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MOÇÕES PULSIONAIS: CONCEITO E VICISSITUDES

PULSÃO : CONCEITO E VICISSITUDES.

A despeito da polissemia que a maior parte dos termos técnicos e teóricos assume sob a pena de Freud, neste trabalho atribui-se a cada um dos significantes enfocados apenas um significado: aquele que melhor me parece contribuir para a compreensão geral da obra. No desenvolver de seus estudos, cada um terá ampla oportunidade de questionar-se sobre a adequação dessas escolhas.

Pulsão, ação específica e fonte da pulsão

A pulsão [ = Trieb ] é um processo energético que, originado no soma pelo conjunto de alterações físico-químicas postas em ação pela presença de uma necessidade, penetra no aparelho psíquico com o objetivo primordial de patrocinar uma ação capaz de satisfazer essa necessidade, pondo fim àquele processo até que essa ou outra necessidade novamente se instale.
O mencionado conjunto de alterações físico-químicas denomina-se fonte da pulsão [ = Triebquelle ] e à ação capaz de satisfazer a necessidade de ação específica [ = spezifische Aktion ].

Moção pulsional: pressão, meta e objeto.

Quando a energia pulsional penetra o aparelho psíquico, gera nele uma tendência a produzir trabalho que merece o nome de moção pulsional [ = Triebregung ]. Essa moção pulsional apresenta uma pressão [ = Drang ], diretamente proporcional à intensidade de tal tendência; uma meta [ = Ziel ], equivalente ao tipo de ação a ser executado e um objeto [ = Objekt ], seja, o ente que é complemento direto dessa ação. Freud faz questão de acentuar que, posto ser impossível para o aparelho psíquico separar-se do soma, a pressão [ = Drang ] exercida sobre aquele pela moção pulsional [ = Triebregung ] não pode ser eliminada mediante a fuga, mas somente por meio da ação específica. É fundamental acrescentar que o principal indicador da gradual transformação filogenética de instinto em pulsão é a maior liberdade dessa última no sentido de variar suas metas e objetos.
Frente a essas definições, fica sem fundamento a afirmação do Vocabulário, de que, no entender freudiano, “a moção pulsional situa-se ... ao mesmo nível da pulsão” . Tal proposta só pode ter origem em trechos da obra como o que em seguida transcrevo (na versão da ESB), em que Freud, com seu estilo tantas vezes relaxado, emprega a palavra ‘pulsão’ ( =Trieb) onde toda a lógica de seu pensamento exigiria que tivesse empregado ‘moção pulsional’ ( = Triebregung) :

“Se agora nos dedicarmos a considerar a vida mental de um ponto de vista biológico, um ‘instinto’ [ = Trieb = pulsão ] nos aparecerá como sendo um conceito situado na fronteira entre o mental e o somático, como o representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo e alcançam a mente, como uma medida da exigência feita à mente no sentido de trabalhar em conseqüência de sua ligação com o corpo.” (Os Instintos e suas Vicissitudes. ESB, vol. XIV, pág. 142)

Evidente que o fato de, tanto a ESB quanto a SE, terem, respectivamente, traduzido o já mal empregado Trieb pelos ainda menos indicados ‘instinto’ e ‘instinct’, consegue acrescer em dificuldade a boa compreensão do original . O título de As Pulsões e suas Vicissitudes passaria a veicular melhor a que vem o artigo que encabeça, fosse traduzido como, por exemplo, Moções Pulsionais e seus Destinos” .

As quatro vicissitudes das moções pulsionais

Freud, quando se decide a explicitar a razão pela qual optou por redefinir o conceito de psíquico, afirma tê-lo feito em vista da falta de praticidade teórica de se equacionar o psíquico com o consciente. Essa ‘falta de praticidade’ consistia em que o novo conceito de psicológico abria espaço para a construção de um explanans teórico capaz de incluir como seu um explanadum muito mais amplo – comportamentos saudáveis, sintomas psiconeuróticos, parapraxes, produtos culturais etc – do que permitia o conceito anterior.
Quando categoriza apenas quatro operações psicológicas como vicissitudes das moções pulsionais, é ele, Freud, todavia, que peca por falta de praticidade conceitual. Com efeito, os processos – investimentos, desinvestimentos e contra-investimentos de representantes topográficos – que subjazem às quatro operações por ele privilegiadas – recalque , sublimação, transformação em seu contrário e retorno sobre a própria pessoa – são essencialmente os mesmos que subjazem a outros fenômenos como a execução da ação específica, o deslocamento, a projeção, a conversão, o isolamento, a formação reativa, a anulação retroativa etc.. Em outras palavras: Freud está propondo – como se fizera anteriormente a ele com o conceito de psíquico – um conceito excessivamente estreito de ‘vicissitude’, que faz menos, explicativamente, do que poderia fazer.
Para que possa dar o melhor de si, o conceito de ‘vicissitude’ deve ser mais abrangente, compreendendo um explanandum referente a “toda e qualquer alteração sofrida pela moção pulsional em seus caminhos no interior do aparelho psíquico”. Conseqüentemente, as quatro ‘vicissitudes pulsionais’ apontadas por Freud, serão abordadas aqui dentro de um quadro mais amplo, onde podem encontrar também seu lugar outros mecanismos, como os já mencionados deslocamento, conversão, formação reativa etc..
Antes, todavia, de avançarmos com esse enfoque, cumpre que estejamos municiados de (1) uma crítica metateórica e de (2) alguns comentários sobre os conceitos de ‘representante’ (= Repräsentanz, Repräsentant) e de ‘representação’ (= Vorstellung).

A crítica metateórica

‘Metateoria’ é o conjunto de parâmetros a que nos propomos a coerentemente obedecer ao longo da construção de uma determinada teoria. No sentido mais estrito – e mais útil – do termo ‘positivismo’, é positivista uma teoria – como, por exemplo, o behaviourismo clássico – que, por exigência de sua metateoria, trabalha apenas com DADOS PASSÍVEIS DE SEREM DIRETAMENTE OBSERVADOS. Nesse sentido, portanto, a Psicanálise é tudo, menos positivista. Com efeito, entidades observacionais, em Psicanálise, fazem necessariamente parte de seu explanandum (= o que deve ser explicado), nunca de seu explanans (= o que explica) e toda vez que Freud se furtou a obedecer a exigência metateórica de que seus conceitos explicativos (=explanans) não pertencessem ao observável, criou dificuldades insuperáveis para sua teoria. Fez isso principalmente no que diz respeito aos conceitos – merecedores da dignidade de explanans ( = o que explica, não o que é explicado) – de:

• sexualidade, em que ele justifica separar essa última das intenções de reprodução mediante argumentos positivistas (stricto sensu) como o de que, se reconhecemos a relação anal como sexual, visto não existirem ovários nos intestinos, o conceito de sexualidade não pode se vincular ao de reprodução [argh!];
• narcisismo, onde o inventor da Psicanálise associa esse – claramente referido a se, dentro do aparelho psíquico, os investimentos pulsionais estão sendo feitos sobre representantes topográficos pertencentes ao eu ou ao outro – ao autoerotismo, comportamento observável perfeitamente compatível tanto com o narcisismo quanto com a relação chamada de objetal
• sublimação, processo que, tendo sido arrolado explicitamente como uma das ‘vicissitudes’ das moções pulsionais, nos interessa particularmente aqui e que, portanto, discutiremos em separado.

Os resultados da aplicação desse enfoque paradoxalmente positivista a esses conceitos que se pretendem psicanalíticos são de dois tipos: quanto às teorias da sexualidade e do narcisismo (e a do ‘apoio’, sobre que não nos estenderemos aqui, associada a ambas), elas se tornam um poço de vacilações e contradições. Quanto à da sublimação, seu desenvolvimento é remetido à jamais: Freud deixou para sempre descumpridas suas promessas de esclarecê-la e ninguém depois dele satisfatoriamente o fez. Como reconhece o Vocabulário, “a ausência de uma teoria coerente da sublimação permanece sendo uma das lacunas do pensamento psicanalítico”. Quanto à da sexualidade, a Psicanálise continua à reboco da idéia estupidamente positivista de que, como não há ovários nos intestinos, uma relação anal nada tem a ver com a idéia de reprodução. É pobre demais – não? – para uma teoria cujo explanans se assenta, não sobre fatos observáveis, mas sobre o conceito de “realidade psíquica”. A Psicanálise não reconheceu a fantasia de que crianças são paridas pelo ânus? Então, por que não reconhecer a fantasia de que as mulheres são emprenhadas por ele? E se a reconhece, como pode afirmar que uma relação anal está “desvinculada dos fins de reprodução”? Ficaria bem para Watson e para Skinner; não fica bem para Freud...

Representantes e representações

A pulsão penetra no aparelho psíquico, transformando-se em moção pulsional (ou pulsiva), mediante três tipos de representantes:

• Representantes Materiais (chamados por Freud de ‘topográficos’): os traços mnêmicos e as associações que se estabelecem entre eles;
• Representantes Energéticos (desafortunadamente chamados por Freud de ‘econômicos’): a energia pulsional que irá, ou não, ativar (= ‘investir’) ou desativar (= ‘desinvestir’) os representantes materiais da pulsão;
• Representantes Dinâmicos: essencialmente o ‘desejo pulsional’, resultado do direcionamento dado pelos representantes materiais aos representantes energéticos.

Não existe qualquer fundamento teórico ou empírico para o não-reconhecimento por Freud da existência de resíduos mnêmicos de volições e de afetos. Ao discutirmos as ‘vicissitudes’ das moções pulsionais, estaremos, portanto, supondo que, toda a experiência humana, seja ela intelectual (imagens exteroceptivas, idéias e pensamentos), afetiva (afetos, sentimentos e emoções) ou volitiva (desejos e vontades), é capaz de deixar resíduos mnêmicos detrás de si. Assim, em lugar de ‘representação’ (= “Vorstellung”) – palavra essencialmente vinculada ao elemento intelectual de nossa experiência – empregar-se-á aqui a palavra ‘representante’ (= Repräsentanz, Repräsentant)– capaz de recobrir todos os três grandes registros da “representância” . Expressões clássicas como, por exemplo, ‘representação de coisa’ e ‘representação de palavra’ serão substituídas, dessarte, por expressões como ‘representante de coisa’, ‘representante de palavra’, ou ‘representante verbal’.
Passo, em seguida, a discutir as quatro vicissitudes pulsionais reconhecidas por Freud, ilustrando, logo após, a alegação de que o conceito de vicissitude deveria ser aplicado a todas as alterações sofridas pela pulsão desde o momento em que penetra no aparelho psíquico, assumindo, assim, a natureza de ‘moção pulsional’. Para nossos propósitos, não será necessário nos aprofundarmos numa avaliação das bastante contestáveis classificações freudianas dos instintos.

O recalque

O desenvolvimento saudável do processo pulsional depende de estar ele subordinado ao que se denominou, em Psicanálise, de ‘processo secundário’. A marca essencial desse processo é o fato de ele permitir que memórias e percepções possam ser conscientizadas, o que, pelo menos para a teoria psicanalítica, equivale à possibilidade de serem verbalmente formuladas como tais, ou seja, percepções como percepções e memórias como memórias. Para que isso ocorra, é necessário haver ‘eutonia’, ou seja, uma quantidade ideal (embora, atualmente, não estejamos em condição de mensurá-la) de investimento energético dos representantes verbais das percepções e das memórias: investimento de menos (= hipotonia) implica ilusão ou alucinação negativas ou amnésia; investimento de mais (= hipertonia) pode transformar percepção em alucinação e pensamento em delírio.
Dentre as “vicissitudes pulsionais primárias” que implicam “impedimento de um determinado conteúdo penetrar a consciência”, Freud privilegia compreensivelmente o recalque, pois esse mecanismo reina, entre aquelas vicissitudes, como o único a se revelar presente em todas as psiconeuroses, campo que a Psicanálise foi soberana em delimitar, tratar e esclarecer. Entender bem essa ‘vicissitude’ primária das ‘moções pulsionais’ impõe certas exigências, dentre elas, avaliar melhor a diferença, estatuída por Freud, entre ‘recalque original’ e ‘recalque propriamente dito’.
Descritivamente, é fácil marcar tais diferenças: as experiências submetidas ao recalque original nunca tiveram sequer ‘representante topográfico ideativo de coisa’ (a ‘Sach- ou Dingvorstellung’ de Freud); as submetidas ao que Freud chama de ‘recalque propriamente dito’, chegaram não só a ter aquele representante como, também, a possuir ‘representante topográfico ideativo de palavra’ (= ‘Wortvorstellung’), havendo posteriormente perdido esse último. Postas essas diferenças, resta hipotetizar sobre os mecanismos metapsicológicos a elas subjacentes.
Quanto ao ‘recalque propriamente dito’ – doravante sempre denominado simplesmente ‘recalque’ – a solução proposta por Freud é convincente: um determinado subconjunto do aparelho psíquico – variadamente denominado – pode decidir desinvestimentos e contra-investimentos, ou seja, desinvestir os representantes verbais de A (= pólo de expulsão), podendo acrescentar a esse desinvestimento o ‘contra-investimento’ de B (= investimento de representantes verbais incompatíveis com A; vide o conceito de “formação reativa”), o que reforça os efeitos do desinvestimento aludido.
Quanto ao ‘recalque original’, a solução freudiana convence menos. Antes de tudo, a despeito de todos os descomedimentos técnicos de Rank, a clínica confirma ad nauseam sua hipótese de que o núcleo do ‘recalque original’ é o trauma do nascimento . E a razão para que o trauma do nascimento não tenha representante ideativo é neurológica: quando ele ocorre, os tratos nervosos (corticais) que permitem inscrição mnêmica de imagens e idéias ( = ‘Vorstellungen’ ) não estão suficientemente mielinizados para permitir tal tipo de inscrição. Mas os tratos nervosos (límbicos) que permitem a inscrição mnêmica de experiências afetivas estão. Ficam, portanto, inscritos em nós, os ‘representantes mnêmicos afetivos (límbicos)’ desse trauma original, sem que haja, por impossibilidade neurológica, correspondente inscrição cortical dele. Aqui cabe afirmar que um representante sofreu uma ‘Vewerfung’ (se a entendemos no sentido da ‘forclusão’ lacaniana) desse representante cortical: fato neurológico cujos fartos efeitos psicológicos a clínica atesta, mas que só ocorrem porque o correspondente elemento límbico não foi forcluído, operando pirandelicamente no aparelho psíquico como ‘uma personagem a procura de um autor’: p.e., a memória límbica da anóxia perinatal irá procurar representantes imagético-ideativos coerentes com essa anóxia (fobia a ambiente s fechados, por exemplo).
Já que nos ocupamos da ‘Verdrängung’ (= recalque) e da ‘Verwerfung’ (= forclusão), cabe também dar alguma atenção ao restante mecanismo primário que impede presença de um determinado conteúdo na consciência: a ‘Verleugnung’ (= recusa). No pensar de Freud, seria ela a vissicitude pulsional expulsiva tipificadora da psicose . Sua descrição do mecanismo, entretanto, sofre de um mal que, vez ou outra, acossa o pensameno freudiano: um excesso de simplificação que produz classificações truncadas. A hipótese de que o bloqueio de percepções (= Verleugnung) é um mecanismo psicótico e o de memórias (= Verdrängung), neurótico não se sustenta. Com efeito, se estou lendo um texto em que se encontra a palavra ‘mãe’ e recuso-me a percebê-la, lendo ‘mão’ em vez disso, teríamos aqui uma ‘vicissitude pulsional psicótica’, porque o mecanismo expulsivo se aplicou sobre uma percepção e, não, sobre uma memória? Óbvio que não. Se, por outro lado, recalco a memória de que meu filhinho morreu pouco após haver nascido e embalo em meus braços um boneco como se ele fosse, isso seria uma ‘vicissitude neurótica’, porque o mecanismo expulsivo se aplicou sobre uma memória e, não, sobre uma percepção? Tampouco. Os critérios com que Freud pretende diferenciar Verdrängung de Verleugnung, como disse, não se sustentam.
Se pretendermos categorizar de maneira satisfatória as ‘vicissitudes pulsionais’, deveríamos propor algo assim:

1. Vicissitudes primárias de BLOQUEIO DA REPRESENTÂNCIA:
1.1. Neurológicas (não intencionais): Verwerfung
1.2. Psicológicas (intencionais):
1.2.1. Recalque (bloqueio da representância mnêmica)
1.2.1.1. Neurótico
1.2.1.2. Psicótico
1.2.2. Recusa (bloqueio da representância perceptual)
1.2.2.1. Neurótica
1.2.2.2. Psicótica.
2. Vicissitudes primárias de RETORNO DISTORCIDO DA REPRESENTÃNCIA:
2.1. Deslocamento
2.2. Transformação em seu contrário
2.3. Retorno sobre a própria pessoa
2.4. Sublimação
2.5. Projeção
2.6. Formação reativa
2.7. Conversão
2.8. Neutralização
2.9. etc.
3. Vicissitudes secundárias da representância;
3.1. Expressão verbal não distorcida da experiência.

Posto isso, abordemos as três restantes operações mentais privilegiadas por Freud com a denominação de ‘vicissitudes’, fazendo-se, para finalizar, um sintético comentário sobre o fato de que muitos outros processos mentais mereceriam igual rotulação .

A transformação em seu contrário

Frente ao já exposto, torna-se fácil compreender essa ‘vicissitude’. Quando o aparelho psíquico considera ‘inverbalizável’ a seguinte sentença –

‘Eu odeio fulano’

– pode, por exemplo, optar por desinvestir o representante verbal ‘odeio’ ( = recalcá-lo) e empregar a energia liberada por esse desinvestimento para investir o representante que o contradiz (= contra-investimento), transformando aquele conjunto em

‘Eu amo fulano’

Essa é a vicissitude subjacente ao que se convencionou chamar, em Psicanálise, de ‘formação reativa’, ilustrativa do processo mais geral de ‘transformação em seu contrário’.

O retorno sobre a própria pessoa

Atenhamo-nos ao mesmo exemplo: aquele em que o aparelho psíquico considera ‘inverbalizável’ a sentença ‘eu odeio fulano’. Há, naturalmente, outras opções para impedir essa verbalização. A que ora se encontra sob análise prefere desinvestir o representante ‘fulano’ e investir a energia liberada no representante ‘me’ (= contra-investimento), transformando o conjunto verbal ‘inconciliável’ em

‘Eu me odeio’

É evidente – embora Freud não se tenha dado ao trabalho de fazê-lo – que basta nos dispormos a usar um pouco de imaginação para reconhecer a existência de outras vicissitudes pulsionais cuja essência metapsicológica é a mesma. Por exemplo, se em vez de optar por desinvestir ‘odeio’ e investir ‘amo’, ou por desinvestir ‘fulano’ e investir ‘me’, a opção for desinvestir ‘eu´ e investir ‘beltrano’, terei, em lugar de ‘eu odeio fulano’, ‘beltrano odeia fulano’, mecanismo sacralizado na literatura psicanalítica sob o nome de ‘projeção’, não havendo razão teórica ou empírica para que não seja arrolado entre tais vicissitudes. E, assim, ad nauseam ...

Sublimação

Relembremos o que afirma o Vocabulário: “a ausência de uma teoria coerente da sublimação permanece sendo uma das lacunas do pensamento psicanalítico”. Na verdade, a causa da teimosa sobrevivência de tal lacuna é espantosamente simples: insistir, dentro de um referêncial teórico psicanalítico, em entender a sublimação como uma vicissitude necessáriamente saudável das mocões pulsionais é inviabilizar qualquer teorização satisfatória sobre o que seja sublimação. E, lamentavelmente, não apenas Freud, mas também os que o seguiram, têm insistido nisso. Explico-me:
Digamos que o sujeito A, em virtude de significativo déficit nutritivo em seu organismo, sinta fome e, conseqüentemente, meta-se a comer, visto que a necessidade de alimentar-se gerou em seu soma um processo energético que, adentrado em seu aparelho psíquico e ali transformado em moção pulsional, sofreu ‘vicissitudes’ de tal ordem que lhe permitiram representar conscientemente a sensação de fome e, frente a circunstâncias externas favoráveis, levou-o a ingerir dois sanduíches de atum e um suco de laranja, nutrientes necessários e suficientes para eliminar o déficit nutritivo em pauta.
Digamos também que o sujeito B, em virtude de recentes comportamentos de sua mulher, tenha tido nele ativados representantes de coisa relativos à idéia de agredi-la, mas que os representantes verbais correspondentes àqueles tenham tido seu acesso bloqueado (= recalque) e a energia que deveria investi-los foi deslocada para representantes ônticos (= de coisa) e verbais de fome, levando-o, frente a circunstâncias externas que o permitiram, a ingerir dois sanduíches de atum e um suco de laranja, a despeito de ele não estar sob déficit nutritivo nenhum.
Digamos, além disso, que A e B estivessem fazendo suas refeições a um mesmo tempo, em um mesmo lugar, e que também, por boas ou más razões, também ali estivessem um psicanalista, Mr. X, e um aplicado estudante de Psicologia que perguntasse a esse último o que poderia afirmar quanto à sanidade ou morbidez do comportamento de A e de B. Fosse Mr. X de fato coerente com os pressupostos da Psicanálise, diria que não tinha a menor condição de responder a tal pergunta, porque, para sua escola de pensamento psicológico, o que determina a sanidade ou não de um comportamento não é o comportamento observável, mas, sim, os mecanismos ocultos que o determinam, mecanismos inacessáveis sob aquelas condições.
As considerações acima nos levam às seguintes questões, que podem lançar luz sobre o escorregadio conceito de sublimação:
(1) a produção de uma obra de arte é, sempre, o substituto de uma atividade pulsional impedida de ocorrer de forma mais concreta? e
(2) quando essa produção é derivada de um tal bloqueio
(a) é sempre saudável? ou, por vezes,
(b) pode ser um mero sintoma, independentemente de sua valorização social?

A clínica não sugere que a produção de obras de arte ou de outros bens que não suprem, de maneira direta, necessidades corporais concretas como a nutrição ou a reprodução sejam obrigatoriamente fruto de sublimação, seja, de um desvio dessas atividades concretas para outras que servem menos diretamente ao corpo. Artistas perfeitamente capazes de comer e copular e satisfeitos nesses dois quesitos, levantam-se da cama e da mesa e vão produzir arte, indicando que esse tipo de atividade também tem raízes autônomas, não sendo necessáriamente gerado por desvios sublimatórios. Mas, digamos que uma determinada obra de arte tenha sido fruto de um tal desvio: seria ele sempre, como aparentemente ficou assentado na literatura psicanalítica, de natureza saudável? A resposta a essa pergunta depende de resposta dada a uma outra: o desvio sublimatório é conseqüência, ou não, de um recalque? Para efeito argumentativo, consideremos os dois seguintes exemplos:

O primeiro – Chopin, certa vez, logo após haver composto uma sonata, escreveu uma carta a sua amante, George Sand, em que afirma meter-se regularmente a compor, quando, por estarem longe um do outro, não pode entregar-se a fazer amor com ela. E completa: ‘O mundo não sabe quanta música lhe fazem perder nossos encontros.’

O segundo – Digamos que, tendo sido ativada a pulsão sexual de um outro sujeito, a moção pulsional correspondente enfrente vicissitudes que não lhe permitam investir com sua energia os representantes topográficos verbais respectivos, mas que tal sujeito, também capaz de sublimação, impedido de pensar sobre o quanto gostaria de estar fazendo amor ( = recalque), permitissem ou não as circunstâncias fazê-lo, meta-se a compor sonata.

Se pretendermos ser coerentes com os pressupostos metateóricos da Psicanálise – e, se queremos nos manter dentro dos parâmetros que caracterizam o conhecimento científico, é bom que o façamos – cumpre reconhecer que, sejam quais forem as qualidades das músicas produzidas, a sublimação, no caso de Chopin, é uma vicissitude pulsional saudável, pois não é um mecanismo de retorno secundário a um recalque, enquanto, no segundo caso, é uma vicissitude pulsional de caráter mórbido, pois corresponde exatamente a esse tipo de retorno.

Outras vicissitudes das moções pulsionais

O que nos precedeu até aqui terá provavelmente deixado claro que há tanto sentido denominar ‘vicissitude pulsional’ à transformação de ‘eu odeio fulano’ em ‘eu amo fulano’ (= transformação em seu contrário), quanto à transformação de ‘eu odeio fulano’ em ‘beltrano odeia fulano’ (= projeção) ou em ‘fulano me odeia’, ou em ‘beltrano ama fulano’ ou em ‘beltrano me ama’ etc., o que torna a restrição do número de vicissitudes pulsionais a apenas quatro um bom exemplo – dessa vez patrocinado pelo próprio Freud – de deficiente praticidade teórica.

Rio de Janeiro, 16 de maio de 2004.

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