domingo

O "ANGST", A PSICANÁLISE E O EXISTENCIALISMO

Fizeram-me algumas perguntas, via imeil, sobre as relações entre o “Angst” (masculino, em alemão), a Psicanálise e o Existencialismo. Sem nenhuma pretensão de completude, toco, nas linhas que seguem, em alguns pontos que podem auxiliar na análise dessas relações.

1. A tradução e significado do alemão “Angst”:
1.1. Em Freud:
1.1.1. Consultas bibliográficas:
1.1.1.1. Imago:
1.1.1.1.1. Vol. III: Apêndice dos tradutores ingleses a “Sobre os Critérios para Destacar da Neurastenia uma Síndrome Particular intitulada ‘Neurose de Angústia’ ” (em minha edição, p. 137-8);
1.1.1.1.2. Vol. XIV: Adendos B e C a “Inibição, Sintoma e Angústia” (em minha edição da imago, esses adendos vão da página 189 a 198);
1.1.1.2. “Traduire Freud”:
1.1.1.2.1. A coleção das Obras Completas de Freud publicada pela Presses Universitaires de France e cujo “directeur scientifique” é o Jean Laplanche, tem um volume especial entitulado “Traduire Freud”. Há observações nesse volume que merecem reflexão, quais sejam:
1.1.1.2.1.1. Freud declara explicitamente empregar a palavra ‘Angst’ para ‘angústia’ (sem objeto), a palavra ‘Furcht’ para ‘medo’ (com objeto) e ‘Schreck’ para “pavor, terror, horror, espanto’ (também com objeto);
1.1.1.2.1.2. A despeito dessas suas declarações, entretanto, Freud faz usos de ‘Angst’ que contrariam o emprego a que ele se diz ater. Por exemplo, na análise do pequeno Hans, emprega a expressão “Angst vor dem Pferde” (literalmente “angústia frente ao cavalo”), ou seja, atribui um objeto a uma emoção que afirma não possuí-lo; tivesse Freud obedecido ali à terminologia com a qual explicitamente se comprometeu, teria falado, “Furcht” e não “Angst vor dem Pferde”;
1.1.1.2.1.3. Os autores do “Traduire Freud” terminam por sustentar que:
1.1.1.2.1.3.1. expressões freudianas como “Wolfangst”, merecem ser traduzidas como “angústia [= medo] do Lobo”, sendo “do Lobo”, aqui, complemento nominal – equivalente a “o medo do guarda (= que tive do guarda) fez-me sair correndo” – e não adjunto adnominal – equivalente a “o medo do guarda (= que o guarda sentiu) impediu-o de cumprir o seu dever”); e que; e que
1.1.1.2.1.3.2. expressões freudianas como “Angst vor dem Wolfe”, merecem ser traduzidas como “angústia frente ao lobo”, onde o termo ‘angústia’ é menos passível de ser considerado completamente equivalente a medo, porque, na verdade, indica a “espera de uma ameaça INDETERMINADA” que é despertada pelo objeto DETERMINADO lobo.
1.2. Heidegger e os existencialistas:
1.2.1. Em Heidegger:
1.2.1.1. A compreensão do uso de “Angst” em Freud já é suficientemente complexa. Tentar comparar esse uso com o de Heidegger é mais complexo ainda. “Hipóstase” é uma palavra pouco conhecida. Como diz Nicola Abbagnano em seu fantástico “Dizionario di fiilosofia”, esse termo, no léxico moderno e contemporâneo, é usado em sentido pejorativo, para indicar “a transformação falaz ou sub-reptícia de um conceito em substância, ou seja em uma coisa ou em um ente”. Para poder se entender o conceito de ‘Angst’ heideggeriano é necessário levar em conta que, quando ele fala de “angústia frente ao Nada” (e não é à toa que esse nada vem grafado em maiúscula), está falando de uma angústia que, diferentemente do que ocorre o mais das vezes em Freud, TEM OBJETO, porque Heidegger hipostasia o Nada, transformando-o em um ser. A única analogia que vejo possível entre a angústia de Heidegger e a de Freud se resume aos poucos casos em que esse último constrói expressões como a citada “Angst vor dem Wolfe”, quando o objeto que desencadeia a angústia remete à, como vimos, “espera de uma ameaça indeterminada”; semelhantemente, o Nada, objeto hipostasiado da “Angst” heideggeriana“ remete o indivíduo à “espera de uma ameaça indeterminada”. Poder-se-ia também dizer que a angústia sem objeto de Freud também é efeito de um “algo” que se encontra, não em uma dimensão metafísica, mas no estrato psíquico inconsciente do sujeito que experimenta essa angústia. Aqui, entretanto, a diferença sobrepuja de longe à semelhança: o inconsciente pode tornar-se consciente e a presentificação na consciência desse algo faz cessar a angústia, enquanto o Nada hipostasiado heideggeriano jamais pode ser conhecido, condenando para sempre o indivíduo à experiência de angústia;
1.2.2. Nos existencialistas em geral:
1.2.2.1. É falso dizer, como fez minha missivista, que o existencialista “não acredita que possa existir vida sem sofrimento ou [que possa existir] felicidade eterna”. Como consensuam praticamente todos os autores que discorrem sobre o existencialismo, o único traço que estabelece uma ligação entre os autores arrolados como pertencentes a essa escola é seu projeto filosófico, qual seja, a analise do “estar-no-mundo” (“Dasein”) do indivíduo. A partir daí, suas conclusões podem diferir tanto quanto água e vinho. De minha parte, costumo distinguir três grandes grupos de existencialistas: os existencialistas trágicos – entre os quais cabe alinhar Kierkegaard, Heidegger e Sartre – que não acreditam em “vida sem sofrimento e na felicidade eterna”[2], os existencialistas românticos – como René Le Senne, Louis Lavelle e Gabriel Marcel – que produzem um “happy end” para a vida do indivíduo mediante a introdução de Deus, que o resgata da angústia inescapável a que lhe condenaram os existencialistas trágicos (afinal, ninguém é de ferro!)[3] e, por fim, os “existencialistas científicos”, que – como Nicola Abbagnano – continuam considerando a análise do “Dasein” a reflexão filosófica fundamental, mas entendem, como esse autor, que “a busca dos limites e das condições em que toda possibilidade humana se encontra não pode realizar-se senão mediante a utilização das técnicas de comprovação e de exame de que a investigação positiva ou científica dispõe em cada campo”. Enfim, após duas safras de existencialistas que, sentados em suas poltronas, decidiram se o homem estava fadado a ser feliz (os românticos) ou a ser infeliz (os trágicos), a terceira, típica do existencialismo italiano, resolveu levantar da poltrona e vir para o mundo – “da sein”! – para entrar em contato com ele em vez de, à distãncia, decidir como ele é. Vista nossa profissão, terminarei estas notas comentando sucintamente as colocações de dois existencialistas cuja influência restringiu-se essencialmente ao campo “psi”: Karl Jaspers e Ludwig Binswanger.
2. O existencialismo na Psiquiatria:
2.2. Karl Jaspers:
Embora divergindo freqüentemente entre si na sua análise do “Dasein”, os existencialistas têm temas preferidos de reflexão. Um deles é a liberdade de arbítrio. O tema, a despeito de preferido, é tratado por todos os existencialisatas com um amadorismo e uma superficialidade grotescos. Qualquer análise mais séria do conceito de liberdade torna a questão “O ser humano é ou não livre?” tão rídicula quanto a questão “O ser humano é ou não tuberculoso?”. Sartre, que, ao lado de sua extraordinária competência como dramaturgo, desfila uma admirável incompetência – hoje largamente reconhecida – como filósofo, chega a sustentar a sandice de que o homem é NECESSÁRIAMENTE LIVRE (bom porque não se aprofunda o assunto!), fazendo tábua rasa da diferença existente entre os sujeitos dominados por atos impulsivos, por compulsões, fobias e contra-fobias – e que de livres não tem nada! – e aqueles que não são vítimas desses sintomas. Acaba, para sustentar seu despautério, por confundir “liberdade” com “aleatoriedade” e a ter que, para dar um mínimo de coerência a ele, se apoiar em sua primariíssima teoria da “má-fé”. A primeira dessas características do pensamento sartriano é central na Psiquiatria de Jaspers, o qual vocifera contra a presença do determinismo no pensamento psiquiátrico porque, também ele, tem a convicção de que liberdade de arbítrio e determinismo são incompatíveis. Deveria ter aprendido com Nicolai Hartmann que a liberdade não é mais do que o determinismo de um determinado estrato do ser relativamente aos demais. Diz Hartmann: “A liberdade no sentido positivo não é um minus, mas sim um plus na determinação. O nexo causal não permite um minus, porque sua lei afirma que, uma vez em curso uma série de efeitos, não pode ser de modo algum detida. Admite, contudo, um plus – caso exista – porque sua lei não afirma que aos elementos de uma determinação causal de um processo não possam ser agregados outros elementos de determinação” (Ethik. Berlin, 1926, p. 649). O elemento de determinação que, agregado às anteriores cadeias de determinação, cria a liberdade de arbítrio é o Eu, que, quando se encontra enfraquecido, é refém dos atos impulsivos, compulsões, fobias e contra-fobias que anteriormente mencionamos. Mais: só a compreensão das causas – determinismo! – que levam um Eu a tornar-se fraco ou a fortalecer-se pode criar uma Psicologia capaz de amparar o indivíduo em sua busca do arbítrio. O combate – à maneira do existencialismo psiquiátrico de Jaspers - à possibilidade de construção de uma ciência humana de cunho determinista é um grande desserviço à luta do ser humano para alcançar a liberdade.
2.3. Ludwig Binswanger:
O nome “psiquiatria existencial” ficou historicamente associado ao grupo de psiquiatras, psicólogos e psicanalistas cujo pensamento deriva essencialmente de Heidegger e cujo principal representante é Ludwig Binswanger, que chama ele próprio sua abordagem de “Daseinanalyse”. Sua grande contribuição resume-se à afirmação de que “o sintoma neurótico não deve ser explicado em termos do conteúdo do insconsciente do paciente, mas em termos de seu modo de consciência e [que] o conceito-chave involvido na explicação não é o de causalidade, mas o de significado” (Alisdair MacIntire, in: Edwards, P. (ed.). The Encyclopedia of Philosophy. London: MacMillan, 1972). Ou seja, sua grande contribuição resume-se em jogar pela latrina todo o cuidadoso trabalho freudiano de demonstrar cansativa e detalhadamente como as cadeias de significado SÃO CONSTRUÍDAS DE FORMA CAUSAL! Aliás, primarismo teórico da “Daseinanalyse” parece ter gerado metástases: o besteirol de opor hermenêutica a determinismo anda correndo solto, atualmente, nos meios psicanalíticos.
[2] Aliás, só a esse grupinho de “trágicos” e a seus seguidores se adeqúa a afirmação, também postada para mim, de que “no pensamento existencialista ... a angústia deixa de ser vista como uma patologia para ser inerente à existência, à condição humana”, uma bela “cobertura ideológica” (= “racionalização”) de natureza filosófica que os poupou de se indagar se a eterna angústia de que eles padeciam – Sartre fazia uma pouco de “gênero”, é verdade – era saudável ou patológica.
[3] Aliás, ao permitir a explicação do ignotus per ignotius, “Deus” torna-se um fantástico “quebra-galho” conceptual para quem chega em um beco-sem-saída nas suas indagações. Até Kepler, que, após ter patrocinado um assombroso salto na elaboração do sistema heliocêntrico proposto por Copérnico, não conseguiu descobrir – como Newton faria depois com sua Teoria da Gravitação Universal – uma lei que explicasse os fenômenos que tão bem descreveu, até ele, frente à falta de resposta, resolveu explicar a perfeição do funcionamento dos astros com a história de que Deus enviava um anjo para orientar cada planeta em sua órbita. Pode?

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