terça-feira

COMENTÁRIOS SOBRE O FILME "DON JUAN DE MARCO"

Quem acompanhou os diálogos dessa película apenas através de sua tradução legendada perdeu um essencial e saboroso detalhe, intimamente relacionado com a questão em torno da qual se desenvolve toda a trama. O Dr. Jack Mickler – personagem representada por Marlon Brando – é, no idioma original do filme, o inglês, ora chamado de psychiatrist, ora de shrink. Na tradução para o português, todavia, tanto psychiatrist quanto shrink são igualmente traduzidos por “psiquiatra”. A perda, na tradução para o português, da especificidade semântica de shrinkto shrink, em inglês, significa “encolher” – é inestimável. Com efeito, a partir dos anos sessenta, nos Estados Unidos, a gíria headshrinker, gradualmente simplificada para shrinker e, depois, para shrink, passou a ser usada para nomear os psiquiatras e, logo, por extensão, psicanalistas e psicoterapeutas em geral. Ora, headshrinkers – encolhedores de cabeça – é expressão classicamente aplicada aos silvícolas que, ao vencer seus inimigos, cortam-lhes as cabeças e diligentemente as encolhem, pondo-as em seguida a decorar a entrada de suas tendas. Se devidamente compreendida, a metáfora proposta por essa gíria é assustadora: psiquiatras, psicólogos, psicanalistas etc. – os “psicocoisas”, segundo um meu paciente que, compreensivelmente, não conseguia distinguir uns de outros – seriam inimigos de seus pacientes e, ao derrotá-los, separando suas cabeças de seus corpos – legítima origem de seus desejos – encolhem-nas e as exibem em seus currículos como troféus do sucesso obtido contra eles.
Armados dessas considerações, voltemo-nos sobre o enredo do filme. O Dr. Jack Mickler é chamado para resgatar um jovem de seus vinte anos que, dizendo-se Don Juan e desiludido com nossos tempos, ameaça jogar-se do alto de um prédio. Mickler é bem sucedido, mas às custas de se dizer caballero, um tal Don Octavio de Flores, e de convidar nosso Don Juan suicida para sua quinta, que, evidentemente, nada mais era do que um hospital para doentes mentais. Lá chegados, tenta medicar o rapaz, mas esse propõe um trato. Não quer ser medicado antes de contar sua história. Se, ao terminar de fazê-lo, Don Octavio – Mickler, naturalmente – entender que ele ainda precisa ser medicado, dá sua palavra de que tomará os remédios. Jack aceita o acordo, isso para o profundo desagrado do restante da equipe, que passa a pressioná-lo no sentido de medicar o paciente, queira esse ou não. Ou seja, a pressionar Jack para agir como um verdadeiro shrink, abortando o delírio de seu paciente, encolhendo sua cabeça de forma a colocá-la dentro dos limites do considerado “normal”.
Mas, como dizia a expressão latina, necandus necavit necaturum: “quem devia morrer matou quem devia matar”. O delírio de Don Juan é absolutamente encantador, fala de estórias em que os prazeres do amor e do sexo atingem supina expressão... E é Jack que, em vez de encolher a mente de seu paciente, começa a ter a sua “expandida”. Contaminado pelo delírio a que se dispôs a dar ouvidos, Jack começa a colorir o cinzento que, ao longo dos anos, tomara subrepticiamente posse de sua vida. Começa a recuperar o amante que tinha dentro de si. Para o agradável espanto de sua mulher, passa a levar-lhe flores, dar-lhe jóias e, à luz de velas, convidá-la para jantar...
Há um momento em que o dilema “restringir ou expandir a mente” é focado de maneira extremamente jocosa. Jack Mickler, embora hesitante, decide contestar frontalmente o delírio de seu paciente:
– E se eu lhe dissesse que eu não sou Dom Octavio de Flores, mas, sim, um psiquiatra, e que esta não é minha quinta, mas o hospital onde eu trabalho, o que você me diria?"
– Eu lhe diria que você tem uma visão extremamente estreita da realidade! – devolveu Don Juan.
Mas, quase que “em off”, Don Juan consola Jack. Diz-lhe saber perfeitamente que Jack é um psiquiatra e que estavam em um hospital, não numa quinta, mas que, sendo tudo isso transcendentalmente chato, quer continuar contando sua história, sem dúvida mais saborosa e digna de atenção. E Jack, aprofundando o desespero de seus pares, continua a escutá-lo, em vez de o medicar. E, enquanto o faz, segue recuperando a cor de sua vida. Necandus necavit necaturum! Tendo terminado o relato de sua história – tendo satisfeito seu Desejo de Palavra – Don Juan adquire as condições internas necessárias para descartar seu delírio e deixar vir à tona o que anteriormente eclipsara: toda sua idealização da mulher era uma tentativa de compensar a dolorosa realidade da vida de sua mãe. A liberdade de discurso que Jack Mickler deu a Don Juan foi o necessário e o suficiente para que esse último, recuperando dados que havia recalcado, voltasse a fazer uso de sua razão. Após haver injetado em seu psiquiatra uma nova alegria de viver... (Excerto de: Ebraico, L. C. de M. A Nova Conversa. Rio: Ediouro, 2004)

3 comentários:

Anônimo disse...

Perfeito! E como há "headshrinkers" por aí, quando o que se precisa mesmo é de "head-expanders".

Patriciasimonepsi disse...

Querido Luís, Tomei a liberdade de "Linkar" seu comentário em meu post sobre o filme. Tenho um blog/site (www.psicologiaecinema.com)que explora diversos olhares sobre os filmes postados, priorizando a psicologia. Caso tenha mais algum comentário ou artigo sobre algum dos filmes postados, convido-o a comentar no site.
Abraços
Patrícia Simone

Alba Regina Bonotto disse...

Interessante a forma que aborda o posicionamento dos terapeutas..
Linckei no face a introdução no Grupo Cinema e Filosofia.
grata,
Alba