Desde os primórdios dos tempos, o ser humano percebeu que, para sua sobrevivência, deveria aprender a manipular não apenas o mundo, mas sua própria mente. Embora exista uma infinidade de técnicas de - para bem ou para mal - se implementar tal manipulação, essas técnicas servem basicamente a apenas três grandes estratégias, que vale sermos capazes de reconhecer.
Até o século XIX, as estratégias dominantes de manipulação psicológica eram apenas de dois tipos. O primeiro, de convencer o indivíduo a esposar pensamentos – e, consoante isso, manifestar comportamentos – que, derradeiramente, remetiam à realização dos desejos de um chefe, via de regra tido como representante de Deus. Quem compulsa o Velho Testamento com algum olhar crítico pode facilmente reconhecer que o Grande Pecado, ali, é a desobediência: a ordem de Jeová para que Abraão, sem questionamentos, se submetesse à ordem de matar seu filho Isaac é soberbo exemplo disso. O segundo desses tipos de estratégia – encarnado pelos festivais – visava a dar vazão, durante tempo e circunstâncias circunscritos, às tensões acumuladas durante o restante período em que a obediência era a norma.
A chegada do século XIX, todavia – como bem demonstra Corbin[1] – “inventou” a individualidade, trazendo consigo uma terceira estratégia de manejo da mente. Essa nova estratégia visava a permitir o surgimento de pessoas que, em vez de meros consumidores acríticos das normas que suas comunidades lhes impunham, deveriam ser capazes de usar sua liberdade e sua razão para escolher suas próprias “Tábuas da Lei”. Com efeito, esse foi o primeiro século a permitir, em larga escala, que o ser humano de fato comesse os frutos da Árvore da Ciência do Bem e do Mal. E o papel tentador de Eva coube, em grande parte, à então – hoje não mais – revolucionária Psicanálise.
Essas três estratégias básicas de manipulação da mente ainda hoje sobrevivem e, competindo pela aura da cientificidade, se digladiam, gerando multiplicados dissensos entre os profissionais de saúde mental. Passamos a comentá-las.
AS DUAS ESTRATÉGIAS DE VELHA GERAÇÃO
A Estratégia da Doutrinação
A chegada do século XIX, todavia – como bem demonstra Corbin[1] – “inventou” a individualidade, trazendo consigo uma terceira estratégia de manejo da mente. Essa nova estratégia visava a permitir o surgimento de pessoas que, em vez de meros consumidores acríticos das normas que suas comunidades lhes impunham, deveriam ser capazes de usar sua liberdade e sua razão para escolher suas próprias “Tábuas da Lei”. Com efeito, esse foi o primeiro século a permitir, em larga escala, que o ser humano de fato comesse os frutos da Árvore da Ciência do Bem e do Mal. E o papel tentador de Eva coube, em grande parte, à então – hoje não mais – revolucionária Psicanálise.
Essas três estratégias básicas de manipulação da mente ainda hoje sobrevivem e, competindo pela aura da cientificidade, se digladiam, gerando multiplicados dissensos entre os profissionais de saúde mental. Passamos a comentá-las.
AS DUAS ESTRATÉGIAS DE VELHA GERAÇÃO
A Estratégia da Doutrinação
Esse era o tipo de estratégia que monopolizava a vertente “científica” de manipulação da mente antes do aparecimento da Psicanálise. Seu objetivo não é simplesmente impor a você como agir: é dizer como você deve agir e pensar, ou, se possível – vide Abraão e seu filho Isaac – como você deve agir sem pensar. A Estratégia da Doutrinação não é, meramente, uma estratégia de contenção, é uma estratégia de recalque. Parte do princípio de que determinados conteúdos mentais – considerados irracionais, imorais, desagradáveis etc. – jamais devem atingir consciência plena, o que apenas acontece no nível da palavra. É, sem dúvida, a estratégia dos shrinks ( gíria americana, nascida nos anos sessenta, para nomear os psiquiatras e, por extensão, aos vários tipos de profissionais da área de saúde mental; é uma simplificação de headshrinkers = encolhedores de cabeça ; cf. comentário mais amplo no post anterior que aborda o filme Don Juan de Marco).
A hoje mais difundida variação desta estratégia se autodenomina Psicologia do Pensamento Positivo, mas antes mereceria ser chamada – façamos jus à língua que a gestou – de Pretending Psychology, ou Psicologia do Faz-de-Conta: sustenta que você só deve permitir acesso à consciência a determinados pensamentos, considerados “positivos”, tipo “hei de vencer”, “eu sou capaz”, “eu sou feliz” etc. e domina assustadoramente a atual literatura chamada de “auto-ajuda”. Um dos principais efeitos da estratégia da doutrinação é criar uma relação falsa do sujeito consigo mesmo e com seu terapeuta. Francisco é exemplo disso:
Errado!
A hoje mais difundida variação desta estratégia se autodenomina Psicologia do Pensamento Positivo, mas antes mereceria ser chamada – façamos jus à língua que a gestou – de Pretending Psychology, ou Psicologia do Faz-de-Conta: sustenta que você só deve permitir acesso à consciência a determinados pensamentos, considerados “positivos”, tipo “hei de vencer”, “eu sou capaz”, “eu sou feliz” etc. e domina assustadoramente a atual literatura chamada de “auto-ajuda”. Um dos principais efeitos da estratégia da doutrinação é criar uma relação falsa do sujeito consigo mesmo e com seu terapeuta. Francisco é exemplo disso:
Errado!
Antes de Francisco ser atendido por mim, passara pelas mãos de um terapeuta cuja atitude, se não fosse trágica, seria cômica. Pedia, por exemplo, que Francisco expressasse suas opiniões sobre sucesso e fracasso e, quando ele o fazia, dizia: – “Errado!”, completando, em seguida, o que, em sua opinião, Francisco deveria pensar. Em pouco tempo, o paciente, que se encontrava em terapia com esse profissional por pressão da família, de quem financeiramente dependia, aprendeu o que o terapeuta queria que ele respondesse e fazia isso, para não se aborrecer. O “resultado” daquela “terapia” foi que o paciente, pelo menos para uso externo, havia desenvolvido um “falso eu”.
A Estratégia Catártica (ou dos Festivais)
À Estratégia da Doutrinação as sociedades humanas sempre associaram a Estratégia dos Festivais. Joseph Breuer, um médico vienense, inaugurou a versão “científica” desse segundo tipo de estratégia, que opera em conformidade com o princípio de que certos Desejos de Palavra podem, sim, ter acesso à consciência, mas durante períodos restritos, em situações especiais. A “situação especial” empregada por Breuer foi a hipnose. Durante ela, Bertha Pappenheim, a primeira paciente submetida a essa técnica, dava expressão verbal a conteúdos mentais, que, fora da hipnose, continuavam com acesso barrado à consciência. A Estratégia dos Festivais, hoje co-optada pelos profissionais de saúde psicológica – como, por exemplo, no citado caso de Bertha ou nas chamadas “maratonas psicológicas” – continua sendo empregada em contextos laicos – como, por exemplo, em disputas esportivas de grande carga emocional ou em nosso Carnaval – e religiosos – como sessões de umbanda ou encontros religiosos chamados “carismáticos”. Embora, no contexto profissional – onde toma o nome de “catártica” – a Estratégia dos Festivais possa ser utilizada numa relação a dois, entre terapeuta e paciente, ela, freqüentemente, é utilizada em contextos grupais, que facilitam o estabelecimento dos “estados especiais” favorecedores da catarse. Também as drogas são, freqüentemente, empregadas para favorecê-la, em todos os contextos mencionados: no contexto laico, reina o álcool, soberano; no religioso, tem fama o Santo Daime; no profissional, já teve algum destaque o sódio pentotal, alcunhado “soro da verdade”.
Obtida a catarse, independentemente da ideologia que a patrocine ou da técnica empregada para obtê-la, há uma indiscutível redução de tensão, que colabora para que o sujeito aceda a um nível mais racional e autogestivo de funcionamento psicológico. Diferentemente do que ocorre com a Estratégia da Doutrinação, a dos Festivais – quando não faz uso abusivo de determinadas drogas ou não provoca descontroles de comportamento de conseqüências irreversíveis – por si mesma, não faz mal. Apenas, quando não empregada, como em seguida veremos, em conjunto com uma Terapia de Nova Geração, torna seu “usuário” um dependente do “festival”, pois não recupera nele a capacidade independente de dissolver cotidianamente suas próprias tensões, deixando-o para sempre nas mãos do agente que escolheu para colocá-lo no estado especial em que essa dissolução se faz possível. Embora a História da Psicanálise evite mencioná-lo, a espetacular melhoria inicial de Bertha Pappenheim, obtida pela Estratégia Catártica, foi, até o fim de sua vida, seguida por várias recaídas, algumas requerendo internação.
Sessões catárticas podem ocorrer durante um processo psicoterápico de natureza mais profunda, mas são aspectos marginais, não essenciais do tratamento. Ronaldo passou quatro sessões de sua análise – que durou cerca de cinco anos – fazendo catarse de sua raiva. Vejamos:
Seu Filha da Puta![2]
Eu atendia Renato quatro vezes por semana, de segunda a quinta, e ele fazia uso do divã (nem todos os pacientes fazem). Numa quinta-feira, começou sua sessão assim:
– Seu filha da puta! Eu não sei nem se você é mesmo psicólogo, ou se você põe esses diplomas aí na parede só pra poder ficar sacaneando as pessoas! Eu botei um patuá em cada porta da minha casa pra você não entrar – seu filha da puta! – mas você entrou assim mesmo! Pera aí! Acho que não foi você que entrou em minha casa, fui eu que entrei! Ah, mas não dá pra ter essa raiva toda de mim não, vai você mesmo, seu filha da puta! E você está pensando que vai ficar assim? Não vai, não! Eu estou vendo você correndo, apavorado, pelo meio de um vale – seu filha da puta! – porque tem uma represa atrás de você e ela vai arrebentar, seu filha da puta! E você pensa que é uma represa de água? Não é não – seu filha da puta! – é uma represa de merda e a merda vai enterrar você, seu filha da puta!
Após descarregar fartamente sua raiva sobre mim, Renato partiu para seus pais.
– Tô no alto de um edifício e meu pai está nos meus braços, apavorado porque sabe que eu vou jogar ele lá embaixo! E eu não vou só soltar ele não! Ah, não vou, não! Eu vou empurrar ele com força, assim [faz o gesto], pra ele já sair com velocidade do topo do edifício e se esborrachar mais ainda quando chegar lá embaixo! Desci até a calçada. Meu pai está esborrachado, cheio de sangue, mortinho. Aí eu pego uma machadinha e começo a picar ele todinho. Todinho! Ele fica bem picadinho. Sabe como? Que nem “stake tartar”, conhece? Pois é, assim! Bem, bem, bem picadinho. Acabei! Mas não estou satisfeito! Ah, já sei!, cago em cima! Isso, cago em cima dele! Vou cobrindo ele de bosta! Mas minha bosta não dá pra cobrir! Não tem problema! Eu volto no dia seguinte e no outro e no outro, até ele ficar totalmente coberto de bosta! Ficou! Caramba! Sobrou um dedinho, inteiro, fora da bosta! Aí, eu pego o dedinho e – crack! – quebro o dedinho do filha da puta.
Depois do pai, dedicou um tempo a sua mãe.
– Pego a filha da puta pelos pés – estou no meio de uma praça redonda, cercada de postes – e rodo a filha da puta e a cabeça dela vai batendo, com toda força, em cada um dos postes. Rodo muitas vezes, o pescoço dela quebra e a cabeça fica cheia de sangue! Bom! Muito bom! Entendeu bem, seu filha da puta?
Voltou-se ainda, durante alguns minutos para mim, dizendo, em sua linguagem de médico (naquela época, ele era estudante de medicina), que iria enfiar seus dedos em meu abdômen e, com suas próprias mãos, levantar meu gradil costal, enfiar a cabeça em minhas vísceras e chupar o meu sangue, experimentando o prazer de senti-lo molhar, morno, as suas bochechas.
Fiquei escutando-o, sem nada dizer, durante toda a sessão. Terminado nosso tempo, apenas comentei:
– Estamos na hora!
Levantou-se um pouco constrangido. Afinal, não é todo o dia que se faz picadinho do pai, se racha a cabeça da mãe, e se chupa o sangue morno do próprio analista. Fomos até a porta, onde nos despedimos com um aperto de mão, enquanto ele dizia:
– Olha, na segunda-feira, não vou poder vir, porque estarei de plantão na residência.
– Combinado – respondi.!
Terça-feira, voltou. Deitou-se no divã e suas primeiras palavras foram:
– Seu filha da puta!
E continuou por aí afora. Foram quatro sessões seguidas da maior descarga de ódio que jamais presenciei durante décadas de atividade como psicoterapeuta. No quinto dia, parecia aliviado. Deitou-se no divã e suas primeiras palavras foram:
– Porra, foi foda, né? E, cara, enquanto eu falava aquelas coisas todas, uma vozinha dentro da minha cabeça ficava repetindo, o tempo todo: “Levanta e enche esse cara de porrada!” E vou te contar uma coisa: se isso tivesse acontecido há uns dois anos atrás, eu tinha levantado e te enchido de porrada!
Como se vê, situações de catarse, a despeito de todo o alívio que podem trazer consigo, implicam razoáveis riscos; e tanto para a sujeito da sangria, quanto para seus espectadores. Na verdade, polícia nas ruas e segurança nos bailes é um must do Carnaval... Quem se propuser a patrocinar situações de “psicossangria” deve estar preparado para minimizar os riscos que elas trazem consigo. Se eu já não estivesse suficientemente seguro – e um erro de cálculo, aqui, traria desagradáveis conseqüências – de que Renato não iria ultrapassar a fronteira que existe entre a palavra e a ação, eu teria intervindo de forma a abortar seu processo de catarse. Meu contínuo silêncio foi como que um aval para que ele fosse em frente na descarga de seus desejos de destruir. Fiz isso por estar acreditando que ele iria restringir-se à dimensão da fala. Felizmente, estava certo: caso não, poderia ter tido uns ossos quebrados. Terá provavelmente sido por seus perigos potenciais que a estratégia da sangria não invadiu a “literatura auto-ajuda”: sem certos cuidados, ela é perigosa demais.
A ESTRATÉGIA DE NOVA GERAÇÃO (ou de AUTOGESTÃO)
Freud, informado por Breuer dos – para a época – espantosos resultados obtidos com o tratamento de Bertha, acabou por perguntar-se: “Ora, por que o paciente deveria ter acesso pleno à representação verbal de determinados conteúdos de seu psiquismo apenas sob circunstâncias especiais? Por que não poderia ele tornar esse acesso algo regular, um elemento integrado à rotina de sua vida?” E, com essa pergunta e os esforços que fez para satisfatoriamente respondê-la, inaugurou uma nova geração de estratégias psicoterápicas – a Estratégia da Autogestão – baseada no princípio, já defendido por pensadores como Aristóteles, Terêncio e Nietzsche, de que toda a experiência humana merece incondicional acesso à palavra. Ou, fazendo uso da linguagem por vezes utilizada por esses pensadores, o de que todo o pathos deve ter acesso ao logos.
A Estratégia de Nova Geração expressa uma inversão de valores – a Umwertung aller Werte, de Nietzsche – que tomou vulto durante o século XIX, provocando uma verdadeira “pororoca antropológica”. A partir dessa inversão – ainda não de todo absorvida, como o demonstram as vicissitudes do tratamento de Don Juan (cf. post anterior) – a palavra “patológico”, pelo menos no que diz respeito a sua dimensão psicológica, deveria deixar de ser empregada como equivalente a “doentio”, “enfermo”. Com efeito, em seu mais fundamental sentido, “ser patológico”, é ser capaz de dar a todos os pathe[3] – o conjunto da experiência humana – seu lugar no logos – no nível da palavra. Ser patológico, portanto, segundo a Estratégia de Nova Geração, passa – embora poucos, ao que parece, disso se hajam dado conta– a constituir paradigma de saúde, não, de doença. Com efeito, o objetivo imediato da Estratégia de Nova Geração é permitir o acolhimento de todo o pathos no logos.
Correspondentemente, essa revolução de valores ocorrida a partir do aparecimento, com a Psicanálise, da Estratégia de Nova Geração, pede que os headshrinkers, os encolhedores de cabeças, sejam substituídos por headexpanders, dispostos a expandi-las, substituição que, como a mera existência da gíria americana denuncia, definitivamente não ocorreu. Com efeito, até hoje, equipes de psicocoisas se dividem sobre se encolhem ou expandem a cabeça de seus Dons Juans. A palavra “louco”, de meu conhecimento, ainda não encontrou etimologia oficial. Permito-me uma hipótese: ela provavelmente deriva de est locutus, expressão latina que significa, simplesmente, “falou”. Est locutus? Falou? É louco! Giordano Bruno e Galileu são testemunhas. Apenas a partir do século XIX – em particular das contribuições de Nietzsche e de Freud – essa postura passou a ser eficazmente contestada... A Estratégia de Autogestão, como as anteriormente descritas, pode ser implementada por mais de uma técnica – a Loganálise é uma delas – e essas técnicas deverão continuar sendo aperfeiçoadas até o fim dos tempos. (Excerto, com pequenas alterações, de: Ebraico, L. C. De M. A Nova Conversa. Rio: Ediouro, 2004).
[1] CORBIN, Alain. O Segredo do Indivíduo, in: ARIÈS, P. & DUBY, G.. A História da Vida Cotidiana. Companhia das Letras: São Paulo, 1991, vol. 4, p. 419-501, passim.
[2] É curiosa a freqüência – provavelmente por razões de assonância – em que, nesse tipo de xingamento, emprega-se “filha” em vez de “filho”, mesmo quando o destinatário da ofensa pertence ao sexo masculino.
[3] Plural de pathos.
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