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O CONCEITO FREUDIANO DE PSICOLÓGICO


Resumo:
O autor traz à tona a pré-história do conceito de psíquico adotado por Freud, sendo levado à inesperada conclusão de que este conceito se manteve sob repressão durante a maior parte da obra, tendo por isso gerando indesejáveis confusões e ambigüidades na formulação de algumas das mais importantes questões da Psicanálise Teórica.


PRIMEIRA PARTE

Ao estudar, há mais de quatro décadas, a produção intelectual freudiana, por várias vezes veio-me à mente uma estrofe de Fernando Pessoa:

“Mensageiro de um rei desconhecido,
Eu cumpro informes instruções do além,
E as bruscas frases que aos meus lábios vêm
Soam-me a um outro e anômalo sentido.”

Ao longo deste trabalho, que pretende preencher algumas lacunas e aparar determinadas arestas do que considero a mais completa e sofisticada dentre as teorias que se dedicaram à compreensão do homem, ver-se-á por quê.

Herr ‘F.’

O sexto volume do Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse, publicado em 1920, traz um artigo de título “Da Pré-História da Técnica Analítica”[1], misteriosamente assinado ‘F.’. Trata-se de Freud, analisando anonimamente a si mesmo. Esse fragmento de auto-análise foi desencadeado pela reapresentação, que recentemente lhe houvera feito Ferenczi, do ensaio de Ludwig Börne, escrito em 1823, “A Arte de se Tornar um Escritor Original em Três Dias”. O ensaio propõe, para que se obtenha a almejada originalidade literária, uma técnica em tudo semelhante à proposta por Freud para a obtenção da cura:

“E aqui temos a aplicação prática que foi prometida. Pegue algumas folhas de papel e por três dias a fio anote, sem falsidade ou hipocrisia, tudo o que lhe vier à cabeça. Escreva tudo o que pensa de si mesmo, de sua mulher, da Guerra Turca, de Goethe, do julgamento de Fonk, do Juízo Final, de seus superiores, e, quando os três dias houverem passado, ficará espantadíssimo pelos novos e inauditos pensamentos que teve. Esta é a arte de tornar-se um escritor original em três dias.”[2]

E mais: no citado artigo também se advogam uma série de outras posições que Freud sempre valorizara e tomara por suas, como, por exemplo, a relação entre caráter e genialidade: “Uma vergonhosa covardia de pensar nos retém a todos.” ... “A sinceridade é a fonte de todo gênio e os homens seriam mais brilhantes se fossem mais morais”[3]
Sob o codinome de ‘F.’, Freud, em sua análise, nos revela:

(1) que, quando adolescente, recebera de presente as obras de Börne, tendo sido esse o “primeiro autor em cujas obras se aprofundara”[4];
(2) que, por “notável coincidência” (‘F.’, como Freud, não acredita muito em “coincidências”...), o volume contendo aquelas obras era o único que, de seus tempos de rapaz, sobrevivera até então;
(3) que, durante muitos anos, vieram-lhe à memória, sem razão aparente, vários ensaios contidos naquele volume; e, finalmente,
(4) que, entre esses ensaios, insistente e “gratuitamente” relembrados, jamais estava aquele em que Börne propõe as idéias que Freud adotou depois.

A cripto-auto-análise freudiana segue, evidentemente, os moldes da decodificação de uma “memória encobridora”: (a) uma memória relevante tenta conseguir entrada na consciência; (b) uma resistência se opõe a isso; (c) outras memórias, irrelevantes mas associadas àquela, mantêm-se inexplicavelmente vivas. ‘F.’ não se ocupa em aprofundar as raízes da resistência em pauta, mas deixa patente seu propósito: esconder o débito intelectual de Freud a Börne.
Terá o fato de a técnica da “associação livre” fazer parte de um complexo de associações parcialmente reprimido prejudicado, de alguma forma, sua compreensão teórica e sua utilização? Não parece. Mas conflitos relativos a prioridades não são estranhos à psique freudiana e, como demonstraremos, seus efeitos em outras partes de sua obra foram menos benignos. Antes, contudo, acrescentemos alguns elementos à análise feita por ‘F.’ do distúrbio mnêmico de Freud.

Namorando e casando...

Namoros não costumam gerar filhos; casamentos, sim. Freud namorou a idéia da cocaína como anestésico, Karl Koller casou com ela e, à revelia dos remordimentos daquele, ficou famoso por isso; Breuer namorou a descoberta do papel de representações e desejos inconscientes na produção dos sintomas neuróticos, mas deixou-a à beira do altar, Freud casou com ela e por isso recebeu justa fama; este, por sua vez, namorou a idéia de um “trauma do nascimento”, Rank desposou-a e, compreensivelmente, entrou para a história como o responsável pela importância dada a esse último no pensamento psicanalítico; Börne teve um caso com a técnica da associação livre, mas foi, indiscutivelmente, Freud quem fez essa técnica gerar seus maiores e melhores frutos...
Sobre sua contribuição para o deslindamento do papel da sexualidade na produção de enfermidades psicológicas, Freud fez, algures, um fino comentário: “Muitos, antes de mim, namoraram a idéia da sexualidade na etiologia das neuroses: eu casei com ela”. Mas, se o criador da Psicanálise de fato acredita justa a fama dos maridos férteis por sobre a dos menos férteis namorados por que esconder Börne? Ouçamos Freud, em 24, falando sobre sua entrada para a universidade:

“Quando em 1873, ingressei na universidade, experimentei desapontamentos consideráveis. Antes de tudo, verifiquei que se esperava que eu me sentisse inferior e deslocado, por ser judeu. Ao primeiro objeto dessas expectativas, opus-me com firmeza. Jamais fui capaz de compreender por que deveria sentir-me envergonhado de minha ascendência ou, como as pessoas começavam a dizer, de minha ‘raça’. Suportei, sem grande pesar, minha não aceitação na comunidade, pois parecia-me que, apesar dessa exclusão, um trabalhador diligente não poderia deixar de encontrar algum pequeno lugar nos quadros da humanidade.” [5]

Embora formulado de maneira bastante modesta, a natureza do propósito firmado ali, certamente não o é: está fora de dúvida que “algum pequeno lugar nos quadros da humanidade” é bastante mais do que qualquer grande lugar entre os muros de uma universidade! Com efeito, a fama, certamente uma que ultrapassasse aqueles muros, seria por Freud buscada com ardor. Mais do que isso: como o conjunto do que sabemos sugere – e aqui está o percalço! – essa busca seria mais do que simplesmente ardorosa: seria carregada de conflitos e verdadeiramente compulsiva. Teria, para empregarmos um conceito proveniente do próprio Freud, a natureza de uma formação reativa, ou seja, nasceria, no caso, sobre o recalcamento de algumas mágoas não suficientemente perlaboradas. É conhecido o desamparo provocado em Freud pela personalidade fraca de seu pai. Num caráter competitivo e orgulhoso como o de Freud, nada mais compreensível que tal desamparo se houvesse transmudado no impulso, apontado por um de seus melhores biógrafos, de “criar-se a si mesmo e ser o pai de si mesmo”[6]. É significativo para revelar o caráter conflituado de tal impulso o fato de Freud haver posteriormente retirado da versão original de “A Psicopatologia da Vida Cotidiana” (1901) o trecho seguinte, para que chama atenção Roazen:

“Dificilmente haverá algum conjunto de idéias ante que eu sinta um antagonismo tão grande quanto o de ser um protegido de alguém ... o papel de filho predileto adapta-se muito pouco ao meu caráter. Sempre experimentei uma necessidade excepcionalmente imperiosa de “ser eu próprio o homem forte”.”[7]

Tais impulsos tornam a descoberta de uma idéia original, sem débitos, que o levasse a fama, o objeto de desejo ideal para manter sob recalque as vivências de desproteção mencionadas e explicam as raízes dos distúrbios de memória freudianos analisados por ‘F.´. Não obstante, o recalque freudiano de seus débitos intelectuais para com Börne não parece, como vimos, haver de nenhuma forma prejudicado a qualidade da produção psicanalítica relativamente à associação livre e não os teríamos mencionado aqui se eles não revelassem uma matriz do psiquismo de Freud que, ao operar sobre as posições sustentadas por este no que diz respeito à Psicologia e a seu objeto, gerou, agora sim, uma série de distorções e ambigüidades em alguns pontos-chave da teorização psicanalítica.

Um novo mental para uma nova Psicologia

Freud, como se sabe, entendia a Psicanálise como um subconjunto da Psicologia:

“a psicanálise não é um ramo especializado da medicina. Não vejo como alguém possa negar-se a reconhecê-lo. A Psicanálise é uma parte da Psicologia, não da Psicologia Médica no velho sentido, não da psicologia dos processos mórbidos, mas, simplesmente, da Psicologia.”[8]

Mas não a entendia como um subconjunto qualquer: “Certamente não é o todo da Psicologia, mas sua sub-estrutura e talvez, acima de tudo, o seu fundamento”[9]. Esse “fundamento psicanalítico” é o que teria permitido à Psicologia “estabelecer-se, como outras, como uma ciência natural”[10]
Tal “fundamentação” consistiria, essencialmente, em fornecer uma nova definição para o objeto desta última:

“E dificilmente pode ser questão de acaso que só depois de ter sido efetuada a mudança na definição do psíquico se tenha tornado possível construir uma teoria abrangente e coerente da vida mental”[11]

A “pré-história” dessa fundamental e fundamentante redefinição do psíquico estava, contudo, sujeita, em seu autor, a processos de recalque semelhantes aos expostos por ‘F.’ no que diz respeito à associação livre. Com a diferença assinalada: aqui, as conseqüências de tal recalque serão menos benignas. Para demonstrarmos isso, cumpre, entretanto, repassarmos algumas sutilezas relativas à definição de definição.

Conotação e denotação

Em seu clássico System of Logic[12], publicado em 1843, John Stuart Mill propõe uma distinção entre “denotação” e “conotação” que é repetida ou pressuposta por quase toda a Lógica contemporânea, embora, por vezes, diversamente nomeada. A denotação (ou “extensão”) lista o conjunto de fenômenos a que se aplica um determinado termo, sem, entretanto, apontar a(s) característica(s) comum(ns) que fundamenta(m) tal listagem; a conotação (ou “compreensão”, ou “intenção”) é, exatamente, a explicitação de tal(is) característica(s). Um universo de fenômenos pode estar denotado, sem estar conotado, por duas razões:
A primeira: porque tal conotação não existe. É o caso dos nomes próprios. Se, diante de um grupo de pessoas, peço que se apresentem os “João da Silva”, supõem-se que o universo de pessoas assim destacado não terá nenhuma essência “joãodasílvica” (uma “conotação”) de forma que, a partir do conhecimento das características essenciais de uma determinada pessoa, eu pudesse concluir se ela se chama ou não “João da Silva”. Os nomes próprios, com efeito, são os únicos que denotam, mas não conotam. A segunda: porque, embora tal conotação exista, não fomos ainda capazes de explicitá-la. É essa a situação a que alude Freud na passagem seguinte, redigida em 24:

“A Zoologia e a Botânica não partiram de definições corretas e suficientes de um animal e de uma planta; até hoje a Biologia foi incapaz de dar qualquer significado certo ao conceito da vida. A própria física, realmente, jamais teria feito qualquer progresso se tivesse tido de esperar até que os seus conceitos de matéria, força, gravitação, e assim por diante, houvessem alcançado o grau conveniente de clareza e precisão.”[13]

Vejamos como os conceitos millianos de conotação e denotação podem auxiliar-nos a deslindar os tropeços enfrentados por Freud em sua tentativa de definir a natureza do psicológico.

Descaminhos

As seguintes considerações sobre o psíquico, tecidas por Freud em 1938, ano anterior ao de sua morte, não parecem, à primeira vista, merecer maior reparo:

“Se alguém perguntar o que realmente significa ‘o psíquico’ será fácil responder pela enumeração de seus constituintes: nossas percepções, idéias, lembranças, sentimentos e atos volitivos – todos fazem parte do que é psíquico. Mas se o interrogador for mais longe e perguntar se não existe alguma qualidade comum, possuída por todos esses processos, que torne possível chegar mais perto da natureza, ou, como as pessoas dizem, da essência do psíquico, então será mais difícil fornecer uma resposta.”[14] ... “O psíquico, seja qual for a sua natureza, é em si mesmo inconsciente e provavelmente semelhante em espécie a todos os outros processos naturais de que obtivemos conhecimento.”[15]

Pois merecem, e tais reparos podem ser dispostos em dois grupos:

Grupo I: as insinuações freudianas (a) de que ele aceita pacificamente a tradicional denotação de psíquico e (b) de que não possui uma conotação de sua “natureza” não correspondem ao que revela o melhor de sua obra;
Grupo II: as que nos induzem (a) a colar o psíquico com o inconsciente e (b) considerá-lo semelhante a todos os demais processos naturais denunciam uma falha freudiana, determinada pelos conflitos acima referidos, em deduzir devidamente as conseqüências dos pressupostos com que ele próprio opera.

Tais afirmações requerem, naturalmente, ser fundamentadas.

Todos os animais são iguais, mas...

Em “A Revolução dos Bichos”[16], George Orwell relata como os animais de uma certa fazenda, após se livrarem dos homens que os dominavam, instalam um período de “igualdade entre os animais”. O desenrolar dos acontecimentos, todavia, aponta para outros caminhos: os porcos iniciam a tomada do poder e, em pouco tempo, reinstala-se um processo de dominação em que, na pena finamente sarcástica do autor, todos animais continuam iguais, mas alguns animais passam a ser “mais iguais” que outros... A passagem freudiana abaixo transcrita, redigida entre 1915 e 1917, sugere que, diferentemente do implicado em sua fala recém-citada, datada de 38, também dentre os fenômenos usualmente denotados como mentais, Freud considera alguns “mais mentais” do que outros:

“Tudo o que é observável na vida mental pode ocasionalmente ser designado como fenômeno mental. Cumpre, conseqüentemente saber se o fenômeno mental específico proveio diretamente de influências corporais, orgânicas e materiais — e, assim, sua investigação não fará parte da Psicologia — ou se ele deriva primariamente de outros processos mentais, em algum lugar por detrás dos quais se inicia, então, a série das influências orgânicas. É essa última situação que temos em vista quando designamos um fenômeno como processo mental.” (destaques nossos)[17]

O trecho é um dos mais crípticos de toda a obra freudiana e seu estilo contorcido sugere que o pensamento que nele tenta vir à tona – embora, como veremos, de nível bastante mais sofisticado do que o exposto na passagem de 38 – enfrenta, ao fazê-lo, significativa resistência na mente de quem o formula. Vejamos o que pode, com clareza, ser retirado da passagem em tela:

(1) Do universo de fenômenos usualmente denotados como mentais, apenas uma parcela deve ser como designada como tal;
(2) O pseudo-mental – que, “parece mental, mas não é” – tem como causa direta fatores “corporais, orgânicos e materiais”
(3) A causa direta dos fenômenos propriamente designados como mentais são “outros fatores”, atrás dos quais se iniciam as influências orgânicas”;
(4) Sobre esses outros fatores que se sobrepõem às influências orgânicas somos informados, de maneira lamentavelmente circular, que são “outros processos mentais”!

Por mais que a circularidade e ambigüidade do texto nos deixem inicialmente perplexos, algo se torna manifesto: diferentemente do que faz em 38, Freud, aqui:

(1) Contesta a validade de se empregar a denotação (= mera listagem de fenômenos observáveis) usual de psíquico para se determinar o que é, de fato, psíquico;
(2) Fundamenta essa contestação em alguma conotação de psíquico que, embora insuficientemente explicitada, não apresenta nenhuma referência explícita ao eixo consciente-inconsciente!

Salta aos olhos que, se pretendemos decodificar satisfatoriamente a mensagem desse estranho texto, deveremos descobrir qual a real natureza dos mui intrigantes “outros processos mentais” de que o “verdadeiramente mental” primariamente se deriva.

In memoriam de Franz Brentano (1838-1917)

Roland Kuhn, em seu prefácio à edição francesa do importantíssimo trabalho freudiano Contribuição à Concepção das Afasias, problematiza: “Fica a questão de saber por quê, em toda a sua obra, Freud jamais evoca Brentano. Nossa opinião é a de que ele está ali bem presente, mas de maneira anônima.”[18]
Franz Brentano, psicólogo e filósofo alemão, lecionou em Würzburg e Viena e sustentava que o que distinguia o psíquico do físico era a “existência de intencionalidade”. Freud – assim como Husserl, cuja Fenomenologia recende a intencionalidade – foi seu aluno, a partir de 1874, quando – com 18 anos de idade e cerca de uma vintena de anos antes de seus primeiros trabalhos psicanalíticos – acorria entusiasmadamente aos seminários daquele, onde, certamente, ouviu debatidas duas das principais teses do mestre, quais sejam:

(1) a Psicologia é uma ciência natural – uma “Naturwissenschaft” – tão capaz de propor leis universais como a Física, a Química ou a Biologia; e
(2) fenômenos mentais são aqueles que “incluem em si intencionalmente um objeto”[19]

Tais teses estão sustentadas em seu Psicologia do Ponto-de-Vista Empírico[20] – onde uma das seções leva o título de “A Distinção entre os Fenômenos Físicos e os Mentais” – publicado em Leipzig, exatamente no ano em que Freud começou a assistir aos referidos seminários. Impossível acreditar que as supracitadas teses, centrais no pensamento de Brentano, não estivessem sendo ali debatidas. A observação de Kuhn, em um aspecto, contudo, é inexata. Freud evocou, sim, uma única vez, o nome Franz Brentano em sua obra: em uma nota de pé de página apensa ao terceiro capítulo de seu livro O Chiste e sua Relação com o Inconsciente e a análise desta nota é, para nossos propósitos, particularmente interessante sob três aspectos:
Primeiro, seu objeto é uma publicação em que Brentano se revela um psicanalista avant la lettre, desafiando o leitor a, através de jogos de palavras, resolver charadas que, resolvidas, nos fazem rir; segundo, o propósito de expor essa contribuição de Brentano é formulado de maneira tão canhestra – e, convenhamos, Freud não era exatamente alguém com dificuldade de expressão verbal! – que o editor da Standard Edition se sente obrigado a aduzir um apêndice que se inicia com as seguintes palavras: “O relato freudiano das charadas de Franz Brentano” ... “é tão obscuro que exige um esclarecimento adicional”[21], passando logo a fornecer tal esclarecimento (veremos adiante que Freud, de fato, tende a ficar confuso quando o fantasma de Brentano acossa sua mente); terceiro, após citar dois exemplos das charadas brentanianas, Freud acrescenta um exemplo de charada semelhante construída por um colega – mui colega! – de Brentano, em que o nome desse último é usado para expressar a desagradável surpresa da descoberta de que ele... ainda está vivo! Freud, por razões que não são manifestamente aduzidas, chama a gracinha do colega de Brentano de “espirituosa vingança”[22], o que nos leva a perguntar: vingança contra quê? Aparentemente, Brentano era alguém que sabia despertar rivalidades... (Em tempo: as duas charadas-piadas escolhidas por Freud para exemplo dentre as três dezenas propostas por Brentano lidam, uma, com alguém temendo, outra, com alguém “involuntariamente” causando a morte de alguém. Não me admiraria que, tendo chamada sua atenção para esse conjunto de dados, ‘F.’ se dispusesse a escrever outro fragmento de análise de Freud... )

Brentano revelado

Ouçamos Chisholm: “Segundo Brentano” ... “a intencionalidade é peculiar aos fenômenos psicológicos, fornecendo, assim, o critério que permite a diferenciação entre o mental do não-mental.” (destaque meu)[23]
Apenas uma vez Freud revelou abertamente seu comprometimento com a tese de seu antigo professor, sem, no entanto, nomear a fonte: “Detenhamo-nos mais um instante sobre a afirmação de que as parapraxes são ‘atos psíquicos’. Implicará isso mais do que o que já dissemos: que elas tem um sentido? Não creio. ”[24] E, pouco adiante: “Quando descrevemos um fenômeno como um processo psíquico” ... “é mais prático cunhar nossa afirmação da seguinte forma: o fenômeno é direcionado, ele tem um sentido.”[25] Esclarecendo: “Por ‘sentido’ entendemos ‘significação’, ‘intenção’, ‘tendência’.”[26]
Eis aí, assumida, a conotação de psíquico com que Freud opera e que, no trecho de 38 que citamos, nos tenta fazer pensar que não possui. Em suma: A PSICANÁLISE FREUDIANA ENTENDE, AD MODUM BRENTANO E SEM JAMAIS HAVER SE AFASTADO DISSO, QUE “PSICOLÓGICO” É SINÔNIMO DE “INTENCIONAL”.
Dada a centralidade do conceito – como veremos, a Psicanálise não pode existir sem ele – vê-lo exposto uma única vez, numa obra da extensão da de Freud, equivale a mantê-lo recalcado. Ainda assim, foi esse conceito que orientou a “re-denotação” do psíquico que subjaz à revolução psicanalítica.

[1] S. Freud, “Zur Vorgeschichte der analytischen Technik” (1920), in: A. Freud et al., eds., S. Freud Gesammelte Werke, Frankfurt am Main, Fischer, 1999 – ora em diante sempre referida como GW – vol. 12, p. 309-312.
[2] S. Freud, op. cit., in Salomão, J. (ed.), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago – ora em diante sempre referida como ESB – 1976, vol. 18, p. 317. O título na ‘edição-padrão’ brasileira (que, basicamente, é uma tradução feita, não a partir do alemão, mas, sim, da Standard Edition inglesa) é “Uma Nota sobre a Pré-História da Técnica de Análise”.
[3] “Eine schimpfliche Feigheit zu denken, hält uns alle zurück” ... “Aufrichtigkeit ist die Quelle der Genialität, und die Menschen wäre geistreicher, wenn sie sittlicher wären”: S. Freud, op. cit., in GW, vol. 12, p. 312; ESB, 1976, vol. 18, p. 317-18. Sempre que a tradução da ESB nos parecer pouco fiel ao original, ofereceremos uma alternativa de nossa lavra, dando em nota o original, sua referência bibliográfica e o lugar da ESB onde o trecho pode ser encontrado.
[4] ´Dieser Schriftsteller sei der erste gewesen, in diesen Schriften er sich vertieft habe”: S. Freud, op. cit., in GW, vol. 12, p. 312; ESB, 1976, vol. 18, p. 317.
[5] “Die Universität, die ich in 1873 bezog, brachte mir zunächst einige fühlbare Enttäuschungen. Vor allem traf mich die Zumutung, dab ich mich als minderwertig und nicht volkszugehörig fühlen sollte, weil ich Jude war. Das erstere lehnte ich mit aller entschiedenheit ab. Ich habe nie begriefen, warum ich meiner Abkunf, oder wie man zu sagen begann: Rasse, schämen sollte. Auf die mir verweigerte Volksgemeinschaft verzichtete ich ohne viel Bedauern. Ich meinte, dab sich für einen eifrigen Mitarbeiter ein Plätzchen innerhalb des Rahmens des Menschtums auch ohne solche Einreihung finden müssen“: S. Freud, “Selbstdarstellung” (1925/1924), in GW, vol. 14, p. 34-5; ESB, 1976, vol. 20, p. 19.
[6] P. Roazen, Freud e seus Discípulos, São Paulo, Cultrix, 1978, p. 98.
[7] Id., ibid..
[8] “die Psychoanalyse kein Spezialfach der Medizin ist. Ich sehe nicht wie man sich sträuben kann, das zu erkennen. Die Psychoanalyse ist ein Stück Psychologie, auch nicht medizinische Psychologie im alten Sinne oder Psychologie der krakhaften Vorgänge, sondern Psychologie schechtweg”: S. Freud, “Nachwort zur Frage der Laienanalyse“ (1927), in GW, vol. XIV, p. 289; ESB, 1976, vol. 20, p. 286. E mais: (a) “Psicanálise” ... uma ... “ciência especializada, um ramo da Psicologia” (“die Pschychoanalyse” ... “eine Spezialwissenschaft, ein Zweig der Psychologie”. S. Freud, “Neue Folgue der Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse” (1933/1932), in GW, vol. XV, p. 170; ESB, 1976, vol. 22, p. 194); (b) “A Psicanálise é uma parte da ciência mental da Psicologia” (“Die Psychoanalyse ist ein Stück der Seelenkunde der Psychologie”: S. Freud, “Some Elementary Lessons in Psychoanalysis”, 1940/1938, in GW., vol. 17, p. 142; ESB, 1975, vol. 23, p. 316); (c) “É também descrita como psicologia profunda” (“Mann nennt sie auch ‘Tiefenpsychologie”: id., ibid.)
[9] “gewib nicht das ganze der Psychologie, sondern ihr Unterbau, vielleich überhaupt ihr Fundament“: S. Freud, “Nachwort zur Frage der Laienanalyse“ (1927), in GW, vol. XIV, p. 289; ESB, 1976, vol. 20, p. 286-87.
[10] “zu einer Naturwissenschaften wie jede andere auszugestalen”: S. Freud, “Abriss der Psychoanalyse” (1940/1938), in GW, vol. 17, p. 80. A tradução da Imago é grotesca: “Nas ciências naturais, das quais a psicologia é uma delas” (ESB, 1976, vol. 20, p. 73).
[11] S. Freud, “Algumas Lições Elementares de Psicanálise” (1940/1938), in ESB, 1975, vol. 23, p. 320.
[12] J. S. Mill, A System of Logic, Londres, 1843, 2 vols..
[13] S. Freud, “Um Estudo Auto-biográfico” (1925/1924), in ESB, 1976, vol.20, p. 73;
[14] S. Freud, “Algumas Lições Elementares de Psicanálise” (1940/1938), in ESB, 1975, vol. 23, p. 316
[15] Id., ibid., p. 317-18
[16] G. Orwell, A Revolução dos Bichos (1945), Porto Alegre, Globo, 1975.
[17] “Alles, was man am Seelenleben beobachten kann, wird man gelegentlich als seelisches Phänomen bezeichnen. Es wird bald darauf ankommen, ob die einzelne seelische Äusserung direkt aus körperlichen, organischen, materiellen Einwirkungen hervorgegangen ist, in welchem Falle ihre Untersuchung nicht der Psychologie zufält, oder ob sie sich zunächst aus anderen seelischen Vorgängen ableitet, hinter denen dann irgendwo die Reihe der organischen Einwirkungen anfängt. Den letzteren Sachverhalt haben wir im Auge, wenn wir eine Erscheinung als einen seelischen Vorgang bezeichnen” (destaque nosso): S. Freud, Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse (1916-17/1915-17), in: GW, vol. XI, p. 55; ESB, 1976, vol. 15, p. 80. A tradução apresentada pela ESB do trecho por nós grifado no alemão, simplesmente inverte o sentido desse último – “ou se ele, em primeira instância, deriva de outros processos mentais, em alguma parte além daquela onde começa a série das influências orgânicas” – embora o inglês, normalmente seguido pela ESB, corresponda corretamente àquele: “or whether it is derived from other mental processes, somewhere behind which the series of organic influences begins.” (in J. Strachey, ed., The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud, Londres, Hogarth – doravante sempre referida como SE – 1971, vol. 15, p. 60-1).
[18] “La question reste de savoir pourquoi, dans toute son oeuvre, Freud n’évoque jamais Brentano. A notre avis, il y est bien présent, mais de façon anonyme”: S. Freud, Contribution à la Conception des Aphasies (1891), Paris, PUF, 1990, p. 27.
[19] “include an object intentionally within themselves”: R. M. Chisholm, “Brentano, Franz”, in P. Edwards, The Encyclopedia of Philosophy (8 vols.), Nova Iorque, Macmillan, 1967, vol. 1, p. 365.
[20] F. Brentano, Psychologie vom Empirischen Standpunkt, Viena, 1874.
[21] “The account of Franz Brentano’s riddles by Freud” ... “is so obscure that a further explanation is called for” (J. Strachey, “Apendix” a S. Freud, Jokes and their Relation to the Unconscious, in SE, 1960, vol. 8, p. 237; ESB, 1977, vol. 8, p. 267).
[22] “geistreiche Rache”: S. Freud, Der Witz und seine Beziehung zum Unbewubten (1905), in GW, vol. VI, p.32, n. 2; ESB, 1977, vol. 8, p. 46, n. 5.
[23] “According to Brentano” ... “intentionality is peculiar to psychological phenomena and thus provides a critenon by which the mental may be distinguished form the nonmental”: R. M. Chisholm, “Intentionality”, in P. Edwards, Op. cit., vol. 4, p. 203.
[24] “Verweilen wir noch einen Moment bei der Berhauptung, die Fehlleistungen seien “psychische Akte”. Enthält sie mehr als unsere sonstige Aussage, sie hätten einen Sinn? Ich glaube nicht”: S. Freud, Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse (1916-17/1915-17), in GW, vol. XI, p. 55; ESB, 1976, vol. 15, p. 79.
[25] ”wenn wir eine Erscheinung als einen seelischen Vorgang bezeichnen” ... “ist es zweckmässiger, unsere Aussage in die Form zu kleiden: die Erscheinung sei sinnreich, habe einen Sinn.”: Id., ibid.. A ESB (ibid., p. 80) – que, evidentemente, traduz do inglês e, não, do alemão – confunde “clothe” com “close” e, assim, faz o original “kleiden” equivaler absurdamente a “encerrar” ao invés de a “revestir”, “cunhar”.
[26] “Unter Sinn, verstehen wir Bedeutung, Absicht, Tendenz”: id., ibid.; ESB, 1976, vol. 15, p. 80. Não conseguimos nos convencer das razões aduzidas por Strachey (SE, 1971, vol. 15, p.60-1) – a quem a ESB (ibid., p. 80) acompanha – para traduzir o alemão “Tendenz” por “propósito” ao invés de por “tendência”.

SEGUNDA PARTE

Re-denotando I: O que não parece, mas é.

A “produção” do conceito de um psiquismo inconsciente (note-se que, à época de Freud , não se negava a existência de processos inconscientes que pudessem influenciar o comportamento humano, mas o consenso era considerar esses processos como “neurológicos”, jamais como “psicológicos”) ocorre em três passos:

PREMISSA CONCEITUAL (Brentano) Þ Mental é sinônimo de intencional;
DADO EMPÍRICO (Breuer) Þ Verificação, feita por Breuer durante o atendimento de Bertha Pappenheim, da ocorrência de fenômenos inconscientes apresentando intencionalidade;
CONCLUSÃO (Freud) Þ Ora, se existem intencões inconscientes (Breuer) e se “psicológico” é o mesmo que “intencional” (Brentano), então existe um inconsciente que não é meramente neurológico, é psicológico.

Como se vê, a proposta de um inconsciente psicológico é uma conclusão inescapável do encontro de uma determinada premissa definitória com um determinado conjunto de dados empíricos. Com efeito, a mente de Freud foi o cadinho alquímico em que o conceito de Brentano e a descobertas clínicas de Breuer se transmutaram no ouro da Psicanálise. E por meio de seu “trabalho diligente” com o “cripto-psíquico” – o psíquico escondido – o judeu vienense a quem relutaram dar espaço na universidade encontrou, como pretendia, seu merecido lugar – e nada pequeno! – nos “quadros da humanidade”.
É curioso, entretanto, como a importância prática e teórica do trabalho de Freud com o psiquismo inconsciente eclipsou dois outros pontos de sua produção intelectual – ambos sobre o não-psíquico – irrelevantes para a prática, mas de superior importância para a teoria. Esses dois pontos são os seguintes: (a) seus acertos com o não-psíquico consciente e (b) seus enganos com o não-psíquico inconsciente.

Re-denotando II: O que parece, mas não é.

O mais enaltecido trabalho metapsicológico de Freud, o capítulo VII de “A Interpretação dos Sonhos”, constrói o psicológico (na esteira do que já havia rascunhado em seu Projeto) a partir dos seguintes elementos:

· a representação-meta: engrama do “objeto de satisfação”;
· o desejo: força que pretende reativar tal engrama; e
· as facilitações: resíduos de experiências que sugerem caminhos preferenciais para que tal reativação ocorra.

Mutatis mutandis, são esses, segundo Ducasse, os elementos essenciais para que se possa afirmar a existência de intencionalidade, ou, mais elegantemente, de teleologia. Nas palavras desse autor, para que se afirme a existência dessa última, cumpre “que os seguintes elementos estejam presentes, ou sejam supostos estar presentes:

(1) Crença por quem executa um ato em uma lei” ... do tipo ... ‘se X ocorre, Y ocorre’;
(2) Desejo pelo executante de que Y ocorra;
(3) Causação conjunta, por aquele desejo e aquela crença, da execução de Y.”[1]

Ora, operando, embora sem nomeá-la, com a teleologia como a conotação do que seja psíquico, Freud, a certo passo do mencionado capítulo, expurga aquele do “pseudopsíquico”: o que “parece psíquico, mas não é”. Vemo-lo afirmar, na obra que acabamos de citar, que se, nos “processos cerebrais orgânicos destrutivos”[2], nos defrontarmos com idéias que fazem parte de uma “cadeia de associações fortuita”[3] (leia-se: “não determinada por processos intencionais”) – tais idéias não são objeto de investigação para a Psicanálise, pois que – entendemos isso agora – a partir da reconceituação que essa última operou sobre o conceito de “psíquico”, tais idéias, simplesmente, NÃO SÃO PSICOLÓGICAS. Assim:

PREMISSA (Brentano) Þ ‘Mental’ é sinônimo de intencional;
DADO AVENTADO (Freud) Þ É possível que, nos “processos orgânicos destrutivos”, haja fenômenos conscientes que não sejam intencionalmente determinados;
CONCLUSÃO (Freud) Þ Nesse caso, tais fenômenos, embora conscientes, não são mentais!

Se acatarmos esse raciocínio, passamos a ver o profundo sentido de os “processos cerebrais destrutivos” – capazes de produzir um consciente não psicológico! – serem classificados sob o nome de demências. O “de-mente” está perdendo a mente porque está perdendo a capacidade de operar de maneira intencional! Enfim, o conceito de psíquico importado de Brentano não apenas produziu, no pensamento de Freud, o conceito de INCONSCIENTE PSICOLÓGICO. Escondido nos recônditos de sua obra dormita, pouco reconhecida, uma segunda conseqüência inescapável – talvez ainda mais surpreendente – daquela importação: o conceito de CONSCIENTE NÃO PSICOLÓGICO! Parece psicológico, mas não é!
Tais considerações nos permitem decodificar a contorcida passagem freudiana de 1915-17, em que, essencialmente, Freud faz uma espantosa referência a “fenômenos mentais que apenas ocasionalmente podem ser designados como mentais, podendo sê-lo somente na medida em que derivam de outros processos mentais” (note-se, como observei em nota, que a tradução da ESB, que não estou utilizando aqui, agrava a confusão colocando “atrás” processos que, no original alemão, estão “na frente” e vice-versa)!!! Transcrevamos novamente o trecho, para facilitar seu re-exame:

“Tudo o que é observável na vida mental pode ocasionalmente ser designado como fenômeno mental. Cumpre, conseqüentemente saber se o fenômeno mental específico proveio diretamente de influências corporais, orgânicas e materiais — e, assim, sua investigação não fará parte da Psicologia — ou se ele deriva primariamente de outros processos mentais, em algum lugar por detrás dos quais se inicia, então, a série das influências orgânicas. É essa última situação que temos em vista quando designamos um fenômeno como processo mental.” (destaques nossos).

Reescrevamos o trecho, apoiados no que aprendemos até agora::
:
“Dentre todos os fenômenos usualmente denotados como mentais – percepções, idéias, lembranças, sentimentos, atos volitivos – apenas alguns, na verdade, correspondem à uma adequada conotação do que seja a mente. O critério conotativo que distingue o mental propriamente dito do pseudo-mental é que este último é a expressão direta de fatores físicos, químicos e biológicos operando de forma não teleológica, enquanto, no primeiro caso, esses mesmos fatores, a partir do inter-jogo de representações-meta, desejos e facilitações (estas deixadas como resíduos de experiências de aprendizagem), se organizam de forma teleológica, ou seja, intencional. É o fato de fazer parte de um processo intencional que atribui a um fenômeno o direito de ser designado como mental, permitindo-lhe aspirar legitimamente a ser objeto de investigação psicológica.”

A essência da revolução contida no trecho acima é a substituição, para fins de conotação do psicológico, de uma LÓGICA ÔNTICA por uma LÓGICA PROCESSUAL, ou seja: o fato de ser ou não psicológico deixa de depender da natureza do ente – espiritual, vivencial, anatômico, fisiológico, químico, físico, et reliqua – e passa a depender, isto sim, do fato de esse ente participar ou não de um determinado tipo de processo. Aqui está, pois, a essência da revolução patrocinada por Freud na Psicologia, a partir de um conceito aprendido com Brentano e dos dados empíricos que lhe forneceu Breuer:
UMA IDÉIA CONSCIENTE PODE NÃO SER PSICOLÓGICA, bastando, para isso, que não faça parte de uma cadeia de intencionalidade (cf. “de-mência”!) e UM NEURÔNIO PODE SER PSICOLÓGICO, bastando, para isso, que faça parte de um tal processo.
O que estamos expondo aqui é que a revolução oculta – mostrar que ser psicológico não depende da natureza do ente, mas da natureza do processo – contida na obra de Freud é ainda maior do que a revolução manifesta – revelar a existência de um psiquismo inconsciente – nela contida. Por ter ficado na sombra, aquela revolução gerou não só trechos ambíguos como o que vimos de re-escrever, gerou, na teoria psicanalítica, contradições internas, cujo deslinde tornaria sobremaneira mais sólidos seus fundamentos.

“Pure ‘Schlamperei’ !”

Quando, certa feita, Ernest Jones, o mais conhecido dos biógrafos de Freud, pediu-lhe esclarecimentos sobre uma frase de significado obscuro presente na obra desse, recebeu como resposta: “Pure ‘Schlamperei’!”[4] , ou seja, “pura besteira”! Ao que comenta:

“Aqui tocamos em uma de suas características fundamentais - seu mal-estar em ser obstruído ou estorvado. Ele gostava de se entregar livremente aos seus pensamentos, a fim de ver até onde o levariam, colocando de lado, neste processo, qualquer problema ligado a uma configuração precisa; essa poderia ser deixada a consideração posterior.”[5]

Como dizia o trecho de Pessoa com que encabeçamos este artigo: “Emissário de um rei desconhecido / Eu cumpro informes instruções do além / E as bruscas frases que aos meus lábios vêm / Soam-me a um outro e anômalo sentido”. Nada mais compreensível que alguém dominado por um processo criativo da dimensão do freudiano, preferisse deixar para depois a formulação mais precisa de suas idéias. Toda escolha, contudo, tem seus percalços e essa, certamente, tem dois, intimamente relacionados, quais sejam:

(1) A deficiente formalização da Psicanálise é um elemento nuclear de sua atual crise de credibilidade: de início, preconceitos relativos à sexualidade tentaram marginalizar a Psicanálise, fazendo Freud reviver, em relação a sua obra, a mesma sensação de injustiça que o acometera quando de sua entrada na universidade: “Sempre julguei grave injustiça que as pessoas se tenham recusado a tratar a psicanálise como qualquer outra ciência”[6]. Hoje, em um mundo que acolheu a sexualidade a ponto de não mais rejeitar a Psicanálise por haver ousado pensar sobre ela, a atual delonga dessa candidata ao panteão científico em formalizar adequadamente seus principais conceitos e hipóteses pode terminar tornando justa uma marginalização que já foi injusta. Rococós lingüisticos do tipo lacaniano são, por exemplo, tudo aquilo de que, no momento, não precisa a Psicanálise.
(2) Para, entre outras coisas, impedir que se concretize o temor freudiano de que “a terapia destrua a ciência”[7],a Psicanálise precisa ter a ter a coragem – invoquemos Börne! – de assumir de forma consciente, coerente e firme seu compromisso vacilante e oculto com a contribuição de Brentano.
A preferência freudiana, mencionada por Jones, de “deixar para depois” a formulação mais precisa de suas idéias salpicou a teoria psicanalítica de algumas significativas contradições. Algumas delas, a um melhor exame, mostram-se contradições aparentes, outras, assim examinadas, revelam-se, de fato, como Schlamperei. Vejamos.


[1] “that the following elements be present, or be supposed, by the speaker, to be present: (1) Belief by the performer of an act in a law” ... “if X occurs, Y occurs”, (2) Desire by the performer that Y shall occur, (3) causation by that desire and that belief jointly, of the performance of X”: C. J. Ducasse, “Explanation, Mechanism and Teleology”, in H. Feigl & Sellars, D. (eds.), Readings in Philosophical Analysis, Nova Iorque, Appleton-Century-Crofts, 1949, p. 543.
[2] S. Freud, A Interpretação dos Sonhos (1900/1899); ESB, 1972, vol. 5, p. 565.
[3] Id., ibid.
[4] E. Jones, Vida e Obra de Sigmund Freud (1961), Rio de Janeiro, Zahar, 1979, p. 66.
[5] Id., ibid..
[6] S. Freud, “Um estudo Auto-biográfico” (1925d/1924), in ESB, vol. 20, p. 74. Também: S.E., vol. 20, p. 58. O trecho não consta das GW nem da Studienausgabe. Segundo Strachey, o fragmento acima faz parte de um trecho acrescentado ao “Estudo” em 35, mas, por razão desconhecida – embora, a nosso ver, óbvia (excesso de proximidade do material recalcado: “Sempre achei uma grave injustiça que as pessoas se tenham recusado a tratar os judeus como as outras pessoas”) – não incluído nas demais edições alemãs.
[7] “ich will nur verhütet wissen, dass die Therapie die Wissenschaft erschlägt”: S. Freud, “Nachwort zur Frage der Laienanalyse “ (1927), in GW, vol. XIV, p. 291; ESB, 1976, vol. 20, p. 288-9.

TERCEIRA PARTE (FINAL)

As Contradições Aparentes (I): Psicologia e Metapsicologia.

A Metapsicologia é ou não uma Psicologia? Ouçamos Freud:

1898: “Parece-me que a teoria da realização de desejo trouxe apenas a solução psicológica, e não a biológica, ou melhor, metapsicológica.” (Note-se que, mesmo em suas edições “revisadas”, essa passagem freudiana está completamente adulterada na ESB, que consegue dar “metafísica”, no lugar de “metapsicológica”!) [1]
1924: “Deslizamos, inesperadamente, do econômico para o psicológico.”[2]

Como se sabe, “econômico”, para Freud, é uma dimensão do “metapsicológico” e, portanto, o que essas citações afirmam em conjunto é que, ao passar para o “psicológico”, saímos do “metapsicológico”, que tem natureza “biológica”. Tal posição é de todo contraditória com os passos seguintes –

1896: “A Psicologia – Metapsicologia, na verdade – ocupa-me sem cessar.”[3]
1898: “Aliás, quero perguntar-lhe seriamente se posso usar o nome de Metapsicologia para minha Psicologia que vai além da consciência”[4]
1924: “produzir uma Metapsicologia” ... “a meta mais avançada accessível à Psicologia”[5]

– nos quais a Metapsicologia corresponde ao nível mais avançado da especulação PSICOLÓGICA. O dilema, contudo, é apenas aparente. Há dois tipos de Psicologia: a SOFROLÓGICA, seja, que se dedica ao estudo dos conteúdos da consciência, e a TELEOLÓGICA, que se dedica ao estudo do intencional, acrescentando a seu escopo fenômenos que estão além dos – daí o prefixo meta – limites daquela. A Metapsicologia – embora biológica – não deixa de ser psicológica, porque, como já vimos, ser psicológico não depende da natureza do ente e, sim, da natureza do processo; quando fazemos Metapsicologia, na verdade, saímos de um tipo de Psicologia (o que identifica o psicológico com o consciente) para realizar o que de mais avançado pode fazer outro (o que identifica o psicológico com o intencional) . Segundo essa análise, a citada frase “A Psicologia – Metapsicologia, na verdade – ocupa-me sem cessar” poderia ser reescrita da seguinte forma: “o estudo dos processos intencionais humanos, para além (= meta) dos fenômenos conscientes (= psicológicos, no sentido pré-psicanalítico), ocupa-me sem cessar”. Como se vê, “metapsicologia”, um dos principais conceitos do arsenal teórico da Psicanálise, emprega o termo “psicologia” em um sentido pré-psicanalítico!

As Contradições Aparentes (II): Metapsicologia, Psicologia, Psicanálise e ciências naturais.

Evidente que, se o alvo de minhas indagações são os processos intencionais e se apenas parte deles se manifesta sob forma de vivências, impõe-se imediatamente a seguinte pergunta: sob que forma o intencional (= psicológico) existe, quando não está existindo sob forma de vivências, ou seja, de forma consciente?
Só há três tipos de posturas possíveis frente a essa questão, embora, naturalmente, com variações infinitas:

(1) Desinteressar-se de fazer hipóteses sobre a natureza desse “algo” sempre existente que compõem as cadeias de intencionalidade e que, apenas em certos momentos, existe sob a forma de conteúdos de consciência, discursando sobre eles, por exemplo, da seguinte forma: aquele “algo” – cuja natureza não me importa – e que, se consciente, apareceria como um pensamento; aquele “algo” – cuja natureza não me importa – e que, se consciente, apareceria como um desejo; aquele “algo” – cuja natureza não me importa – e que, se consciente, apareceria como uma emoção etc., etc.;
(2) Interessar-se em fazer hipóteses sobre a natureza desse algo, entendendo que, quando não se expressa de forma consciente, ele existe numa dimensão
(a) material, sob a forma de neurônios, sinapses, energias físicas, químicas e quejandos;
(b) espiritual, sob a forma de “enteléquias”, “númenos” e quejandos.

Freud, sabidamente, optou por 2a, embora, após a frenética tentativa de 1895[6], tenha desistido de detalhar tais hipóteses, afirmando que: “o tempo para tais asserções teóricas ainda não havia chegado.”[7] Provisoriamente, contentou-se com enunciar proposições do tipo exemplificado em (1), acima, esperando que os que o seguiriam, certamente aparelhados pelos avanços da Neurologia, teriam mais condições de prover a Psicanálise das hipóteses de que ele, sabiamente, se abstivera de continuar a produzir. Esta é uma das razões pelas quais Freud repetidamente classificou a Psicologia – de que a Psicanálise seria, como vimos, um subconjunto – entre as ciências naturais[8] [9] [10]. Entretanto, após cantar em prosa e verso a condição de ciência natural que atribuía à Psicologia e à Psicanálise, como entender a seguinte afirmação, feita em 32?[11] “Estritamente falando, só há duas ciências: psicologia, pura ou aplicada, e ciência natural.”[12]? Vemos três alternativas:

Primeira: Uma real hesitação em relação à Psicologia – e, conseqüentemente, a Psicanálise – serem, de fato, ciências naturais. Comentário: alternativa pouco provável. Depois disso, reafirmou duas vezes, em 38[13] e em 39[14], sua posição favorita; além disso, uma hesitação de tal ordem dificilmente passaria sem algum comentário que a reconhecesse como tal; mais: não há nenhum traço, no restante da obra, para sustentar tal hesitação. Descartamos a hipótese.
Segunda: Pure Schlamperei. Comentário: seria um desses casos em que uma produção descuidada de idéias, quase como em um processo de associação livre, havia produzido uma afirmação do tipo daquelas que, segundo o entendimento do próprio Freud, não mereceriam ser levadas a sério? Optaríamos por essa hipótese, se não houvesse outra, mais tentadora.
Terceira: Ser a expressão, mais uma vez imprecisa, do impacto do pensamento de Brentano sobre o pensamento de Freud. Comentário: Brentano, levado às derradeiras conseqüências, chega a von Bertalanffy. Freud está a meio caminho. Expliquemo-nos: a Teoria Geral de Sistemas[15] de von Bertalanffy tem essa denominação de “geral” exatamente porque teoriza sobre os sistemas – que ele define como ”complexos de elementos em interação” – sem ocupar-se da natureza dos entes que o compõem. Divide, por exemplo, os sistemas em teleológicos e não teleológicos, afirmando que eles tem características que lhes são inerentes, independentemente de serem compostos de entes abstratos ou concretos, materiais ou espirituais, lingüisticos ou não lingüísticos, e assim por diante. Se juntamos Brentano a Bertalanffy, podemos chegar a uma nova classificação das ciências, a qual

(1) não depende da natureza dos entes estudados, mas, sim, do tipo de sistema em que estão inseridos.
(2) chamaria de psicológicas as ciências voltadas ao estudo dos sistemas teleológicos e, de não psicológicas as voltadas sobre os sistemas não teleológicos;

In dubio pro reo. É tentador entender que, em vez de hesitação ou Schlamperei, é na direção dessa síntese genial que aponta essa aparente contradição de Freud. Com efeito, lembrando a críptica passagem de 1915, um desmaio epiléptico é “mais natural” do que um desmaio de natureza histérica, pois o primeiro é fruto da influência de fatores materiais – físicos, químicos, biológicos – operando de maneira direta, livre de considerações de intencionalidade, enquanto, neste último, a operação daqueles fatores se subordina a tais considerações. Todos os neurônios são naturais, mas o neurônio que participa da formação do sintoma epiléptico (mais “natural”) é objeto de estudo da Neurologia pura, enquanto o neurônio que participa da formação do sintoma histérico (menos “natural’, devido à interferência da intencionalidade) é objeto de estudo das ciências “psi” – Psiconeurologia, Psiquiatria, Psicologia, Psicanálise. Mais uma vez, a contradição é aparente e voltamos a Orwell: todas as ciências são naturais, mas umas, indiscutivelmente, são “mais naturais” do que outras.

As Contradições Reais (I): Metapsicologia, Psicanálise Teórica e Consciência.

Vimos como é possível dissolver aparentes contradições do discurso freudiano – ser ou não a Metapsicologia uma Psicologia, ser ou não a Psicologia uma ciência natural – a partir do resgate da conotação de psíquico com que opera. De maneira diversa, havíamos sustentado, anteriormente, que a adesão freudiana à posição de Lipps[16] – “o psíquico é em si mesmo inconsciente e que o inconsciente é o verdadeiro psíquico”[17] – era absolutamente inconciliável com a lógica de toda a sua obra, uma vez reconhecida aquela conotação. Com efeito, como acentuamos anteriormente um traço mnêmico inconsciente, por exemplo, pode não estar participando de um processo teleológico e, se não está, não pode, para que se mantenha a indispensável coerência conceitual, ser considerado psicológico. Na verdade, ser inconsciente é um critério tão ruim para definir o mental quanto ser consciente. A lógica mais profunda da Psicanálise, como já vimos, exige que critérios baseados na natureza dos entes sejam substituídos por critérios baseados na natureza dos processos. Freud preocupava-se em distinguir a Psicanálise enquanto prática clínica da Psicanálise enquanto pratica teórica: “Embora originalmente designasse um determinado procedimento terapêutico, tornou-se também agora o nome de uma ciência”.[18] E já mencionamos sua preocupação de evitar que a primeira engolfasse a segunda. Lamentavelmente, em sua própria definição da Psicanálise enquanto teoria, ele permitiu que isso ocorresse. A Metapsicologia, para Freud – e sempre sustentou com coerência essa posição – era sinônimo de Psicanálise Teórica, definindo ambas de modo idêntico: “a psicologia do inconsciente” (definição de Metapsicologia dada em 1901[19]) e “a ciência” ... “do mental inconsciente” (definição de Psicanálise Teórica dada em 1924[20]). Definições, reconheçamos, totalmente incompatíveis com (1) a lógica de sua produção teórica e (2) a prática dessa produção. Aqui, não há conciliação possível. Vejamos:
No que diz respeito à lógica, já vimos que a Metapsicologia e a Psicanálise Teórica devem ser definidas como “a(s) ciência(s) dos processos intencionais” – conscientes ou inconscientes – com o possível adendo “nos seres humanos”[21]. No que diz respeito à prática teórica vemos que ela também não aceita que o objeto da Metapsicologia se limite à investigação do inconsciente. Considere-se esta passagem: “subitamente irrompeu um turbilhão de idéias” ... “depois de uma longa pausa, de conteúdo tão significativo que fiquei ao primeiro instante ofuscado. Tratava-se nada menos que da metapsicologia da consciência.”[22] (destaque nosso). Com efeito, nesse trecho de uma carta endereçada a Ferenczi, aos 11 de janeiro de 1915, Freud está fazendo referência aos sete ensaios metapsicológicos perdidos, um dos quais – pasmem os que se deixaram enganar pela afirmação freudiana de que a Metapsicologia é a “ciência do mental inconsciente” – tinha a consciência por matéria e título! A necessidade dessa praxis está explicita no famoso capítulo VII (metapsicológico!) de A Interpretação dos Sonhos: “Teremos, dentro em pouco, que esclarecer (metapsicologicamente, é claro!) nossas suposições a respeito da natureza e função da consciência.”[23]
Como conciliar uma Metapsicologia da Consciência com a afirmação de que a Metapsicologia – e a Psicanálise Teórica em sua esteira – é a “Psicologia do Inconsciente”? A resposta é simples: não há conciliação possível. Estamos diante de legítima Schlamperei, que, certamente derivada das dificuldades de Freud em assumir seus débitos intelectuais para com Brentano[24], permite, num paradoxo psicanaliticamente compreensível, que se realize seu confessado temor: o engolfamento da Psicanálise Teórica pela Psicanálise clínica, onde, mui justificadamente, o inconsciente reina, soberano...

As Contradições Reais (II): Para além da Psicanálise...

Freud, ao adotar, ainda que de forma vacilante, a definição de Brentano, funda uma nova Psicologia, que, enriquecidos por Bertalanffy, podemos definir como “a ciência dos sistemas teleológicos”, independentemente da natureza dos entes que compõem tais sistemas. Sobre se o campo dessa nova Psicologia coincide com o da Psicanálise Teórica ou ultrapassa esse último, Freud faz, afirmações contraditórias, a nosso ver inconciliáveis: “O domínio de aplicação da Psicanálise é tão abrangente quanto o da Psicologia”[25] (em 1924; destaque nosso); “Certamente não é o todo da Psicologia, mas sua sub-estrutura e talvez, acima de tudo, o seu fundamento”[26] (Em 1927; destaque nosso).
Note-se que a atribuição de intencionalidade a um ser tem repercussões políticas: implica a possibilidade de sua autonomia , e, portanto, de postular o direito de reger-se segundo suas próprias regras. Isso explica por que os senhores de escravos sempre revelaram preferência pela teoria de que esses últimos não tinham “alma” (“psyché”) e, no Ocidente, os negros só adquiriram direito inconteste a uma com a abolição da escravatura; o desenvolvimento de um ramo da Psicologia dedicado ao estudo dos animais, acompanhou a difusão do reconhecimento dos direitos desses últimos, e o reconhecimento de um psiquismo vegetal, coincidiu com uma crescente consciência ecológica. Para complicar o quadro, a produção de computadores ativou, a partir dos anos 60[27] [28] [29], um debate sobre a possibilidade, ou não, de aceitarmos a existência de um psiquismo inanimado. E, não há dúvida, os mecanismos de feedback existentes em um simples termostato estabelecem estados preferidos, representando uma forma primitiva de intencionalidade.
Vale, no que diz respeito a este item, abordarmos uma última questão. Sabemos, por exemplo, o que são a respiração e a digestão e o sabê-lo nos permite delimitar, em determinados sistemas orgânicos, a presença de aparelhos digestivos e aparelhos respiratórios, complexos subsistemas especializados na função de respirar e digerir, os quais são capazes de, digamos assim, “exportar” os resultados de seu funcionamento para o restante do organismo. Saber o que é respiração e o que é digestão também permite, além disso, reconhecer a presença desses processos mesmo no interior de uma simples célula. Mutatis mutandis, possuirmos uma definição precisa do que é “psicar” não só nos faculta determinar com clareza o que é um aparelho (ou sistema) psíquico e como se diferencia, por exemplo, de um aparelho (ou sistema) neurológico, mas nos permitie verificar a presença de “psicação” também fora do aparelho psíquico, como verificamos a da respiração e da digestão fora dos aparelhos digestivos e respiratório. Com efeito, um DNA em operação, por exemplo, é um verdadeiro psiquismo, impondo metas preferíveis ao desenvolvimento de um organismo e “reforçando” as alterações que favorecem o preenchimento daquelas metas, enquanto “pune” as que não as favorecem.
A expansão do campo de estudos psicológicos a que somos inevitavelmente levados pela definição de Brentano força-nos, no que diz respeito à contradição real que acabamos de apontar entre as proposições freudianas sobre as relações da Psicanálise com a Psicologia, a optar, de maneira igualmente inelutável, pela posição sustentada em 27: a Psicanálise, ao redefinir o psíquico, pode ter dado fundamento à Psicologia científica[30], mas seu domínio de aplicação é menos abrangente que o desta última.

Considerações Finais: Sobre o “inanimado anímico”

Dissemos, em nossa primeira nota, que empregaríamos de forma sinonímica os termos “mental”, “psíquico”, “psicológico” e “anímico”, mas vimos, ao longo de nosso trabalho, evitando coerentemente o emprego deste último e tomando silenciosamente partido, dessa forma, na polêmica criada entre seus tradutores pelo fato de Freud haver considerado a palavra alemã “Seele” como tradução adequada para o grego “Psyché”. No estrangeiro, vozes do calado da de Bettelheim[31] e da de Laplanche[32] voltaram-se contra a postura de Strachey[33], seguida pela ESB, que, por razões várias, negou-se a verter “Seele” e seus cognatos “Seelen-“ e “Seelish” por “alma” e seu derivado “anímico”. Entre nós, Kemper[34] alinha-se com os dois primeiros, Bettelheim e Laplanche, enquanto Hanns[35] opta, feitas as adaptações relativas a nossa língua, pela lógica de Strachey, evitando “alma” e “anímico” e justificando: “Em português “alma” é um termo com grande carga mística e literária”[36]. Místico e literário era bem o que Freud não pretendia ser e embora, por alinhados com Hanns, tenhamos igualmente evitado “alma” e “anímico”, introduzimos, no item anterior, a expressão “psiquismo inanimado”, outro cognato de “alma”, e não sem propósito. Queríamos ressaltar o fato de que a intencionalidade, ao tornar inteligível a possibilidade existência de um psiquismo inorgânico, tornaria logicamente possíveis expressões etimologicamente paradoxais como, por exemplo – “inanimado anímico” – o que, convenhamos ainda soa bastante intragável.
Estas “considerações finais” põem mais uma vez a nu o quanto estamos longe de poder absorver todas as conseqüências de assumir, como Freud, o conceito brentaniano de intencionalidade para separar o psicológico do não psicológico.

[1] “Es scheint mir, als ob mit der Theorie der Wunscherfüllung nur die psychologische Lösung gegeben wäre, nicht die biologische, oder besser, metapsychische.”: J. M. Masson (ed.). Sigmund Freud Briefe an Wilhelm Fliess 1887-1904, Frankfurt am Main, Fisher, 1986, p.. 329; ESB, 1977, vol. 1, p. 369. A compilação da correspondência completa entre Freud e Fliess feita por Masson e publicada pela mesma Imago, não repete o deplorável erro da ESB: “Parece-me que a teoria da realização de desejos trouxe apenas a solução psicológica, e não a biológica – ou melhor, metapsíquica.” (J. M. Masson, ed., A Correspondência Completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess, Rio de Janeiro, Imago, 1986, p. 302). A GW. e a Studien não trazem o texto.
[2] “Wir sind unversehens aus dem Ökonomischen ins Psychologische hinübergeglietten”: Die Zukunft einer Illusion (1927), in GW, vol. 14, p. 330; ESB, 1974, vol. 21, p. 21.
[3] “Die Psychologie – Metapsychologie eigentlich – beschäftigt mich unausgesetzt.”: J. M. Masson, op. cit., p. 181. As GW, os Studien, a SE, e a ESB não trazem o texto.
[4] “Ich werde Dich übrigens ernsthaft fragen, ob ich für meine hinter das Bewubtsein führende Psychologie den Namen Metapsychologie grebrauchen darf.”: J. M. Masson (ed.), op. cit., p. 329.
[5] “das äuberste Ziel, das der Psychologie erreichbar ist”: S. Freud, “Selbstdarstellung” (1925/1924), GW, vol. 14, p. 85; ESB, 1976, vol. 20, p. 74. Um comentário sobre nossa tradução: no original, o termo “äuberste” (corretamente dada por Strachey – SE, 1971, v0l. 20, p. 59 – como “furthest” e que também estaria bem representada por “ultimate”) eqüivaleria, de forma mais literal, a “mais distante”, mas essa expressão esvazia a carga metafórica contida no original. Uma alternativa razoável à tradução por nós proposta seria, talvez: “A mais ambiciosa meta accessível à Psicologia”. A Imago tentou sair-se com “a maior meta que a psicologia poderia alcançar”, o que, obviamente, não satisfaz.
[6] M. Bonaparte et al., Aus den Anfangen der Psychoanalyse, Londres, Imago, 1950; ESB, 1977, vol. 1, p. 379-517.
[7] “denn die Zeit für solche teoretische Festlegung war noch nicht gekommen”: S. Freud, “Selbstdarstellung” (1925/1924), GW, vol. 14, p. 85; ESB, 1976, vol. 20, p. 75;.
[8] “Nas ciências naturais, de que faz parte a Psicologia” (“In den Naturwissenschaften, zu denen die Psychologie gehört”; id., ibid., p. 84; ESB, 1976, vol. 20, p. 73).
[9] “A Psicologia é também uma ciência natural” (“Die Psychologie ist auch eine Naturwissenschaft.”: S. Freud, “Some Elementary Lessons in Psychoanalysis” (1940/1938), in GW., vol. 17, p. 143; ESB, 1975, vol. 23, p. 317).
[10] “estabelecer-se, como outras, como uma ciência natural” (die Psychologie zu einer Naturwissenschaft wie jede andere auszugestalten.”; S. Freud, Abriss der Psychoanalyse (1940a/1939), in GW, vol.17, p. 80; ESB, 1975, vol. 23, p. 183.
[11] O debate que se seguiu sobre o cabimento ou não de Freud colocar a Psicanálise entre as ciências naturais, desejando para esta uma “âncora somatobiológica” (Cf. Grubrich-Simitis, “Metapsicologia e Metabiologia”, ensaio complementar apenso a S. Freud, Neuroses de Transferência: uma síntese (manuscrito recém-descoberto), Rio de Janeiro, Imago, 1987, p. 116) produziu, a nosso ver, mais calor do que luz. A disputa entre vitalistas – que consideravam impossível a síntese do orgânico a partir do inorgânico – e não-vitalistas – que esposavam a posição oposta – não foi resolvida por doutos argumentos epistemológicos (do tipo, aliás, que Kant chamava de “razão ociosa”) mas porque Wöhler – que não ficara esperando a conclusão do debate – descobriu, em 1828, a síntese química da uréia – calando a todos. O mesmo acontecerá com a Psicanálise: o tempo, não discussões de gabinete, dirá se os desenvolvimentos atuais – mapeamento cerebral, etc. – e futuros da Neurologia contribuirão, como esperava Freud, ou não para o enriquecimento e refinamento de suas hipóteses.
[12] S. Freud, Novas Confer6encias Introdutórias sobre Psicanálise (1933/1932), in ESB, 1976, vol. 22, p. 218.
[13] S. Freud, “Some Elementary Lessons in Psychoanalysis” (1940/1938), in GW., vol. 17, p. 143; ESB, 1975, vol. 23, p. 317.
[14] S. Freud, Abriss der Psychoanalyse (1940a/1939), in GW, vol.17, p. 80; ESB, 1975, vol. 23, p. 183.
[15] L. von Bertalanffy, “General System Theory”, General Systems, New York, 1956, vol. 1, p. 25-43.
[16] O primeiro contato de Freud com as idéias do psicólogo alemão Theodor Lipps (1851-1914), parece ter sido em 1897. Lipps é por vezes grupado juntamente com Franz Brentano, Alexius Meinong e Ernst Mach por enfatizar a “atividade” da mente mais que seus “conteúdos”. Meinong também foi aluno de Brentano.
[17] S. Freud, “Algumas Lições Elementares de Psicanálise” (1940/1938); in ESB, 1975, vol. 23, p. 321.
[18] “Ursprünglich die Bezeichnung eines bestimmten terapeutischen Verfahrens, ist es jetzt auch der Name einer Wissenschaft geworden”: S. Freud, “Selbstdarstellung” (1925/1924), GW, vol. 14, p. 96; ESB, 1976, vol. 20, p. 87. A ESB, mais uma vez, acompanha Strachey (SE, 1971, vol. 20, p. 70), ao traduzir “Verfahrens” (= procedimento, técnica) por “método”, abrindo espaço para incontáveis confusões epistemológicas.
[19] S. Freud, “A Psicopatologia da Vida Cotidiana” (1901), in ESB, 1976, vol. 6, p. 309. O destaque é do original.
[20] “einer Wissenschaft” ... “der vom Unbewubt-Seelischen”: S. Freud, “Selbstdarstellung” (1925/1924), GW, vol. 14, p. 96; ESB, 1976, vol. 20, p. 87.
[21] As limitações a serem impostas a essa definição serão discutidas no item que aborda as coincidências, ou não, entre os campos, de um lado, da Psicologia e, de outro, da Psicanálise Teórica e da Metapsicologia.
[22] S. Freud, Neuroses de Transferência: uma síntese (manuscrito recém-descoberto), Rio de Janeiro, Imago, 1987, p. 88. No original em português, está “erupção”, ao invés de “turbilhão”, que preferimos empregar por razões de eufonia.
[23] “Unsere Annahmen über die Natur und Leistung des Bewusstseins werden wir ein wenig später klarlegen müssen.”: Traumdeutung, in GW, vol. II/III, p. 599; ESB, 1972, vol. 5, -p. 632.
[24] Não apenas, como vimos, com Brentano. Kuhn reconhece que, em Freud, “o fato de calar-se sobre fontes essenciais” (“Le fait de taire des sources essentielles”, in R. Kuhn, op. cit., p. 27) não se aplica apenas às contribuições daquele.
[25] “Das Anwendungsgebiet der Psychoanalyse reicht ebensoweit wie das der Psychologie”: S. Freud, “Selbstdarstellung” (1925/1924), GW, vol. 14, p. 96; ESB, 1976, vol. 20, p. 87. A ESB distorce totalmente o significado original, veja-se: “A esfera de aplicação da psicanálise estende-se até à da Psicologia” (destaque nosso).
[26] “gewib nicht das ganze der Psychologie, sondern ihr Unterbau, vielleicht überhaupt ihr Fundament“: S. Freud, “Nachwort zur Frage der Laienanalyse “ (1927), in GW, vol. 14, p. 289; ESB, 1976, vol. XX, p. 286-7.
[27] P. Ziff, “The Feelings of Robots”, Analysis, vol. 19, New York, 1959.
[28] A. C. Danto, “On Consciousness in Machines”, in S. Hook (ed.), Dimensions of the Mind, New York, New York University Press, 1960.
[29] R. Lachman, “Machines, Brains and Models”, in S. Hook, op. cit.
[30] O criador da Psicanálise tinha perfeita ciência de que a escolha de um conceito é em grande parte arbitrária, estando subordinada ao tipo de uso que se pretende fazer dele. Ora, frente à ambição de explicar o mais amplamente que possível o humano, a equivalência entre “psíquico” e “consciente” – por deixar de fora do espaço explicativo da Psicologia fenômenos como os sintomas psiconeuróticos, os sonhos e as parapraxes – muito mais do que errada, era inconveniente: “a equivalência convencional entre o psíquico e o consciente é totalmente inconveniente” (“die Konventionelle Gleischstellung des Psychischen mit dem Bewubsten ist durchaus unzweckmäbig”: S. Freud, “Das Unbewubte”, in GW, vol. X, p. 266. A ESB – 1974, vol. 14, p. 193 – traduz o alemão “unzweckmässig” e o inglês “inexpedient” – SE., 1971, vol. 14, p. 167-8 – por “inadequada”, fazendo que se perca a especificidade implicada por “inconveniente”). A opção pela identidade “mental = teleológico” torna-se, ao contrário, extraordinariamente conveniente, passando a acrescentar ao território da Psicologia que ela redefine o estudo e a explicação daqueles fenômenos.
[31] B. Bettelheim, Freud e a Alma Humana (1982), São Paulo, Cultrix, 1987.
[32] J. Laplanche, Traduire Freud, Paris, PUF, 1989.
[33] J. Strachey, op. cit., passim.
[34] J. Kemper, Standard Freud, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1997.
[35] L. Hanns, Dicionário Comentado do Alemão de Freud, Rio de Janeiro, Imago, 1996.
[36] Id., ibid., p. 335.

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