segunda-feira

FUNDAMENTOS LÓGICOS E EMPÍRICOS DO CONCEITO DE INCONSCIENTE

A hipótese da existência de fatores inconscientes determinando o comportamento humano é, naturalmente, tão velha como a história. Na época de Freud, entretanto, dominava a postura de que esses fatores eram de natureza neurológica.
O grande mérito de Freud foi sustentar a natureza psicológica desses fatores, fazendo uso, para isso, (1) de dados empíricos à disposição de qualquer um e de (2) um conceito específico de psicológico, tomado de empréstimo a Franz Brentano. Se não, vejamos:

(1) A experiência pós-hipnótica que relato a seguir pode ser reproduzida 'ad nauseam' por quem quer desejar fazê-lo e é um acabado exemplo do tipo de dados empíricos a que acabo de me referir:

Um voluntário, sob hipnose, em uma sala em que se encontram ele, o hipnotizador e mais quatro pessoas, recebe a ordem pós-hipnótica de que, ao sair do transe, não mais verá uma delas. Com efeito, saído do transe, ao ser perguntado pelo hipnotizador sobre quem são as pessoas que se encontram no aposento, indica a presença de todos, menos daquele que está hipnoticamente impedido de ver. O hipnotizador, então, pede que o voluntário caminhe na direção dele, tendo antes se colocado de forma que, entre ambos, fique a pessoa que, para aquele, está "invisível". O sujeito hipnotizado segue em linha reta na direção do hipnotizador, mas - espanto! - pouco antes de colidir com a pessoa postada entre os dois, hesita um pouco e termina por desviar-se dela, só então continuando seu percurso para o local pretendido.Perguntado sobre as razões de haver feito tal desvio, dá as mais variadas respostas, menos a de que foi para evitar a colisão com a pessoa interposta e que CONTINUA A NÃO VER;

(2) Nada, contudo, no episódio acima, impediria que os contrários à hipótese de um INCONSCIENTE PSICOLÓGICO continuassem afirmando serem MERAMENTE NEUROLÓGICOS os fatores que levaram o voluntário da experiência a desviar-se do obstáculo humano com que, não fora tal desvio, iria fatalmente colidir. Sendo esses fatores, portanto, estranhos ao campo de estudo da Psicologia. Aqui, contudo, entra Franz Brentano, filósofo alemão, a cujas aulas assistiu Freud, a partir de 1874, ou seja, exatamente a partir do ano em que aquele filósofo publicou seu mais famoso livro, "A Psicologia de um Ponto de Vista Empírico". Nessa obra, na seção intitulada “A Distinção entre os Fenômenos Físicos e os Mentais”, Brentano defende o conceito - perfeitamente legitimado pela história da Filosofia - de que a existência de intencionalidade é o critério que permite a diferenciação entre o psicológico e o não psicológico.

Ora, convenhamos, se

(a) dados empíricos como os observados na experiência pós-hipnótica relatada demonstram a existência de intenções - no caso, evitar uma colisão - que podem ditar comportamentos humanos, a despeito de ter impedida sua entrada na consciência; e se,

(b) como assumiu Freud - seguindo o critério de Brentano (sem jamais declinar seu débito a ele) - onde há intencionalidade, existe o psicológico, é rasteiro exercício dedutivo concluir

(3) a legitimidade lógico-empírica da postulação de um INCONSCIENTE PSICOLÓGICO.

Postulação que permitiu o nascimento de uma nova Psicologia - a Psicanálise - que abrangeu em seu campo de estudo tanto a intencionalidade consciente quanto a inconsciente. Não reconhecer o inconsciente como objeto legítimo da investigação psicológica só pode ser sinal de ignorância, burrice, má-fé ou de alguma perniciosa combinação desses fatores. O último deles, provavelmente, de natureza inconsciente.

A "SEGUNDA TÓPICA" FREUDIANA

A segunda tópica freudiana, por mais que tenha tido o mérito de sugerir importantes parâmetros classificatórios para se organizar uma divisão do psiquismo em sub-sistemas, patrocinou uma vasta confusão ao aplicar esses parâmetros. Com efeito, se, por exemplo, falamos que algo, num psiquismo, pertence ao Eu, não sabemos, a partir disso, se o que está em operação é o processo primário ou o secundário, se esse algo é pré-consciente ou consciente, se é ou não reconhecido pelo sujeito como parte de si mesmo. Segue-se um esboço da reorganização que se impõe no que diz respeito a essa segunda tópica. No que diz respeito (1) à época em que aparece a instância: o Isso seria o primeiro, o Supereu o segundo, o Eu o terceiro; (2) à sensação de identidade: o indivíduo, quando entra em contato com elementos do Eu e do Supereu vive-os como sendo seus, o que não ocorre quando se defronta com elementos pertencentes ao Isso; (3) aos processos em jogo: o Supereu e o Isso operam de acordo com as leis do processo primário, o Eu de acordo com o processo secundário; (4) à possibilidade de acesso à consciência: todos os três sistemas podem ter elementos que se afloram nela; (5) quanto a provirem de “nature” ou “nurture”: a origem do Isso é constitucional, as do Eu e do Supereu tem origem nas relações do sujeito com seu entorno; (6) quanto a identificações: o Isso independe de identificações, o Eu e o Supereu dependem delas, mas a identificação típica do Eu é secundária, flexível, passível de ser alterada por considerações racionais e a do Supereu, primária, rígida, não passível de ser assim alterada; (7) quanto a função de liberar ou inibir processos mentais, todos os três sistemas têm capacidade fazê-lo, cada um a partir de seus pressupostos; (8) nenhum desses sistemas está particularmente a serviço de um tipo específico de pulsão. A parte isso, o termo Supereu é infeliz, pois generaliza uma situação mórbida, em que essa instância domina o Eu. Uma alternativa mais adequada, talvez, seria chamá-lo de Pré-eu.