, para que ela seja detectada e o terapeuta em tela, por meios próprios ou com a ajuda de um colega, faça a eutonização das memórias hipertônicas recalcadas que dão origem a tal distúrbio.
Notas:
[1] Cf. a Teoria de Campo de Lewin, onde “campo” é definido como o conjunto de fatores que atuam sobre um determinado sujeito psicológico.
[2] Vimos os conflitos com que, a respeito disso, se defrontou Jung; Klein, bem ao contrário, não parece ter tido nenhum.
[3] Aliás, segundo minha experiência, não vale a pena apontar elementos
CONCLUSÃO
Bem, podemos finalizar.
A) TRANSFERÊNCIA E CONTRATRANSFERÊNCIA: ONDE ESTAMOS?
A diferenciação feita por Freud, dentro do conjunto geral das reações humanas, de um subconjunto, extremamente bem caracterizado, denominado ‘transferência’, foi um passo evolutivo dentro da teoria psicológica, assim como o é diferenciar, dentro daquele conjunto, ainda outros, tais como os de “metambiente”, de “metatransferência” e de “formatação”.
Até agora, os grupos que – aberta ou sorrateiramente – afastaram-se de Freud fizeram o desserviço de empurrar a Psicologia para um caminho involutivo, que, em vez de multiplicar as diferenças e interrelacioná-las, dedicam-se a borrar as anteriormente estabelecidas.
Os autores e escolas que não trabalharam ou não trabalham com os conceitos originais de transferência e de contratransferência, mas não quiseram abrir mão do status que a obra de Freud deu a esses termos, fizeram o caminho inverso daquele que Haeckel aponta ser percorrido por todo o processo de evolução: em vez de eles continuarem, no campo da Psicologia, o trabalho de diferenciação e integração das partes diferenciadas, tiraram a especificidade teórica dos conceitos de transferência e contratransferência, percorrendo um caminho involutivo na história dessa ciência.
Com isso, durante algum tempo – até por volta da metade do século passado – muitos soi-disants psicanalistas[1] – sem trabalhar de fato o que Freud chamou de transferência e de contratransferência, sem dissolvê-las, eutonizando memórias neotípicas, dando-lhes acesso à consciência e, com isso, dissolvendo armaduras caracterológicas[2] e sintomas, ou seja, sem, de fato, fazer Psicanálise – foram capazes de usufruir do status a que Freud alçou essa ciência.
Mas, se é fácil enganar poucas pessoas durante muito tempo e muitas pessoas durante pouco tempo, menos fácil é enganar muitas pessoas durante muito tempo.
Assim, hoje, é a Psicanálise que está perdendo seu status de científica, por ter tantas vezes tido seu nome usado em vão.
Já é tempo de ressuscitar a Fênix.
B) TRANSFERÊNCIA E CONTRATRANSFERÊNCIA: PARA ONDE IR?
Para ressuscitá-la, o central é reconhecer com toda explicitude que pacientes arquetípicos são diferentes dos neotípicos, não transferem, mas curam-se mediante relações pessoais favoráveis e, a partir daí, iniciar um estudo científico criterioso e alentado sobre que características tipificam tais “relações pessoais favoráveis”, desenvolvendo novas terminologias para recobrir um novo tipo de trabalho e conseguindo para ele o mesmo respeito que Freud obteve para a obra que gestou.
[1] Pouco importa se membros ou não da International Psychoanalytical Association.
[2] Reich.
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