O material abaixo foi obtido durante a aplicação de um teste de Rorschach a uma paciente de quatorze anos, vitima de quadro epilético, a quem atribuirei o pseudônimo de Rita. O teste foi trazido a mim por uma aluna, basicamente, para exercitarmos a classificação formal das respostas. O número de respostas dado ao teste era bastante acima da média[1] e, inicialmente, escapou-me que um bom número delas fornecia, cifradamente, riquíssimo material simbólico, dando a chave, ao mesmo tempo, para a descoberta da etiologia de seu quadro nosológico. O objetivo principal deste trabalho é expor uma matriz cognitiva inconsciente pouco explorada pela Psicanálise clássica.
Passo a listar as respostas[2] que servem a esse objetivo, adicionando os comentários pertinentes, conforme o desenrolar da trama simbólica os tornar possíveis.
Prancha I
1, 2 ...
3. (D6) Isto aqui parece que alguém está em algum lugar, nesse espaço escuro e aqui duas mãos para fora;
4. (D4)Assim, nota-se mais uma coisa aqui: a mancha está escura ... faz o quadril de uma mulher; há espaço bastante para ser mulher;
5 ...
6. (d6, posição “c”) Se a gente levasse em conta que aqui fosse uma montanha corroída, podia parecer aqui um rosto, as pernas um pouco curvadas, dá impressão de ser uma pessoa que chegou cansada e sentou;
7. (d6, posição “c”) Quando olho aqui, esse negócio parece o lugar por onde sai a criança. Só.
Prancha II
1 ...
2. (Toda a parte negra da prancha) Parece osso da bacia;
3, 4, 5 e 6 ...
Prancha III
1, 2, 3 ...
4. (D1) Parece o osso da bacia novamente, esse meio vermelho;
5 e 6 ...
Prancha IV
1, 2 e 3 ...
Comentário de Rita (relativamente aos pequenos espaços vazios adjacentes a D4): -- Por que todas as fotos têm esse orifício igual? Todas essas são assim, têm esse desenho, sempre a gente nota isso ...
4 ...
Prancha V
1 ...
Prancha VI
1, 2, 3, 4 ...
5. (D1, lado direito, posição “c”) Daqui pela metade para cá (lado direito da prancha de cabeça para baixo), é um bebê: lingüinha, aqui uma cadeirinha, a mesinha, aqui desce. Talvez o joelho, a mesa, vai descendo, o pé da mesa, da cadeira, o chuca-chuca aqui em cima;
6, 7 ...
Prancha VII
1, 2, 3, 4, 5 ...
Prancha VIII
1 ...
2. (D4?) Não agüento mais! Osso da bacia, aqui! Sempre aparece osso da bacia! Que nervoso!
3 ...
4. (parte central de D7) Aqui parece uma vagina, no centro. Embolou tudo! Agora não sei mais nada! (Fecha os olhos)
Embolou as cores, de repente! Que nervoso!
5. (parte central de D4) Isso aqui parece uma coluna, ... um pedacinho de uma coluna;
6 ...
Detenhamo-nos por um momento na transcrição do teste e voltemos nossa atenção para os possíveis significados das respostas até agora transcritas. A reação de Rita à prancha VIII é particularmente notável. Veja-se a intensidade com que reage -- “não agüento mais!”, “não sei mais nada!”, “que nervoso!” -- à idéia, que lhe persegue, de “osso da bacia”. Ora, “osso da bacia” é uma clássica referência disfarçada a “órgão sexual feminino”, mais exatamente, “vagina”. Com efeito, duas respostas adiante, ela perde de maneira mais completa a censura e se refere diretamente ao que já mencionara mais de uma vez de maneira indireta: fala diretamente de “vagina” e sua reação é de extrema confusão: “uma vagina, no centro. Embolou tudo! Agora não sei mais nada!”, etc., etc....
Por que essa reação tão intensa à vagina? O “medo à castração” freudiano? Deixemos essa resposta para mais adiante. Um último comentário, antes de retornarmos ao texto das respostas: A resposta “coluna”, como a mencionada “osso da bacia”, é também uma expressão simbólica da atração-repulsa de Rita pela vagina. Esse fato, nos é sugerido não só pelas semelhanças estruturais entre uma e outra[3], mas, também, por “coluna” seguir imediatamente à resposta “vagina”, altamente carregada de afeto[4].
Prancha IX
1. (G) Um bando de ameba;
2. (G, posição “c”; os homens são D2) Uma coluna antiga. Dois homens que chegaram a essa coluna, mas, como ela era muito resistente e não podiam entrar e não podiam voltar, porque a coluna era no alto da montanha, morreram ali mesmo, com a ânsia de entrar na coluna ... Mas não podiam entrar! ... Estavam sem mantimentos! Depois de muitos anos, a gente vê a forma deles... Osso... Os corpos já foram desfeitos, mas continuam no lugar e já começa... Esqueci o nome que se dá... A evolução da montanha! Vai sendo depositado o pó, a terra: a montanha vai aumentando... Isto é o verde... Já está cobrindo a cabeça... A coluna também vai ser coberta... É pra leão!
3, 4 ...
5. (D2) Parece uma máquina fotográfica. Aqui: um homem tirando uma fotografia. Meio sem lógica, mas parece.
Veja-se a clareza desse material: dois homens (representantes, naturalmente, da própria examinanda) chegam ao alto de uma montanha (cf. “mons veneris”; recordemo-nos, também, que a idéia de escalar uma montanha é um representante simbólico da idéia de nascer[5]), onde encontram uma coluna (= vagina), querem entrar (= nascer), mas não podem, porque a coluna é muito resistente (= falta de dilatação da mãe), e não podem voltar (= desistir de nascer), morrendo (= vivência de angústia[6]), por falta de mantimentos (= anóxia). Frente a esse material, passei a minha supervisionanda a opinião de que a epilepsia de Rita era provavelmente devida a uma anóxia perinatal. Foi-me, então, informado que a paciente tivera um parto extremamente difícil, que exigiu uma cesariana de emergência, confirmando minha hipótese.
Se voltarmos, agora, nossa atenção para as respostas que foram dadas desde a primeira prancha, podemos ver que, esparsas entre o grande número das demais respostas que dera ao teste, Rita, desde o início, estava-nos comunicando seu trauma em relação ao momento de nascer:
I: “Isto aqui parece que alguém que está em algum lugar, nesse espaço escuro e aqui duas mãos para fora”;
... “o quadril de uma mulher; há espaço bastante para ser mulher” (esta críptica resposta, agora, pode ser desvendada: é uma óbvia realização de desejo; o que houve, na verdade, foi insuficiente dilatação do que deveria ter sido sua passagem para o nascer);
“Se a gente levasse em conta que aqui fosse uma montanha corroída (essa deve ter sido a palavra que a paciente tentou evocar, sem sucesso, quando, na prancha IX, fala da “evolução” da montanha), podia parecer aqui um rosto” ... “uma pessoa que chegou cansada e sentou” (= parto laborioso, mas, afinal, bem sucedido);
“Quando olho aqui, esse negócio parece o lugar por onde sai a criança” (mesmo lugar onde viu a “montanha corroída”, reforçando a equivalência “montanha = genitália feminina”);
II: “Osso da bacia”;
III: “Osso da bacia, novamente”
IV: “Porque todas essas fotos têm esse orifício igual?” (note-se que, ao longo de toda minha experiência com o teste, jamais vi tamanha ênfase dada a esses brancos simétricos da prancha IV, que, aliás, via de regra, não são sequer notados);
VI: ... “um bebê: linguinha, aqui uma cadeirinha, a mesinha” (a paciente se refere àquelas cadeirinhas de pé alto, com tampo superior móvel, que, abaixado, ao mesmo tempo em que lhe serve de mesa, prende,-- dificuldade de nascer,-- a criança à cadeira,-- cadeira = quadris!,-- brilhante “resposta de complexo”, indicando, de maneira extremamente disfarçada, o traumatismo de parto de que foi vítima a paciente).
As respostas à prancha VIII e a segunda resposta à IX já foram comentadas. A resposta “bando de amebas”, primeira à prancha IX, deve evidentemente, dado o contexto, ser entendida como uma expressão cifrada da idéia de feto.
Quanto a “um homem tirando fotografia”, entendo como um deslocamento defensivo, para o nível visual, dos impulsos frustrados de penetração da vagina com o próprio corpo.
Mas voltemos à montanha da prancha IX. Rita, como sugeri anteriormente, cometeu um lapso, substituindo a palavra “corrosão” pela palavra “evolução”. O que estaria recalcando, ao cometer esse lapso? “Corrosão” é algo destrutivo; foi substituído por, “evolução”, algo de natureza oposta: permito-me concluir que ela está tentando afastar de sua consciência seus impulsos agressivos em relação à vagina, impulsos, aliás, mais do que compreensíveis, vista sua traumática experiência com aquela, ao nascer. Essa disposição agressiva em relação à vagina vai emergir claramente nas respostas dadas à prancha X[7]. Entretanto, antes de seguirmos em nossa análise, voltemos à pergunta que tinha sido deixada em suspenso após a descrição das respostas dadas à prancha VIII -- “Por que tão intensa repulsa à vagina?” – pergunta a que, na verdade, cabe acrescentar outra – “Por que uma tão grande atração por ela?” – visto que, houvesse só repulsa, ela não estaria coalhando esse teste, de forma implícita e explicita. Por agora, não obstante, iremos nos interessar em responder apenas a primeira delas:
A repulsa (ansiedade, primariamente; agressividade, secundariamente[8]) da
paciente em relação à vagina provém de sua experiência intensamente
traumática com ela no momento do nascimento.
Se concedermos à idéia de Rank[9] – a que concedo inteiramente – de que a experiência do nascimento, de maneira mais ou menos intensa, é traumática para todos nós, a afirmação acima toma um significado bastante mais relevante, pois passa a ser aplicável, já não apenas a essa paciente em particular, mas ao ser humano em geral, devendo encontrar seu lugar preciso dentro de uma teoria psicanalítica da personalidade, coerente com a seguinte afirmação:
O ser humano, homens e mulheres, através da experiência do nascimento,
adquirem uma repulsa primária em relação à vagina[10].
A resposta, portanto, à pergunta de por que a paciente que vimos estudando tem repulsa à vagina é porque nasceu e, à de por que sua repulsa é tão intensa é porque, no seu caso, o trauma de parto foi particularmente intenso – com, inclusive, seqüela neurológica.
Como fica, então, o famoso “medo da castração”, de que fala Freud? Antes de tudo, é necessário explicitar que essa expressão, na obra freudiana, recobre dois conceitos bastante distintos: num, “medo da castração” significa “medo de ser castrado”; noutro, significa “medo à visão da castração” – prototipicamente ilustrado pelo choque do menino ao ver o órgão sexual da mulher. Interessa-nos, aqui, a discussão do segundo desses significados. O que se defende neste trabalho é que o segundo desses medos não é, de forma nenhuma, à castração, muito ao contrário: a teoria da castração – a idéia de que já houve um pênis ali – é uma defesa, idealizada com o fim de obscurecer o fato de que, ali, existe um buraco[11], a vagina, primeiro “cabide ideativo” para a memória afetiva[12] de angústia que ficou da experiência do nascimento. Em outras palavras, em seu nível mais primitivo, o que assusta, na mulher, não é a falta de pênis: é a presença da vagina e essa é uma correção essencial a ser feita nos critérios interpretativos da Psicanálise clássica.
É uma séria falha dessa última o haver permitido que a fantasia defensiva dos pacientes fosse entronizada sob forma de teoria, ao nomear de medo da castração o que, na verdade, não passa de uma forma travestida do medo à vagina, fundamental herdeiro ideativo do trauma do nascimento.
Voltemos ao texto de nosso teste, cujo principal mérito é pôr às claras esse medo e sua origem. Passo, doravante, a fazer meus comentários após cada resposta descrita:
Prancha X (7 respostas):
1. (D4) Duas baratas pretas daquelas que pedem pena da Rhodia;
A resposta da paciente é uma referência a uma propaganda de inseticida, freqüente àquela época na tv, em que uma barata tenta safar-se de um jato “spray” inseticida, aos brados de: “Rhodox não! Rhodox não!”. Essa resposta é uma evidente expressão dos mencionados impulsos retaliatórios da paciente em relação à vagina. “Barata” é um conhecido símbolo da genitália feminina, empregado de forma explícita em nossa linguagem popular, principalmente em seu diminutivo, “baratinha”, empregado no trato com crianças do sexo feminino. Essa agressividade da paciente em relação à vagina será facilmente projetada no homem e previ, à época da análise do teste, significativa perturbação da sexualidade da examinanda, provavelmente na direção do vaginismo, da “frigidez” ou masoquismo[13]. Vale notar, na terceira resposta à prancha, que logo transcrevemos, como a paciente chega próximo à consciência de que essa agressividade acabará voltada contra si mesma:
3. (D12) Estou ficando sádica por bacia... O pior é que tenho a minha!
6 . (D5, posição “c”) Dá impressão de um útero com uma criança nascendo. Dá impressão, não é? Tem perna, tem tudo, só que está nascendo errado, de cabeça para baixo.
7. (D12, posição “c”) Útero onde fica o bebê. Os ovários de onde desce a menstruação. Parece.
Como nossa interpretação geral do caso se nos impôs quando vimos a segunda resposta da paciente à prancha IX, suas respostas à prancha seguinte, ainda desconhecidas quando aquela interpretação foi feita, servem de elemento de validação para essa última.
A tese geral deste trabalho é a de que o conjunto de dados aqui transcritos sustenta:
(1) A importância do trauma do nascimento;
(2) A fartura do material ideativo que diretamente o representa;
(3) A participação desse trauma na construção de um “medo à vagina”, distorcidamente reconhecido por Freud sob a forma encobridora de “medo à castração”.
Não conheço material clínico de pacientes sob análise que contradiga essas conclusões.
Rio de Janeiro, 6 de setembro de 1996.
Luís César de Miranda Ebraico
[1] Cinqüenta em seu total.
[2] O lugar da prancha a que ser refere a resposta obedece à nomenclatura klopferiana.
[3] Naturalmente, “coluna” também pode,-- e, talvez, inclusive, o faça com mais freqüência,-- representar o órgão sexual masculino, mas, no caso em questão, o contexto aponta para uma ênfase à parte interna da coluna, como veremos a seguir.
[4] Em minha experiência, só o neurótico obsessivo-compulsivo -- que não é o caso da paciente -- graças ao mecanismo do isolamento, consegue fazer seguir a uma resposta altamente carregada de afeto, outra que com ela não se relaciona.
[5] A idéia de voltar ao útero, por sua vez, é, por vezes, representada pela idéia de descer uma montanha, morro ou ribanceira (principalmente quando a descida é lenta e perigosa) e pela idéia de sepultamento. O seguinte sonho ilustra bem essas equações simbólicas: A. P., uma mulher, sonha que está tentando subir a encosta de uma montanha com muita dificuldade, quando começa a sentir que uma força intensa começa a atraí-la cada vez mais irresistivelmente para baixo. Olha para trás, na direção do ponto para o qual está sendo atraída, e vê que o que lhe espera é ... seu próprio caixão. Sua angústia cresce cada vez mais à medida que é arrastada para o seu destino até que, para sua surpresa, ao cair definitivamente dentro do caixão, tem a sensação de angústia substituída por uma vivência de extrema beatitude. Este sonho ilustra com extrema clareza a equação simbólica “morte = passagem angustiosa pela vagina + recuperação da situação intra-uterina”. Revertere ad locum tuum!
[6] Lembremos o fato, que aqui cai como uma luva, de que o termo “angustia”, em latim, significa “passagem estreita”, “desfiladeiro”.
[7] Vale lembrar que, em meu primeiro contato com esse material, a análise simbólica das respostas foi feita exatamente na ordem que está sendo seguida aqui: as respostas eram muitas e eu estava atento à sua classificação, não a seu significado; só na prancha VIII comecei a ficar sensível à contínua referência, direta ou indireta, à vagina, obtendo uma compreensão mais global dessa referência a partir da segunda resposta à prancha IX, o que me levou a rever todo o teste e desvendar as referências ao nascimento que vinham sendo feitas desde a prancha I. Daí, prossegui, como faremos em seguida, para a análise da prancha X.
[8] E até poderíamos acrescentar, desejo sexual, terciariamente.
[9] Dizia Freud: “Muitos, antes de mim, namoraram a idéia da sexualidade como a etiologia das neuroses. Eu casei com ela.” Com direito aos louvores e críticas que caibam por isso ... Freud namorou a idéia do nascimento como protótipo da ansiedade. Rank casou com ela. Deixemos, portanto, a este os louros e críticas que a isso correspondem.
[10] Nos pacientes nascidos por cesariana planejada (não de emergência, como no caso em pauta), esse trauma também está presente, embora com seu componente mecânico,-- o trauma completo supões outros componentes: respiratório, térmico, dérmico, auditivo, visual, etc.-- atenuado.
[11] Um exemplo de como o “medo à vagina” é mal representado na mente humana é o fato de que Ewald Bohm, em seu indispensável “Manual do Psicodiagnóstico de Rorschach”, diz que irá chamar o que deveria ser chamado de “choque ao buraco” ( = choque à vagina, típico frente à prancha VII), de “choque ao branco”, “por razões de eufemia”! Um interessante blending de decodificação simbólica com diplomacia!
[12] “Affektbildung”, conceito introduzido por Freud e, desafortunadamente, pouco aproveitado por ele.
[13] Uma de minhas pacientes, com problemática análoga à de Rita, afirmou, durante uma de suas sessões: “Quando estou na cama com meu companheiro, somos três: eu, ele e a minha vagina. E nós dois, contra ela!” Mais claro, impossível! No que diz respeito a Rita, infelizmente, não possuo follow-up que pudesse confirmar ou desconfirmar minhas previsões.
Passo a listar as respostas[2] que servem a esse objetivo, adicionando os comentários pertinentes, conforme o desenrolar da trama simbólica os tornar possíveis.
Prancha I
1, 2 ...
3. (D6) Isto aqui parece que alguém está em algum lugar, nesse espaço escuro e aqui duas mãos para fora;
4. (D4)Assim, nota-se mais uma coisa aqui: a mancha está escura ... faz o quadril de uma mulher; há espaço bastante para ser mulher;
5 ...
6. (d6, posição “c”) Se a gente levasse em conta que aqui fosse uma montanha corroída, podia parecer aqui um rosto, as pernas um pouco curvadas, dá impressão de ser uma pessoa que chegou cansada e sentou;
7. (d6, posição “c”) Quando olho aqui, esse negócio parece o lugar por onde sai a criança. Só.
Prancha II
1 ...
2. (Toda a parte negra da prancha) Parece osso da bacia;
3, 4, 5 e 6 ...
Prancha III
1, 2, 3 ...
4. (D1) Parece o osso da bacia novamente, esse meio vermelho;
5 e 6 ...
Prancha IV
1, 2 e 3 ...
Comentário de Rita (relativamente aos pequenos espaços vazios adjacentes a D4): -- Por que todas as fotos têm esse orifício igual? Todas essas são assim, têm esse desenho, sempre a gente nota isso ...
4 ...
Prancha V
1 ...
Prancha VI
1, 2, 3, 4 ...
5. (D1, lado direito, posição “c”) Daqui pela metade para cá (lado direito da prancha de cabeça para baixo), é um bebê: lingüinha, aqui uma cadeirinha, a mesinha, aqui desce. Talvez o joelho, a mesa, vai descendo, o pé da mesa, da cadeira, o chuca-chuca aqui em cima;
6, 7 ...
Prancha VII
1, 2, 3, 4, 5 ...
Prancha VIII
1 ...
2. (D4?) Não agüento mais! Osso da bacia, aqui! Sempre aparece osso da bacia! Que nervoso!
3 ...
4. (parte central de D7) Aqui parece uma vagina, no centro. Embolou tudo! Agora não sei mais nada! (Fecha os olhos)
Embolou as cores, de repente! Que nervoso!
5. (parte central de D4) Isso aqui parece uma coluna, ... um pedacinho de uma coluna;
6 ...
Detenhamo-nos por um momento na transcrição do teste e voltemos nossa atenção para os possíveis significados das respostas até agora transcritas. A reação de Rita à prancha VIII é particularmente notável. Veja-se a intensidade com que reage -- “não agüento mais!”, “não sei mais nada!”, “que nervoso!” -- à idéia, que lhe persegue, de “osso da bacia”. Ora, “osso da bacia” é uma clássica referência disfarçada a “órgão sexual feminino”, mais exatamente, “vagina”. Com efeito, duas respostas adiante, ela perde de maneira mais completa a censura e se refere diretamente ao que já mencionara mais de uma vez de maneira indireta: fala diretamente de “vagina” e sua reação é de extrema confusão: “uma vagina, no centro. Embolou tudo! Agora não sei mais nada!”, etc., etc....
Por que essa reação tão intensa à vagina? O “medo à castração” freudiano? Deixemos essa resposta para mais adiante. Um último comentário, antes de retornarmos ao texto das respostas: A resposta “coluna”, como a mencionada “osso da bacia”, é também uma expressão simbólica da atração-repulsa de Rita pela vagina. Esse fato, nos é sugerido não só pelas semelhanças estruturais entre uma e outra[3], mas, também, por “coluna” seguir imediatamente à resposta “vagina”, altamente carregada de afeto[4].
Prancha IX
1. (G) Um bando de ameba;
2. (G, posição “c”; os homens são D2) Uma coluna antiga. Dois homens que chegaram a essa coluna, mas, como ela era muito resistente e não podiam entrar e não podiam voltar, porque a coluna era no alto da montanha, morreram ali mesmo, com a ânsia de entrar na coluna ... Mas não podiam entrar! ... Estavam sem mantimentos! Depois de muitos anos, a gente vê a forma deles... Osso... Os corpos já foram desfeitos, mas continuam no lugar e já começa... Esqueci o nome que se dá... A evolução da montanha! Vai sendo depositado o pó, a terra: a montanha vai aumentando... Isto é o verde... Já está cobrindo a cabeça... A coluna também vai ser coberta... É pra leão!
3, 4 ...
5. (D2) Parece uma máquina fotográfica. Aqui: um homem tirando uma fotografia. Meio sem lógica, mas parece.
Veja-se a clareza desse material: dois homens (representantes, naturalmente, da própria examinanda) chegam ao alto de uma montanha (cf. “mons veneris”; recordemo-nos, também, que a idéia de escalar uma montanha é um representante simbólico da idéia de nascer[5]), onde encontram uma coluna (= vagina), querem entrar (= nascer), mas não podem, porque a coluna é muito resistente (= falta de dilatação da mãe), e não podem voltar (= desistir de nascer), morrendo (= vivência de angústia[6]), por falta de mantimentos (= anóxia). Frente a esse material, passei a minha supervisionanda a opinião de que a epilepsia de Rita era provavelmente devida a uma anóxia perinatal. Foi-me, então, informado que a paciente tivera um parto extremamente difícil, que exigiu uma cesariana de emergência, confirmando minha hipótese.
Se voltarmos, agora, nossa atenção para as respostas que foram dadas desde a primeira prancha, podemos ver que, esparsas entre o grande número das demais respostas que dera ao teste, Rita, desde o início, estava-nos comunicando seu trauma em relação ao momento de nascer:
I: “Isto aqui parece que alguém que está em algum lugar, nesse espaço escuro e aqui duas mãos para fora”;
... “o quadril de uma mulher; há espaço bastante para ser mulher” (esta críptica resposta, agora, pode ser desvendada: é uma óbvia realização de desejo; o que houve, na verdade, foi insuficiente dilatação do que deveria ter sido sua passagem para o nascer);
“Se a gente levasse em conta que aqui fosse uma montanha corroída (essa deve ter sido a palavra que a paciente tentou evocar, sem sucesso, quando, na prancha IX, fala da “evolução” da montanha), podia parecer aqui um rosto” ... “uma pessoa que chegou cansada e sentou” (= parto laborioso, mas, afinal, bem sucedido);
“Quando olho aqui, esse negócio parece o lugar por onde sai a criança” (mesmo lugar onde viu a “montanha corroída”, reforçando a equivalência “montanha = genitália feminina”);
II: “Osso da bacia”;
III: “Osso da bacia, novamente”
IV: “Porque todas essas fotos têm esse orifício igual?” (note-se que, ao longo de toda minha experiência com o teste, jamais vi tamanha ênfase dada a esses brancos simétricos da prancha IV, que, aliás, via de regra, não são sequer notados);
VI: ... “um bebê: linguinha, aqui uma cadeirinha, a mesinha” (a paciente se refere àquelas cadeirinhas de pé alto, com tampo superior móvel, que, abaixado, ao mesmo tempo em que lhe serve de mesa, prende,-- dificuldade de nascer,-- a criança à cadeira,-- cadeira = quadris!,-- brilhante “resposta de complexo”, indicando, de maneira extremamente disfarçada, o traumatismo de parto de que foi vítima a paciente).
As respostas à prancha VIII e a segunda resposta à IX já foram comentadas. A resposta “bando de amebas”, primeira à prancha IX, deve evidentemente, dado o contexto, ser entendida como uma expressão cifrada da idéia de feto.
Quanto a “um homem tirando fotografia”, entendo como um deslocamento defensivo, para o nível visual, dos impulsos frustrados de penetração da vagina com o próprio corpo.
Mas voltemos à montanha da prancha IX. Rita, como sugeri anteriormente, cometeu um lapso, substituindo a palavra “corrosão” pela palavra “evolução”. O que estaria recalcando, ao cometer esse lapso? “Corrosão” é algo destrutivo; foi substituído por, “evolução”, algo de natureza oposta: permito-me concluir que ela está tentando afastar de sua consciência seus impulsos agressivos em relação à vagina, impulsos, aliás, mais do que compreensíveis, vista sua traumática experiência com aquela, ao nascer. Essa disposição agressiva em relação à vagina vai emergir claramente nas respostas dadas à prancha X[7]. Entretanto, antes de seguirmos em nossa análise, voltemos à pergunta que tinha sido deixada em suspenso após a descrição das respostas dadas à prancha VIII -- “Por que tão intensa repulsa à vagina?” – pergunta a que, na verdade, cabe acrescentar outra – “Por que uma tão grande atração por ela?” – visto que, houvesse só repulsa, ela não estaria coalhando esse teste, de forma implícita e explicita. Por agora, não obstante, iremos nos interessar em responder apenas a primeira delas:
A repulsa (ansiedade, primariamente; agressividade, secundariamente[8]) da
paciente em relação à vagina provém de sua experiência intensamente
traumática com ela no momento do nascimento.
Se concedermos à idéia de Rank[9] – a que concedo inteiramente – de que a experiência do nascimento, de maneira mais ou menos intensa, é traumática para todos nós, a afirmação acima toma um significado bastante mais relevante, pois passa a ser aplicável, já não apenas a essa paciente em particular, mas ao ser humano em geral, devendo encontrar seu lugar preciso dentro de uma teoria psicanalítica da personalidade, coerente com a seguinte afirmação:
O ser humano, homens e mulheres, através da experiência do nascimento,
adquirem uma repulsa primária em relação à vagina[10].
A resposta, portanto, à pergunta de por que a paciente que vimos estudando tem repulsa à vagina é porque nasceu e, à de por que sua repulsa é tão intensa é porque, no seu caso, o trauma de parto foi particularmente intenso – com, inclusive, seqüela neurológica.
Como fica, então, o famoso “medo da castração”, de que fala Freud? Antes de tudo, é necessário explicitar que essa expressão, na obra freudiana, recobre dois conceitos bastante distintos: num, “medo da castração” significa “medo de ser castrado”; noutro, significa “medo à visão da castração” – prototipicamente ilustrado pelo choque do menino ao ver o órgão sexual da mulher. Interessa-nos, aqui, a discussão do segundo desses significados. O que se defende neste trabalho é que o segundo desses medos não é, de forma nenhuma, à castração, muito ao contrário: a teoria da castração – a idéia de que já houve um pênis ali – é uma defesa, idealizada com o fim de obscurecer o fato de que, ali, existe um buraco[11], a vagina, primeiro “cabide ideativo” para a memória afetiva[12] de angústia que ficou da experiência do nascimento. Em outras palavras, em seu nível mais primitivo, o que assusta, na mulher, não é a falta de pênis: é a presença da vagina e essa é uma correção essencial a ser feita nos critérios interpretativos da Psicanálise clássica.
É uma séria falha dessa última o haver permitido que a fantasia defensiva dos pacientes fosse entronizada sob forma de teoria, ao nomear de medo da castração o que, na verdade, não passa de uma forma travestida do medo à vagina, fundamental herdeiro ideativo do trauma do nascimento.
Voltemos ao texto de nosso teste, cujo principal mérito é pôr às claras esse medo e sua origem. Passo, doravante, a fazer meus comentários após cada resposta descrita:
Prancha X (7 respostas):
1. (D4) Duas baratas pretas daquelas que pedem pena da Rhodia;
A resposta da paciente é uma referência a uma propaganda de inseticida, freqüente àquela época na tv, em que uma barata tenta safar-se de um jato “spray” inseticida, aos brados de: “Rhodox não! Rhodox não!”. Essa resposta é uma evidente expressão dos mencionados impulsos retaliatórios da paciente em relação à vagina. “Barata” é um conhecido símbolo da genitália feminina, empregado de forma explícita em nossa linguagem popular, principalmente em seu diminutivo, “baratinha”, empregado no trato com crianças do sexo feminino. Essa agressividade da paciente em relação à vagina será facilmente projetada no homem e previ, à época da análise do teste, significativa perturbação da sexualidade da examinanda, provavelmente na direção do vaginismo, da “frigidez” ou masoquismo[13]. Vale notar, na terceira resposta à prancha, que logo transcrevemos, como a paciente chega próximo à consciência de que essa agressividade acabará voltada contra si mesma:
3. (D12) Estou ficando sádica por bacia... O pior é que tenho a minha!
6 . (D5, posição “c”) Dá impressão de um útero com uma criança nascendo. Dá impressão, não é? Tem perna, tem tudo, só que está nascendo errado, de cabeça para baixo.
7. (D12, posição “c”) Útero onde fica o bebê. Os ovários de onde desce a menstruação. Parece.
Como nossa interpretação geral do caso se nos impôs quando vimos a segunda resposta da paciente à prancha IX, suas respostas à prancha seguinte, ainda desconhecidas quando aquela interpretação foi feita, servem de elemento de validação para essa última.
A tese geral deste trabalho é a de que o conjunto de dados aqui transcritos sustenta:
(1) A importância do trauma do nascimento;
(2) A fartura do material ideativo que diretamente o representa;
(3) A participação desse trauma na construção de um “medo à vagina”, distorcidamente reconhecido por Freud sob a forma encobridora de “medo à castração”.
Não conheço material clínico de pacientes sob análise que contradiga essas conclusões.
Rio de Janeiro, 6 de setembro de 1996.
Luís César de Miranda Ebraico
[1] Cinqüenta em seu total.
[2] O lugar da prancha a que ser refere a resposta obedece à nomenclatura klopferiana.
[3] Naturalmente, “coluna” também pode,-- e, talvez, inclusive, o faça com mais freqüência,-- representar o órgão sexual masculino, mas, no caso em questão, o contexto aponta para uma ênfase à parte interna da coluna, como veremos a seguir.
[4] Em minha experiência, só o neurótico obsessivo-compulsivo -- que não é o caso da paciente -- graças ao mecanismo do isolamento, consegue fazer seguir a uma resposta altamente carregada de afeto, outra que com ela não se relaciona.
[5] A idéia de voltar ao útero, por sua vez, é, por vezes, representada pela idéia de descer uma montanha, morro ou ribanceira (principalmente quando a descida é lenta e perigosa) e pela idéia de sepultamento. O seguinte sonho ilustra bem essas equações simbólicas: A. P., uma mulher, sonha que está tentando subir a encosta de uma montanha com muita dificuldade, quando começa a sentir que uma força intensa começa a atraí-la cada vez mais irresistivelmente para baixo. Olha para trás, na direção do ponto para o qual está sendo atraída, e vê que o que lhe espera é ... seu próprio caixão. Sua angústia cresce cada vez mais à medida que é arrastada para o seu destino até que, para sua surpresa, ao cair definitivamente dentro do caixão, tem a sensação de angústia substituída por uma vivência de extrema beatitude. Este sonho ilustra com extrema clareza a equação simbólica “morte = passagem angustiosa pela vagina + recuperação da situação intra-uterina”. Revertere ad locum tuum!
[6] Lembremos o fato, que aqui cai como uma luva, de que o termo “angustia”, em latim, significa “passagem estreita”, “desfiladeiro”.
[7] Vale lembrar que, em meu primeiro contato com esse material, a análise simbólica das respostas foi feita exatamente na ordem que está sendo seguida aqui: as respostas eram muitas e eu estava atento à sua classificação, não a seu significado; só na prancha VIII comecei a ficar sensível à contínua referência, direta ou indireta, à vagina, obtendo uma compreensão mais global dessa referência a partir da segunda resposta à prancha IX, o que me levou a rever todo o teste e desvendar as referências ao nascimento que vinham sendo feitas desde a prancha I. Daí, prossegui, como faremos em seguida, para a análise da prancha X.
[8] E até poderíamos acrescentar, desejo sexual, terciariamente.
[9] Dizia Freud: “Muitos, antes de mim, namoraram a idéia da sexualidade como a etiologia das neuroses. Eu casei com ela.” Com direito aos louvores e críticas que caibam por isso ... Freud namorou a idéia do nascimento como protótipo da ansiedade. Rank casou com ela. Deixemos, portanto, a este os louros e críticas que a isso correspondem.
[10] Nos pacientes nascidos por cesariana planejada (não de emergência, como no caso em pauta), esse trauma também está presente, embora com seu componente mecânico,-- o trauma completo supões outros componentes: respiratório, térmico, dérmico, auditivo, visual, etc.-- atenuado.
[11] Um exemplo de como o “medo à vagina” é mal representado na mente humana é o fato de que Ewald Bohm, em seu indispensável “Manual do Psicodiagnóstico de Rorschach”, diz que irá chamar o que deveria ser chamado de “choque ao buraco” ( = choque à vagina, típico frente à prancha VII), de “choque ao branco”, “por razões de eufemia”! Um interessante blending de decodificação simbólica com diplomacia!
[12] “Affektbildung”, conceito introduzido por Freud e, desafortunadamente, pouco aproveitado por ele.
[13] Uma de minhas pacientes, com problemática análoga à de Rita, afirmou, durante uma de suas sessões: “Quando estou na cama com meu companheiro, somos três: eu, ele e a minha vagina. E nós dois, contra ela!” Mais claro, impossível! No que diz respeito a Rita, infelizmente, não possuo follow-up que pudesse confirmar ou desconfirmar minhas previsões.
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