O questionamento sobre a cientificidade ou não da Psicanálise tem sido levado adiante dentro de um ambiente viciado por significativas confusões conceituais, que levam a pseudo-problemas como o de se a Psicologia é científica ou não e o de se a Psicanálise é científica ou não. Tentemos desbastar um pouco essa confusão:
Os diversos ramos do saber factual passam normalmente por três estágios. : (a) o pré-científico assistemático, constituído por conclusões fragmentárias, não organizadas em um sistema coerente de proposições; (b) o pré-científico sistemático, em que as conclusões propostas, embora sistematizadas de forma coerente, mantêm-se em nível meramente especulativo, não sendo submetidas ao teste empírico e, por fim, (c) o científico, necessariamente sistemático, em que as conclusões propostas, além de organizadas em sistema, passam por aquele teste.
Cada um dos diversos ramos de saber são classificados segundo seu objeto. Assim, o estudo dos astros, coerentemente denominado como ASTROnomia, passou por aqueles três estágios, iniciando-se como uma Astronomia pré-científica assistemática, passando ao estágio pré-científico sistemático e chegando afinal, com Galileu, a seu estágio sistemático-científico.
Também como ocorreu a Astronomia e outros ramos do saber, o estudo da psique, coerentemente denominado PSICOlogia, compunha-se, em seu estágio pré-científico assistemático – de longe o mais longo de todos – de um conjunto esparso de observações, registradas sob a forma de fábulas, anedotas e aforismos; o marco de sua passagem para o estágio seguinte foi o aparecimento, em meados do século IV a.C., do tratado aristotélico “Sobre a Psique”, só passando para o terceiro e ultimo estágio, o sistemático-científico quando, vinte e três séculos depois, Herbart, Weber e Fechner resolveram enfrentar o desafio lançado por Kant de que se provasse poder a Psicologia operar como ciência.
Se os ramos do saber são denominados segundo seu objeto, sendo indiscutivelmente o psiquismo o objeto da Psicanálise, não só (a) a afirmação de que essa última nada mais é do que um tipo especial de Psicologia decorre de mera coerência classificatória; como também (b) a constatação de que qualquer saber pode passar pelos três estágios de evolução mencionados faz que afirmações do tipo “a Psicologia é (ou não é) uma ciência” ou “a Psicanálise é (ou não) uma ciência”, se feitas como generalizações proferidas “ex cathedra”, fiquem desprovidas de qualquer valor heurístico, cumprindo saber, para que tais afirmações possuam algum fundamento, de que Psicologia e de que Psicanálise se fala.Acrescente-se que – excetuando-se os casos em que se fala de “númenos”, entidades de natureza metafísica – a cientificidade de uma proposição não depende da veracidade de seu conteúdo, mas, sim, do tipo de tratamento a que se a submeteu ou se a pretende submeter. A Psicanálise freudiana é científica porque pretende submeter suas afirmações ao teste de coerência lógico-empírica característico do método científico, a lacaniana não é por ter-se desvinculado dessa intenção.
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